ALBERT AYLER (Revisited...)


CRÍTICAs  Dois novos lançamentos de concertos de Albert Ayler, realizados em 1966 e 1970, chegam ao mercado em reedições que ajudam a manter vivo o interesse pelo saxofonista morto cinco décadas atrás... 

 


Por Fabricio Vieira

 

Encontrado morto, boiando nas águas do East River, há cinco décadas, o lendário Albert Ayler (1936-1970) continua de tempos em tempos alimentando os lançamentos musicais. Difícil restar ainda algo realmente inédito dele perdido, mas as gravadoras sempre dão um jeito de raspar o tacho e oferecer material “novo” que atraia ouvintes e colecionadores. Neste começo de ano, já são dois os resgates de material de Ayler que chegam às lojas (virtuais, físicas, plataformas ou onde as pessoas preferirem ouvir e comprar música nesses tempos). Com o núcleo principal da obra do saxofonista, morto com apenas 34 anos, distribuído por grandes selos ligados ao mundo do free jazz, a destacar Impulse e ESP-Disk, o que apareceu nos últimos tempos tem sido basicamente gravações ao vivo. Muito deste material “inédito” já circulou antes em bootlegs ou versões reduzidas. O que fazer então para capturar o ouvinte?

 

O atual burburinho em torno de Albert Ayler é por causa do anúncio, nesta semana, de um álbum que foi chamado de Revelations. O novo atrativo é que o disco traz as versões completas de duas das últimas apresentações feitas por Ayler, nos dias 25 e 27 de julho de 1970 na Fondation Maeght, em St. Paul de Vence (França). Este material apareceu à época com o título “Nuits De La Fondation Maeght”, em dois LPs, pelo selo Shandar, com música extraída dos dois concertos. Já nos anos 90, o show do dia 25 de julho saiu em CD, com o nome “1970-Live” (pelo selo italiano Blu Jazz), ganhando nova edição remasterizada nos anos 2000 pela ESP-Disk, como “Live on the Riviera”. A gravadora Element, que está editando agora Revelations: The Complete ORTF 1970 Fondation Maeght Recordings, anuncia quase duas horas de música extra, sendo este o principal atrativo do álbum, que vai ser lançado em abril, durante o Record Store Day, em edição “Deluxe” limitada e numerada com 5 LPs, livreto, fotos inéditas, depoimentos de estrelas do meio (John Zorn, Archie Shepp, Carla Bley, Thurston Moore...) etc. Preço sugerido: 170 libras (algo como R$ 1.200). Haverá também uma edição em CD, box com 4 discos. Remasterizado por Kevin Gray a partir das fitas originais da ORTF (Office de Radiodiffusion-Télévision Française), promete som melhor do que o de todas versões que já circularam nas últimas décadas. Ao que consta, Ayler fez apenas mais um concerto depois destes resgatados, no dia 28 de julho, na Village Vacances Tourisme, ainda na França – o saxofonista morreria poucos meses depois, em novembro de 1970. Claro que o anúncio do lançamento é importante, mas vale lembrar: trata-se aqui de uma fase menor dentro da breve trajetória de Ayler. Naquela última etapa da vida, Ayler havia deixado seus momentos mais excitantes para trás, sua música era menos ruidosa, ousada e aventureira. Desde que havia dissolvido o grupo com seu irmão Donald Ayler e embarcado na experiência não tão bem-sucedida de “New Grass” (68), o saxofonista buscava um novo rumo que parece não ter encontrado. Nos concertos da Fondation Maeght ele estava acompanhado de um grupo sem muito brilho (a comparar com as bandas que formou antes), com Mary Parks (voz, soprano), Steve Tintweiss (baixo), Allen Blairman (bateria) e Call Cobs (piano, no dia 27). Nesse período, Ayler vinha tocando nos shows músicas de toda sua carreira, dos clássicos “Truth Is Marching In” e “Ghosts” a temas mais ligados à sua fase final, a destacar “Music Is The Healing Force of the Universe” e “Masonic Inborn”. O interessante aqui é ver ele voltando a soar algo mais agressivo, elevando o tom que tinha baixado nos anos imediatamente anteriores. Do que nunca foi editado antes, destaque para a peça “Revelations”, dividida em diferentes partes. Este novo álbum vai interessar mesmo os fãs mais devotos, que já conhecem profundamente seus discos oficiais e querem sempre algo a mais, com algum sabor de inédito. Para quem ainda não navegou amplamente pela obra de Albert Ayler, este não é necessariamente o mais urgente (tampouco obrigatório) lugar para se estar.

 

Apesar de 2022 não representar nenhuma efeméride de nascimento/morte de Albert Ayler, há mais gravação dele sendo reeditada. Dentro da coleção “Revisited”, do selo ezz-thetics, braço da Hat Hut, saiu há poucas semanas o álbum La Cave Live, Cleveland 1966. Em CD duplo, traz dois concertos, realizados nos dias 16 e 17 de abril de 1966. Em uma das melhores etapas de sua trajetória, Ayler levou ao palco um potente grupo formado por Donald Ayler (trompete), Michel Samson (violino), Mutawef Shaheed (baixo) e Ronald Shannon Jackson na bateria. Na apresentação do dia 17, um convidado mais do que especial: Frank Wright dobrando o sax tenor. Este material saiu anteriormente apenas no box “Holy Ghost”, compilação de raridades com nove CDs editada em 2004 e esgotada há muito (vendida hoje a preços que chegam a US$ 300). Se a qualidade sonora do material não é das melhores (a masterização de Michael Brandli faz certo milagre, se considerar que, por exemplo, a gravação do dia 16 foi realizada com apenas um microfone e “used tapes”), o registro é fundamental não só na trajetória de Ayler, mas como testemunho vital do free jazz que se fazia à época. Nesta etapa de sua obra (Ayler gravaria “Love Cry” no ano seguinte), o saxofonista vinha explorando ritmos marciais, marchas fúnebres, sonoridades de bandas de rua de New Orleans, elementos que emolduravam os incendiários solos. É nessa época que surgem alguns de seus maiores clássicos, como “Truth Is Marching In” e “Our Prayer” (que ele tocaria no velório de Coltrane). La Cave Live, Cleveland 1966 é um álbum que merece um lugar na estante, testemunho de momentos que nos fazem melhor entender o porquê de Albert Ayler ser um nome essencial na história do free jazz.  


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*quem assina:

Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com publicações como Entre Livros e Jazz.pt, de Lisboa. Nos últimos anos, tem escrito sobre música e literatura para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live in Nuremberg”, de Perelman e Matthew Shipp (SMP Records)