Corre El Río de La Memoria Sobre La Tierra...



CRÍTICAs  A saxofonista argentina Camila Nebbia lançou um dos discos mais interessantes do ano acompanhada de um incrível quarteto...  


 


Por Fabricio Vieira

  

Camila Nebbia surgiu na cena há não muitos anos, mas já se consolidou como uma das vozes de destaque da música livre contemporânea. A artista argentina, atualmente residindo na Europa, tem, trabalho a trabalho, ampliado seu leque expressivo, mostrando que, afora sólida saxofonista, é uma compositora de ideias sempre renovadas. O superquarteto que reuniu para este registro foi uma escolha perfeita para a proposta apresentada; a seu lado aqui estão três nomes centrais da cena argentina: Paula Shocron (piano e percussão), Barbara Togander (voz e turntables) e Violeta Garcia (violoncelo). Como em outros trabalhos seus, o título é bastante extenso: Corre el río de la memoria sobre la tierra que arrastra trazos, dejando rastros de alguna huella que hoy es número (título que vai se revelar em sua plenitude apenas no final da principal faixa do álbum, quando vozes sussurradas assumem a conclusão da peça). O álbum é uma inebriante, reflexiva e exploratória criação sonora, centrada em seu tema de abertura ("Corre el Río de la Memoria"), que traz aproximadamente 37 minutos ininterruptos (há mais duas pequenas peças completando o disco). Vale destacar logo que este registro é mais do que simplesmente uma impressionante peça musical. "É uma obra escrita em reação a toda violência de gênero e às diferentes formas de violência e opressão social que vivemos no mundo", diz Nebbia no texto que acompanha o disco, nos lembrando que a free music tem, em seu mais de meio século de existência, também assumido em diferentes contextos seu papel de arte de protesto. E se nos faz refletir como um todo, a começar pelo título, o álbum nos toca profundamente pelo seu desenvolvimento sonoro em si. 

Como em um processo ritualístico, a sessão se inicia com vagar, com um pequeno sino tocado por Shocron funcionamento como abertura cerimonial. A música vai se arquitetando aos poucos, nos engolfando progressivamente (difícil interromper a audição) com ruídos, sussurros, pontilhista percussão, palavras no ar, nos preparando para os momentos de maior exaltação; o sax vai elevar o tom mesmo apenas já próximo dos 14 minutos, com ruídos percussivos e um cortante violoncelo o amparando, antes que o piano também cresça e se torne uma voz de contraste, duelando com o sax até encontrar, não muito depois, seu ápice. Após adentrar uma esfera contemplativa mais uma vez, temos novo cume lá pelos 25 minutos, com a voz de Togander atravessando nossos sentidos, entrecortada por um rascante violoncelo, o sax em solo crescente e o piano em entorpecente e soturna melodia arrepiante. Captado em agosto de 2020 no Estudio Doctor F., "após longos cinco meses de quarentena em Buenos Aires", o álbum destila e catapulta ideias e vozes sufocadas pela eclosão da pandemia, nesses tempos de sensível indiferença, reverberando sentimentos compartilhados em todos cantos do mundo. "Como lutar contra um sistema que mata dia a dia, sem deixar mais vestígios do que uma triste estatística? Quão acostumados estamos agora, durante todo esse período vivido em meio à pandemia, a ver estatísticas e perceber a memória apenas como números?", questiona Nebbia. Com a sessão de gravação disponível em vídeo, a experiência de adentrar Corre el Río de la Memoria... se torna ainda mais sensivelmente íntima e tocante. Este é um grande trabalho, editado em vinil e digital, que talvez não tenha tido a oportunidade/repercussão que merecia. Não deixem de ouvi-lo.
  

 


Corre el Río de la Memoria Sobre la Tierra...  *****

Camila Nebbia Quartet

Ramble Records

 

 






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*quem assina:

Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com publicações como Entre Livros, Zumbido e Jazz.pt, de Lisboa. Nos últimos anos, tem escrito sobre música e literatura para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live in Nuremberg”, de Perelman e Matthew Shipp (SMP Records)