PLAY IT AGAIN... (Resgates e Reedições)


LANÇAMENTOs  Uma série de novos álbuns têm resgatado material histórico inédito ou reeditado importantes registros esquecidos. Trazemos aqui alguns desses lançamentos imperdíveis que ajudam a manter viva a história da música livre e criativa...

 


Por Fabricio Vieira

 

 

Mitochondria  *****

Akira Sakata/ Takeo Moriyama

Trost Records

O lendário saxofonista japonês Akira Sakata, que completa 77 anos no próximo dia 21 de fevereiro, se mantém em pulsante vida criativa. Hoje uma figura completamente integrada à cena global, tocando e gravando por todos os cantos há quase cinco décadas (infelizmente ainda não o vimos no Brasil), Sakata é uma das forças maiores do sax alto de sua geração. Mitochondria resgata uma gravação feita por Sakata em duo com o percussionista Takeo Moriyama em maio de 1986, na Kashiwa Church em Chiba, no Japão. Sakata e Moriyama apareceram na cena como parte do seminal trio do pianista Yosuke Yamashita, tendo tocado juntos entre 72 e 75. Na época desta gravação, cada um já cuidava de seus projetos, mas a energia do trio de Yamashita seguia bem palpável – e eles prestam sua homenagem àqueles tempos, com uma versão fulminante da clássica “Chiasma”. Lembram também de Albert Ayler, com uma versão de “Ghosts”. Há espaços ainda para mostrarem suas vozes solistas (Sakata ao clarinete no tema de abertura e Moriyama em “Satsuki”), em um total de nove peças. A qualidade da gravação, com mixagem de Jim O’Rourke, é boa considerando que foi captada em um stereo cassette recorder. Energy music de primeira. Sai em CD e LP duplo.

 

 

Live  ****

London Bass Trio

Independente/Bead

Quem acompanha o trabalho do lendário contrabaixista carioca Marcio Mattos esperava algum dia ter a oportunidade de ouvir este registro que, com certeza, foi degustado por não muita gente até hoje. O London Bass Trio foi um grupo de free impro formado em Londres por Marcio Mattos, Tony Wren e Mark Meggido em meados da década de 1970, sendo um pouco usual, especialmente para a época, trio de contrabaixos. Este álbum foi editado pelo selo britânico Bead em 78, apenas em K7, o que dificultou ainda mais sua preservação e circulação (é o tipo de material que mesmo quem quisesse dificilmente conseguiria encontrar uma cópia à venda). Agora, pela primeira vez, ganha nova chance de ser apreciado. Live traz música captada em dois concertos feitos pelo London Bass Trio, no Cockpit Theatre, em novembro de 76, e no Soho Poly, em agosto de 77. Devidamente remasterizado, o material está sendo reeditado apenas em formato digital, disponibilizado na página de Mattos no Bandcamp.

 


Xylophonen Virtuosen  ****

Jim O'Rourke/ Mats Gustafsson

Trost Records

Esta gravação realizada em setembro de 1999 reuniu o duo formado por Jim O'Rourke (guitarra, acordeón, junk) e Mats Gustafsson (sax tenor, fluteophone, flauta), aparecendo ainda naquele ano em CD pelo Incus, mas já fora de catálogo há algum tempo. Agora o selo Trost Records resgata aquela sessão de free impro em sua totalidade, ampliando bastante a música ofertada: de cinco faixas editadas no CD original de 99, os ouvintes poderão conhecer agora um total de 10 faixas. Trata-se de uma estimulante sessão de improvisação livre marcada por explorações muitas vezes detalhistas, ruídos em sua expressão mais tênue, sem picos explosivos ou muralhas de sons, como se poderia esperar ao ver o nome da dupla. Todo material, o antigo e o inédito, foi remasterizado e remixado para este lançamento. Xylophonen Virtuosen sai em LP duplo e CD.

 


Planetário da Gávea  ****(*)

Hermeto Pascoal e Grupo

Far Out Recordings

Quando a década de 1980 se iniciou, Hermeto Pascoal vivia um momento genial, tendo editado nos anos anteriores a incrível trilogia formada por “Slaves Mass” (77), Zabumbê-bum-á (79) e “Cérebro Magnético” (80). Acompanhado por alguns dos nomes que seriam fundamentais para a música que faria nos anos seguintes, Hermeto subiu ao palco do Planetário da Gávea (RJ) em uma noite de fevereiro de 1981. Com ele estava o “Grupo”, que contava com Itiberê Zwrang (baixo), Jovino Santos Neto (teclados), Carlos Malta (sax), os bateristas Zé Eduardo Nazário e Marcio Bahia e o percussionista Pernambuco. Apresentando novas peças, como “Homônimo Sintróvio” e “Samba do Belaqua”, Hermeto Pascoal (sax, piano, flauta, voz) deixa a improvisação correr solta – “Bombardino” e “Jegue” são excitantes exemplos neste sentido – e leva os ouvintes por uma longa festa sonora que dura quase duas horas. Registro que nunca havia sido editado comercialmente, Planetário da Gávea está sendo lançado em CD e LP duplo pelo selo britânico Far Out Recordings (que tem feito um louvável trabalho de resgate e divulgação da música brasileira e já tinha editado de Hermeto o sensacional "Viajando Com o Som"), sendo um vital testemunho do melhor instrumental feito no país à época.

 


Incipient ICP, 1966-71  ****(*)

Instant Composers Pool

Corbett vs. Dempsey

Este CD duplo, lançado em meados de 2021, é um documento importantíssimo dos primórdios da cena holandesa. Tendo como núcleo o trabalho do coletivo Instant Composers Pool (ICP), criado pelo pianista Misha Mengelberg (1935-2017), o saxofonista Willem Breuker (1944-2010) e o percussionista Han Bennink, o álbum traz peças dos tempos iniciais do projeto. Há temas editados anteriormente, especialmente em coletâneas, e outros inéditos, em um painel que começa na era pré-ICP e adentra seus tempos seminais. Um grupo comandando por Mengelberg abre a coletânea, com um tema ainda com elementos pós-bop, captado em 1966. Um grande salto estético é dado com “Jump Italiano”, de junho de 67, já sob a rubrica ICP, com convidados como Manfred Schoof e Maaren van Altena se juntando ao trio criador do coletivo. E vamos assim até as peças de julho de 1971, com registros comandados por Breuker, antes de ele se afastar do coletivo para estruturar o Kollektief. 

 

 

Historic Music Past Tense Future  *****

Peter Brötzmann/ Milford Graves/ William Parker

Black Editions Archive

Uma inédita e histórica gravação realizada em março de 2002 é o que este álbum traz. Parece até estranho constatar que não houve vários encontros em diferentes épocas deste trio: Peter Brötzmann - Milford Graves - William Parker foi uma associação rara e que somente agora, após a morte Graves, ganha um álbum à altura. Se Brötzmann e Parker estão entre os nomes mais gravados da free music, trabalhando juntos em contextos diversos desde os anos 80, Milford Graves (1941-2021), que iniciou sua carreira na década de 1960, tocou e gravou muito menos do que parece. Só por isso este já deveria ser um motivo para ouvir obrigatoriamente o álbum que agora surge. Mas vale frisar que a música oferecida aqui é de elevadíssima potência, intensa, inventiva, com o trio perfeitamente azeitado. Esta foi apenas a terceira (e última) vez que o trio tocou junto (e em um palco de significado único). “The trio performed on a small riser facing the front door of CBGBs, with Graves’ hand-painted, Orisha-adorned double bass drum kit, captured in its full thunderous glory on this recording, occupying most of the available space.” São quase 70 minutos de música, divididos em quatro temas. Editado em LP duplo. 

 


Return Concert  *****

Cecil Taylor

Oblivion Records

Este é um resgate realmente histórico de material de um momento importantíssimo na trajetória de Cecil Taylor (1929-2018). O pianista não tocava há anos em Nova York, quando uma data foi agendada para o Town Hall; era 4 de novembro de 1973. Taylor estava com seu quarteto, formado Jimmy Lyons e Andrew Cyrille, com quem já vinha tocando desde a década anterior, e o novato do grupo, Sirone, no baixo. Parte do concerto foi editada à época, em um vinil com o título “Spring of Two Blue-Js”. Mas o núcleo daquela noite foi deixado de fora, engavetado até o momento – daí o nome inteiro deste lançamento ser The Complete, Legendary, Live Return Concert. Além do resgate dos dois temas presentes em Spring of Two Blue-Js, com seus 16 e 21 minutos (peças que estavam cada uma em uma face do vinil original), agora podemos ouvir o que ficou de fora: nada menos que uma peça de 88 minutos ininterruptos (“Autumn/Parade”)! O que não dá para entender é a decisão da gravadora de editar material tão precioso apenas em formato digital. Poderia bem sair um CD duplo, o mínimo para a importância dessa música resgatada...    

 


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*quem assina:

Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com publicações como Entre Livros, Zumbido e Jazz.pt, de Lisboa. Nos últimos anos, tem escrito sobre música e literatura para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live in Nuremberg”, de Perelman e Matthew Shipp (SMP Records)