LANÇAMENTOs Novidades de artistas de diferentes países. Em
destaque, álbuns com cordas como protagonista. Experiências variadas,
possibilidades múltiplas. Ouça, divulgue, compre os discos...
Por Fabricio Vieira
Dolphyology:
Complete Eric Dolphy for Solo Guitar
Samo Salamon
Samo Records
O guitarrista
esloveno Samo Salamon completa duas décadas de carreira com um registro muito
especial. Salamon, em meio ao isolamento provocado pela Covid, resolveu no ano
passado adentrar a obra de Eric Dolphy (1928-1964). Essa revisitação resultou
na releitura de 28 composições do lendário saxofonista, agora editadas em CD. “Besides
Ornette Coleman, Eric Dolphy has probably been one of my biggest influences as
well as reasons in the beginning why I wanted to play jazz and improvised
music. Although Dolphy belongs to the jazz greats, in a way he is still such an
underrated improviser and especially composer – having composed beautiful
compositions throughout his fairly short career. The idea of the project began
by practicing at home alone during the many Covid lockdowns, rediscovering
Dolphy’s music again”, diz Salamon. Tocando 6 e 12-string acoustic guitar e mandoline
(este apenas em “Inner Flight I”), o músico trabalhou os arranjos com soluções
bastante interessantes, passando por grandes clássicos como “Out to Lunch”,
“Gazzelloni” e “Iron Man”. “First I transcribed all the compositions by Dolphy
and arranged them for solo guitar, trying out different techniques. In the end,
I improvised on tunes – sometimes free improvisation and in other cases
following the harmonic structure”.
Oddly Enough:
The Music of Tim Berne
Gordon Grdina
AttaBoyGirl
Records
Aqui temos um
outro interessante projeto de guitarrista revisitando, em formato solista, a
obra de um saxofonista. Oddly Enough traz o músico canadense Gordon Grdina
investigando peças de Tim Berne. São sete temas, gravados em Vancouver, onde o
artista reside, e masterizados por David Torn (antigo parceiro exatamente de
Berne). Grdina se reveza em vários instrumentos: electric/midi guitar, classical
guitar, acoustic guitar, oud e dobro. Com essa palheta, vai criando
possibilidades sonoras variadas, por entre os elementos que caracterizam sua
linguagem, que lida com jazz, free impro e música árabe. Em meio a essa variedade, o álbum tem uma linha bem focada; o ouvinte não adentra grandes
ondulações de tensão. O disco abre com uma pegada mais intensa, exceção, sendo
a faixa-título construída com guitarra elétrica e efeitos. Mas a partir de “I
Don’t Use Hair Products” o tom fica mais plácido, com a atmosfera acústica
passando a dominar, tendo em “Lost In Redding”, tema gravado pelo quarteto
Snakeoil no álbum “You’ve Been Watching Me”, seu melhor momento.
Teip Trio
Teip Trio
Sonic
Transmissions
Nesta sua
estreia, o trio norueguês vindo da viva cena free impro de Trondheim apresenta
uma música que, só pela sua formação, já demonstra que não está atrás de algo
usual. O Teip Trio é formado por duas guitarras (Arne Bredesen e Nicolas
Leirtro) e clarinete (Jens-Jonas Francis Roberts) e tem atuado junto há algum
tempo, o suficiente para que a unidade sonora do projeto esteja já bastante
firme e definida neste debute. As oito peças que apresentam (mais um tipo de epílogo de 30
segundos fechando o registro) são chamadas todas de “Take”; em seu conjunto,
podem ser saboreadas como uma extensa peça única de improvisação livre, com
suas ondulações de tensões e climas formando um todo. “Two heavily processed
electric guitars against an acoustic clarinet – a musical equivalent of David
versus Goliath”, diz o trio na apresentação do trabalho – mas a música que
trazem é mais equilibrada e coesa do que tal descrição pode fazer imaginar.
Vozes novas com propostas frescas.
Solo
Tim Dahl
1584
Productions/Brava
Tim Dahl é um
dos mais inventivos baixistas da atualidade. Sendo um dos integrantes do genial
trio Pulverize The Sound, Dahl trabalha com projetos de diferentes vertentes (Flying
Luttenbachers, CP Unit, Lydia Lunch Retrovirus...), do free jazz e improvisação
livre ao rock. E isso inevitavelmente ecoa neste seu primeiro álbum solista. Além
de seu característico baixo elétrico, com infinitas explorações de efeitos,
Dahl usa também a voz. Gravado ao vivo em estúdio – “sem overdubs”, faz questão
de frisar –, o disco tem 22 faixas. Não se trata de 22 peças, vale explicar:
cerca de metade delas trata-se mais de uma espécie de interlúdio, que duram
segundos, nos quais ouvimos a voz de Dahl, comentando, discutindo, brincando
com o produtor Nandor Nevai. Esses interlúdios quebram a por vezes muito densa
música produzida por ele (das sombrias linhas que abrem “L’Anse aux Meadows”,
que poderiam estar inseridas em algum contexto doom metal, ao campo noise de
SAG), dando um ar mais de ensaio e descontração. É um disco para ser ouvido
como uma peça única, sequencialmente, não como faixas independentes. O álbum,
lançado em CD lá fora, ganhou uma versão em cassete no Brasil, pelo selo
Brava.
Cão Dia, Cão
Noite
Bruno Trchmnn
Brava
Este álbum traz
o instrumentista de Campinas (SP) Bruno Trchmnn em duas extensas peças, nas
quais explora possibilidades variadas de sua prática sonora. Trchmnn tem na
rabeca e na guitarra seus dois instrumentos principais, mas não se prende
apenas a eles, como bem mostra aqui, trazendo à mesa também flauta, baixo, pratos,
latidos de cachorros... Tudo isso serve à criação dessas peças que se
desenvolvem em dois blocos bem delimitados, uma faixa de 22 minutos e outra de 13 minutos.
A faixa-título é especialmente viva, imagética, com uma intensidade feita de
níveis distintos e complementares, com a primeira metade tendo no pulso
contínuo dos pratos de bronze a linha que vai guiando os ouvidos, trazendo a
guitarra meio que em segundo plano, algo contida, com a ruidosidade das cordas sendo
libertada na segunda parte, onde vemos a rabeca crescendo e cortando os espaços. “Enxada”
oferece outras perspectivas, com vibração que ecoa até algo bluesy, uma ritmicidade
mais demarcada, em uma peça algo linear, especialmente em comparação às
ondulações do outro tema do álbum. Cão Dia, Cão Noite sai em digital e edição
limitada em cassete, com arte exclusiva feita pelo artista para cada exemplar.
At Souillac En
Jazz
Joëlle Léandre
Ayler Records
A contrabaixista
francesa Joëlle Léandre é uma das figuras centrais da free music e
encontrá-la em concerto solista é um
acontecimento especialmente excitante (experiência que tivemos a oportunidade
de degustar em setembro de 2019, quando ela tocou pela primeira e única vez no
Brasil). O registro há pouco editado pelo selo Ayler Records traz Léandre em um
concerto realizado em 18 de julho de 2021, na igreja Saint Jacques de Calés
(França). São oito peças (ou “comprovisations”, como diz na contracapa), em um
total de uma hora de música. “This solo by Joëlle Léandre concentrates an
energy coming out of the depths of the earth, right from the first strokes of
the bow. The huge sound, instantly gripping the body, is overwhelming far
beyond the music, an experience so strong that tears flow when it comes to the
sung parts”, resume Christian Pouget nas liner notes. Este comentário soa
bastante claro para quem viu a artista ao vivo: infelizmente ouvi-la em disco é
apenas uma sombra do que significa ver sua música nascer presencialmente, à
frente do ouvinte. Mas enquanto não temos a chance de reencontrar Léandre em
nossos palcos, é bom ter novo material seu disponível.
When No One
Around You is There but Nowhere to be Found
Jessica
Pavone
Relative
Pitch
Os trabalhos
para viola solista existem em bem menor número que os para violino solo. Mas há
notáveis exemplos de material deste tipo, como “Sequenza VI” (67), de Luciano
Berio, ou “Cadenza” (84), de Penderecki. No mundo da free music, Jessica Pavone,
a mais destacada representante do instrumento, tem feito sua própria história
neste segmento. Criando há cerca de uma década para o formato, Pavone já editou
alguns discos para viola solista com resultados bastante sólidos. Este novo
álbum se une aos dois títulos anteriores, formando uma trilogia (com “Silent
Spills”, de 2016, e “In The Action”, de 2019, todos editados pela Relative
Pitch e com o mesmo padrão de capa), que vai se revelando referencial para o
formato. Como em seus mais recentes trabalhos para cordas com conjuntos mais
amplos, Pavone cria peças sensoriais, hipnóticas, que parecem se desenvolver
circularmente, sem a necessidade de rumar para um fim preciso. “The structured
yet indeterminate pieces stem from intensive long tone practice and an interest
in repetition, song form, and sympathetic vibration”, bem sintetiza o texto de
apresentação do álbum. São quatro peças, que mostram diferentes possibilidades
de sua exploração sonora, indo das linhas cortantes e contínuas de “Performance
Novels” ao lirismo que marca a faixa-título, com sua melancólica melodia, e o
intrigante jogo vocal de “Only in Dreamz”. Há três vídeos, realizados pelo artista
Neil cloaca Young, que acompanham as faixas e ampliam essa encantatória experiência oferecida por Jessica Pavone.
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*quem assina:
Fabricio
Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e Crítica Literária.
Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda
correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com publicações como
Entre Livros e Jazz.pt, de Lisboa. Nos últimos anos, tem escrito sobre música e
literatura para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns
“Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of the Star”,
de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live in Nuremberg”, de Perelman e
Matthew Shipp (SMP Records)