CRÍTICAs O tão aguardado disco de estreia do New Masada
Quartet, comandado por John Zorn, finalmente chega ao mercado...
Por Fabricio Vieira
Sob diferentes aspectos, pode-se dizer
que o
Masada é o mais ambicioso e importante projeto de
John Zorn. Até porque o
Masada teve diversas subdivisões, diversas formações com propostas
interpretativas e expressivas sempre renovadas. E quando o projeto já parecia
ter deixado seus tempos mais vibrantes para trás, eis que surgiu, em 2018, o
New Masada Quartet. A história do projeto Masada é bem-conhecida: em 1993, tateando
as possibilidades de diálogo entre suas raízes judaicas e o jazz mais livre,
Zorn iniciou uma série de composições e formou um novo quarteto, o Masada, com
Dave Douglas (trompete), Joey Baron (bateria) e Greg Cohen (baixo). A feitura
dessas composições seguiu pelos 25 anos seguintes, terminando em 2018 com um
total de 613 peças – o mesmo número dos mandamentos (“mitzvoth”) encontrados na
Torá. Esse conjunto formou o
Masada Songbook, dividido em três partes: “Book
One”, com 205 temas; “The Book of Angels”, com 316 peças; e “The Book Beriah”,
com 92. O "quarteto clássico" é o mais conhecido intérprete do
songbook (em especial, do “Book One”), mas o material também foi explorado por
outros grupos, como o sexteto Electric Masada, o Masada String Trio, Bar Kohba,
Masada Quintet, além de muitas gravações individuais de artistas vários.
Por um desses eventos que poderia ser
visto hoje como um feliz acaso, Zorn trouxe ao país, em outubro de 2019,
exatamente o então recém-arquitetado New Masada Quartet, com Julian Lage
(guitarra elétrica), Kenny Wollesen (bateria) e Jorge Roeder (baixo acústico).
À época, em conversa com o
FreeForm, FreeJazz, Zorn falou como o novo quarteto
surgiu: “
O Julian Lage tocou durante uma semana no The Stone, no ano passado [2018], e
uma noite ele me chamou para participar como convidado do seu trio. Eu levei
algumas peças do Masada e, quando tocamos, imediatamente me senti
superconfortável e inspirado. Julian e Jorge cresceram ouvindo essa música,
então está no DNA musical deles. Nunca me senti tão à vontade em um grupo.
Quando escrevi música para o Masada pela primeira vez, em 1993, minha ideia era
ter uma banda com guitarra, baixo e bateria – mas a magia do quarteto clássico
assumiu o controle. 25 anos depois, com Julian, Jorge e Kenny, isso parece tão
verdadeiro e oportuno”. Apesar do burburinho que causou, este grupo acabou não
sendo visto por muita gente até o momento. Afora as diferentes apresentações
que realizaram no Village Vanguard (NYC), shows de 2020 na Europa, em festivais
em países como Espanha e Noruega, foram cancelados por causa da pandemia. E a
agenda de turnê deles só será mesmo retomada em 2022. Ou seja, salvo um ou
outro bootleg que andou circulando, o New Masada Quartet realmente é algo novo
ao ouvido de muita gente, o que só vinha elevando a expectativa pelo disco de estreia
do grupo, enfim lançado.
O quarteto entrou em estúdio pela
primeira vez há pouco tempo, em 8 de junho de 2021. O encontro ocorreu no estúdio de
Bill Laswell, em New Jersey. E foi de lá que saiu o material presente neste
lançamento. São oito faixas, em um total de 53 minutos (curioso que os shows
que fizeram no Brasil duraram por aí, cerca de 50 minutos, algo mais, algo
menos). Os temas escolhidos para este disco de estreia foram retirados metade
do "Book One" (Hath Arob, Sansanah, Kedushah e Piram) e metade do
"The Book of Angels" (Tharsis, Rigal, Mibi e Tagriel), em uma
excitante combinação que oferece diferentes perpectivas da sonoridade
desenvolvida pelo quarteto. Para quem a princípio temesse que se tratasse apenas
de uma versão nova com uma instrumentação um pouco diferente da do quarteto
clássico (com a troca do trompete pela guitarra), a escolha do repertório, além
da própria música desenvolvida, se revela bastante fresca, com uma pegada
única. Diferentes faces do projeto Masada aparecem aqui, com temas de
intensidades variadas e propostas abertas em sua busca por uma interpretação de
personalidade muito particular de peças antes (algumas em variados contextos)
já registradas. Se a unidade do quarteto é essencial para o resultado
brilhante, é indiscutível os papéis centrais ocupados por Zorn e Lage. Quem viu
as apresentações ao vivo sabe que o saxofonista realmente comanda o grupo,
regendo com sinais de entrada e saída, indicando quando os parceiros devem solar,
atacar, silenciar. Mesmo tratando-se de peças compostas e com Zorn
comandando seu desenvolvimento, há uma liberdade intrínseca a essa música, que
a deixa sempre arejada. Lage se tornou o mais recente grande parceiro de Zorn.
Com praticamente a metade de sua idade (33 anos do guitarrista contra 68 do
saxofonista), traz uma vivência diferente da música, o que ajuda em muito a
arejar o repertório de Zorn (e ele demonstra saber disso, tirando tudo que pode
daí).
O álbum abre com a dançante "Tharsis", com a guitarra
atravessando o baixo bailante de Roeder e o sax alto destilando o tema
principal e se mantendo no centro durante pelo menos a metade da peça, até a
entrada do solo de Lage. A empolgação de Zorn é sensível; podemos ouvi-lo
inclusive dando gritinhos aqui e ali, inevitavelmente contagiando os ouvintes.
À sequência, o tom muda. "Rigal" inicia com uma introdução da
guitarra e logo se abre à sua melancólica marcante melodia, com um doído
lirismo cantado pelo sax (que ocupa o papel do violino na tocante versão
registrada anteriormente por Mark Feldman e Sylvie Courvoisier). Há outra
virada de clima com a chegada de "Hath Arob". Faixa marcante do
cancioneiro do Masada, foi gravada em mais de uma oportunidade tanto pelo
"quarteto clássico" quanto pelo Electric Masada, e funciona como uma
ponte entre a contemporaneidade do Masada e seus tempos heroicos nos anos 90.
Revigorada com a guitarra e com um Zorn mostrando que ainda pode ser
intensamente cortante, seria facilmente uma música de trabalho do disco (se
isso existisse no universo da free music). O clima se mantém na quarta faixa,
quando outra peça altamente conhecida surge: a belíssima "Sansanah",
que nos leva ainda mais longe (a peça apareceu pela primeira vez em
"Beit", o segundo registro de estúdio do Masada, lançado em 1994).
Com seus angulosos e faiscantes solos de sax, Sansanah traz o perfeito jogo
entre melodismo judaico e incandescência free jazzística, em alguns dos
momentos mais fortes do álbum. A ligeira "Mibi", com seus ataques duplos
de sax e guitarra, marcada por rápidas entradas e saídas e os solos mais
acelerados de Zorn, eleva a energia ao máximo, antes de uma parada para respiro
com "Kedushah", mais lírica e profundamente contemplativa, marcada em
sua abertura por tocante solo de Lage (amparado por vigorosa exploração
percussiva de Wollesen), que nos leva ao tema cantarolado pelo sax.
"Tagriel" puxa o tom para cima de novo, abrindo já com um grito do
sax. Esta peça apareceu pela primeira vez no disco "Stolas", assinado
pelo Masada Quintet, cerca de uma década atrás, que trazia uma
interessante formação: Dave Douglas, Baron e Cohen, da formação original,
acompanhados por Uri Caine e o saxofonista Joe Lovano. Zorn não tinha gravado
esta peça e é realmente empolgante vê-lo executando-a. Com seu altamente
cantarolável tema, Tagriel é uma composição daquelas que você passa o resto do
dia assobiando. O álbum fecha com a conhecida "Piram", uma das peças
mais executadas do Masada Songbook, mas que acaba funcionando aqui como uma espécie
de epílogo, trazendo apenas pouco mais de 1 minuto, como que deixando o
ouvinte alerta e na expectativa para o próximo episódio a ser oferecido (esperamos que seja!) por
esse sensacional quarteto. Com equilibrada energia, telepática interação e
inventivas soluções harmônicas e expressivas, o New Masada Quartet faz deste seu disco de estreia um dos capítulos fundamentais da longa história do projeto
Masada.
New Masada Quartet *****
John Zorn
Tzadik
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*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez
mestrado em Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de
S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires.
Colaborou também com publicações como Entre Livros, Zumbido e Jazz.pt, de
Lisboa. Nos últimos anos, tem escrito sobre música e literatura para o Valor
Econômico. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe
Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo
Records), e “Live in Nuremberg”, de Perelman e Matthew Shipp (SMP Records)