SATOKO FUJII: Isolamento Criativo


LANÇAMENTOs A genial pianista japonesa Satoko Fujii tem feito do isolamento pandêmico um processo de alta produção criativa, com potentes álbuns editados nos últimos meses...



Por Fabricio Vieira

Quase dois anos após o início da pandemia de covid-19, o novo avanço da doença nos últimos meses faz parecer mais distante a esperada normalização da vida. Músicos que no ano passado haviam voltado a fazer turnês e se reunir com seus parceiros vivem mais um período de incertezas, que parece não ter fim. Há quem tenha encarado estradas e estúdios e tentado viver o dia a dia como pode. E há os que seguem criando, mas ainda relativamente isolados. A pianista japonesa Satoko Fujii, 63 anos, é uma das vozes que não baixou o tom, mas que tem tido sua casa em Kobe, no Japão, como quartel-general criacional. Nos últimos dois anos, ela editou cerca de 20 títulos. E parte considerável disso – todo o material novo – foi desenvolvida e gravada em sua casa. Sua conta no Bandcamp tem sido o principal veículo de divulgação do que tem feito durante a pandemia, mas também há títulos sendo editados em formato físico. Discos solistas estão entre os destaques de sua produção recente. Vários duos também têm aparecido, captados à distância, produções remotas realizadas com o auxílio da tecnologia e as facilidades propiciadas pela Internet. “This is real DIY recording, recorded by ourselves at our small music room and mixed by ourselves”, diz, resumindo sua atual fase, em um de seus recentes lançamentos, “Keshin”, duo com seu parceiro, o trompetista Natsuki Tamura.

This pandemic pushed me to find new ways to create that I have never tried before. Nothing can stop us from making music! (Satoko Fujii)

 

Alguns projetos de Fujii surgidos antes da pandemia continuaram se desenvolvendo nesses tempos incertos. O duo Futari é um bom exemplo. Parceria com a instrumentista Taiko Saito (vibrafone, marimba), o Futari foi responsável por uma das últimas aparições públicas de Fujii; o duo se apresentou em Berlim no dia 5 de fevereiro de 2020, pouco antes dos lockdowns começarem pelo mundo. No ano passado, o Futari deu continuidade à sua música, mas de uma forma bastante diferente. Elas produziram algo a distância, mas não via streaming: Saito, que vive em Berlim, enviou algumas peças/improvisos solistas que tinha registrado antes da pandemia para Fujii. A pianista, em sua casa, criou então suas partes e as mixou junto com o que havia recebido. Saito fez novas gravações. E dessas idas e vindas, nasceu o álbum Underground. O trabalho final de masterização foi feito por Mike Marciano, no estúdio Systems Two, em Nova York. Editado em CD pelo selo Libra Records (no formato digital, foi dividido em três volumes), Underground abre o som do duo a outras possibilidades, mostrando em 10 peças uma nova forma de diálogo entre Fujii e Saito, mas mantendo a sombria beleza do projeto.

Os registros solistas têm sido talvez a principal via produtiva de Satoko Fujii nesses últimos dois anos. Diferentes títulos têm sido editados por ela no formato, apresentando novas perspectivas para sua sempre tão inventiva voz. Dentre os mais recentes lançamentos solistas, dois títulos chamam atenção por suas amplas diferenças. Piano Music (Libra Records) traz duas extensas peças gestadas em março de 2021. Aqui ouvimos a face mais experimental de Fujii. Além do uso de técnicas estendidas, a artista também trabalhou com colagens a partir dos ruídos e efeitos que tirou do piano, com teclas e cordas exploradas em seus extremos. É música hipnótica, inebriante, que nos leva por rumos inesperados em suas longas investidas (“Shiroku” tem 19 minutos; “Fuwarito”, 27 minutos). Já Hajimeru, outro título recente, apresenta uma outra face da arte pianística de Fujii. Aqui vemos a improvisadora sentada em sua banqueta tocando o piano de forma “tradicional”, centrada no que as teclas podem oferecer. As quatro peças que saíram da sessão mostram sua veia mais free jazzística, em temas mais breves e centrados (“Sarani”, por exemplo, se resume a 3 minutos; a faixa-título, a mais extensa, alcança os 13 minutos). Esses dois álbuns ilustram bem a extensão da voz solista de Fujii; escutá-los sequencialmente é bastante estimulante, ampliando a compreensão do trabalho que ela tem desenvolvido.   

Satoko Fujii também resgatou antigas parcerias nesses tempos pandêmicos. Seus encontros com o contrabaixista Joe Fonda já renderam diferentes títulos, desde “Duet”, captado em Portland, em 2015. No ano passado, veio a proposta de criarem um novo registro, cada um na sua casa (Fonda vive em Nova York). Thread Of Light, que acaba de sair pelo selo polonês Fundacja Sluchaj (FSR), apresenta 10 temas resultantes dessa parceria remota. Fujii fez suas gravações em janeiro e fevereiro de 2021 e enviou para Fonda, que trabalhou sua parte. O material foi masterizado e mixado pelo engenheiro de som Nick Lloyd. A música resultante pode ser encarada como uma continuidade do que eles realizaram anteriormente em duo. São temas líricos, melancólicos por vezes, tendo já em sua faixa de abertura, “Kochi”, uma boa síntese de sua expressividade. Há duas peças solistas, “My Song” (Fonda) e “Winter Sunshine” (Fujii), que funcionam como breves intermezzos, talvez nos lembrando que a obra foi, em sua gênese, arquitetada a partir de duas vozes isoladas.

This Is It! é um trio que tem tocado junto nos últimos anos. Formado por Satoko Fujii, Natsuki Tamura (trompete) e Takashi Itani (bateria), se uniu pela última vez em 2020, no famoso clube Pitt Inn. A ideia deles era fazer uma gravação na sequência, mas acabou não tendo como acontecer. Em junho do ano passado, veio então a resolução: “vamos gravar a distância!”, e foi o que fizeram. Aqui a proposta do trio foi tocar/improvisar junto, via streaming. De onde Fujii e Tamura vivem, Kobe, são mais de 600 km de distância até onde Itani mora, em Soka. Mosaic (Libra Records) é o resultado desse encontro remoto, do qual saíram cinco peças. Fino free impro, com momentos mais enérgicos, solos inventivos e precisa interação. “I can make music exchanging files online, but this trio plays spontaneous improvisation and needs the inspiration that we get when we play together. So we decided to record a session on the internet”, diz Fujii.  “If we play in the same room, listening is as natural as breathing, I’m almost unaware that I’m doing it. But on the internet, it was not like breathing. My ears worked like listening carefully to another language; it required a little extra effort. But we found we could make music in this way”, conclui.

 

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*quem assina:

Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com publicações como Entre Livros, Zumbido e Jazz.pt, de Lisboa. Nos últimos anos, tem escrito sobre música e literatura para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live in Nuremberg”, de Perelman e Matthew Shipp (SMP Records)