Ornette Coleman (Revisited...)


LANÇAMENTOs Dois geniais álbuns de Ornette Coleman do fim dos anos 60, New York Is Now e Love Call, retornam em nova edição...

 



Por Fabricio Vieira


Em meados de 1968, Ornette Coleman reuniu um quarteto com formação inédita para gravar novas composições suas. Pela primeira vez, Coleman colocava outro saxofonista a seu lado; o escolhido era o então pouco conhecido Dewey Redman (1931-2006), um antigo colega seu dos tempos de Texas. Já a sessão rítmica era formada pelos icônicos parceiros de John Coltrane, com Jimmy Garrison (1934-1976) no baixo e Elvin Jones (1927-2004) na bateria. Coleman completava à época sua primeira década profissional (considerando que seu álbum de estreia, "Something Else!!!", saiu em 1958). Muita coisa tinha acontecido nesse período. O saxofonista já havia editado mais de 15 álbuns, trabalhado com agrupações diversas e deixado pelo caminho ao menos dois dos maiores clássicos do free jazz, "The Shape of Jazz To Come" e "Free Jazz: A Collective Improvisation". Gravando então para a Blue Note, em uma época em que o selo estava mais aberto ao avant-garde, Coleman programou duas sessões de estúdio para testar as novas composições e o novo quarteto (o saxofonista havia até então gravado apenas com Garrison, em 1961, para o álbum "On Tenor"). Os encontros ocorreram em 29 de abril e 7 de maio de 1968, no A&R Studios, New York City. E resultariam em dois álbuns: New York Is Now e Love Call, registros que acabaram de ganhar uma nova edição pelo ezz-thetics, subselo da HatHut que tem feito o resgate de importantes gravações por meio de sua série Revisited

Ornette Coleman (1930-2015) seguia em busca de novos rumos e possibilidades para a sua música, fazendo de cada novo projeto um capítulo de muito particular sonoridade. Nos anos imediatamente anteriores, ele havia feito marcantes registros para a Blue Note. Com seu potente trio ao lado de David Izenzon e Charles Moffett, editou o fantástico "At the Golden Circle Stockholm" (1966), em dois volumes. Esta é uma época em que o público passou a poder  vê-lo indo além do sax alto de origem: Coleman havia adicionado a seu arsenal trompete e violino. No ano seguinte, o músico lançou outro singular registro, "The Empty Foxhole", também em trio, mas com uma formação inusitada, um olhar para o passado, outro para o futuro: no baixo, Charlie Haden, figura fundamental da primeira fase do saxofonista; já na bateria, seu filho Denardo Coleman. Com apenas 10 anos de idade, Denardo não tinha experiência para uma empreitada como aquela, mas o resultado é bastante curioso. As deficiências técnicas e a inexperiência artística de Denardo dão à ideia de liberdade um outro significado. Apesar de parte da crítica ter torcido o nariz, The Empty Foxhole é um disco de valor, além de trazer um dos melhores temas de Ornette, "Good Old Days". Se a bateria foi a grande polêmica desse álbum, Ornette não fez por menos: para seu próximo projeto na Blue Note, convocou um nome unânime, Elvin Jones. E fim de papo.

As sessões que resultaram em New York Is Now e Love Call não foram originalmente planejadas da forma que ficaram, separadas. Foram dois dias de gravações, mas as 10 peças registradas formavam um todo único. Com produção do chefão Francis Wolff, ambos os álbuns mesclariam temas (ou versões) gravados nos dois dias. As peças registradas foram: "The Garden of Souls", "Toy Dance", "We Now Interrupted For a Commercial", "Broad Way Blues", "Round Trip", "Open To The Public", "Check Out Time", "Airbone", "Love Call" e "Just Time" (esta, a única faixa antiga, gravada anteriormente por Ornette com seu quarteto clássico, em 59). As cinco primeiras dessas peças formaram o álbum New York Is Now; as quatro seguintes estariam em Love Call  "Just Time" ficaria engavetada, vindo à luz apenas na edição em CD de Love Call, preparada em 1989. O novo New York Is Now & Love Call Revisited junta as duas sessões, reunificando a ideia original de Coleman e seu quarteto. Ouvir o disco assim ajuda o ouvinte a ter uma visão mais unificada da gravação, que seria a única feita por esse quarteto. À época, Coleman estava no fim de seu contrato com a Blue Note (nos próximos anos gravaria por outras gigantes concorrentes, passando por Impulse/BMG/Columbia). E talvez isto tenha pesado na decisão da Blue Note de quebrar a sessão. New York Is Now saiu pouco depois do registro, ainda em 1968, mas Love Call apareceria somente em 1971. Talvez por questões comerciais, não foi lançado um "New York Is Now II": a gravadora deu outro nome à sessão, deixando a impressão de que se tratava de algo realmente novo ou inédito. E isto se manteve assim com o passar do tempo, com o surgimento de reedições. Quando, na virada dos 80/90, os dois discos ganharam versões em CD, foram mantidas suas divisões; uma coisa boa que a Blue Note fez nos CDs foi trazer sobras de estúdio, versões alternativas de faixas que compunham cada disco original, sempre tomando o cuidado de não misturar as peças, mantendo a seleção de temas dos vinis como lançados.

O ezz-thetics, em sua série Revisited, tem a proposta de apenas editar as versões que aparecem nos álbuns originais resgatados. É uma proposta que tem sua justificativa, mas é uma pena que resulte em deixar de fora takes alternativos e extras que, às vezes, são até mais interessantes que os temas originalmente editados. Dessa forma, New York Is Now & Love Call Revisited tem apenas a versão original da faixa "Love Call". Este talvez seja o tema mais intenso desses discos, com Ornette tocando trompete, fazendo um de seus melhores solos no instrumento (Redman também traz um de seus solos mais inventivos da sessão, com um Jones robusto como nunca). Só que a versão alternativa, que apareceu na primeira edição em CD do álbum, é essencial, sendo tão explosiva quanto. Com 5m30 (a original tem 8m46), traz energia concentrada, sendo algo mais acelerada e com a percussão ainda mais encorpada. Uma pena os ouvintes não a terem em New York Is Now & Love Call Revisited... Não sei se muitos críticos colocariam um desses dois discos em um "Top 5" de Ornette Coleman, mas eles inegavelmente formam um documento não só fundamental pelos envolvidos, mas pela vibrante música oferecida (é possível que eu colocasse Love Call em um Top 5; mas talvez pese o fato de o disco ter uma memória afetiva bastante forte para mim. Este foi o primeiro álbum de Ornette Coleman que comprei, no fim da década de 1990, na antiga loja Museu do Disco, em São Paulo. Então, de certa forma foi ele o responsável por me abrir o universo colemaneano). As nove peças que compõem o álbum são expressivamente bastante abertas, mostrando amplos aspectos da música de Coleman, mas sempre mantendo a coesão de uma sessão sólida, gravada por músicos focados e plenamente conscientes do que estavam elaborando. Encontramos aqui desde os elementos R&B de "Broad Way Blues", quase dançante em sua abertura; a improvisação livre de "We Now Interrupted for a Commercial", com sua irônica vinheta e Coleman ao violino; o algo sombrio lirismo que nos leva a "The Garden of Souls"; as vozes dobradas que abrem e fecham "Check Out Time" trazendo ecos dos tempos iniciais de Coleman, com solos de saxes altamente potentes em seu núcleo; o free jazz direto de "Love Call" e "Airbone". Em resumo, ouvir as sessões de New York Is Now e Love Call é sempre uma experiência excitante e revigorante, que nos faz lamentar que este sensacional quarteto não tenha levado adiante outros projetos.

 


Ornette Coleman  ****(*)

New York Is Now & Love Call Revisited

ezz-thetics

  

 






---------

*quem assina:

Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com publicações como Entre Livros, Zumbido e Jazz.pt, de Lisboa. Nos últimos anos, tem escrito sobre música e literatura para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live in Nuremberg”, de Perelman e Matthew Shipp (SMP Records)