SAX e PIANOS: Brass and Ivory Tales


CRÍTICAs
Ivo Perelman levou seu sax tenor para encontros inéditos com nove pianistas. Esses duos foram agrupados em um box com nove discos, cada um dedicado a uma dessas parcerias... 



Por Fabricio Vieira

Ao completar 60 anos de idade, o saxofonista Ivo Perelman queria editar um álbum que fosse realmente especial. Nascido em 18 de janeiro de 1961, em São Paulo, Perelman já contava com uma discografia de mais de 100 álbuns. O que fazer de diferente, marcante? Daí veio a ideia: porque não preparar um box com uma série de duos de sax e piano, ao lado de músicos com os quais nunca havia lançado um disco antes? Assim surgia Brass and Ivory Tales.

Os duos de sax e piano formam um capítulo à parte na discografia de Perelman. Por um desses felizes acasos, o primeiro registro que fez nesse formato foi ao lado daquele que se tornaria seu principal parceiro, Matthew Shipp. Isso aconteceu em janeiro de 1996, quando Perelman e Shipp se encontraram no estúdio Systems Two, no Brooklyn (NYC). Daquela sessão saíram as nove peças que comporiam o álbum "Bendito of Santa Cruz", editado pelo selo Cadence Jazz Records. Não tardou para que Perelman retomasse o formato. Ao mesmo Systems Two, voltou em junho de 96, mas desta vez acompanhado do pianista Borah Bergman (1926-2012). Dali sairiam as peças que estariam no disco "Geometry" (Leo Records). Mas, apesar dessas experiências primeiras no formato terem resultado em álbuns com boa recepção, ele deixou de lado os duos de sax e piano por muitos anos. Seria apenas em setembro de 2012 que retomaria o formato, mais uma vez ao lado de Shipp. E a gravação aconteceu no mesmo bairro nova-iorquino, agora no Parkwest Studios. Editado no ano seguinte como "The Art Of The Duet" (Leo Records), o álbum trazia o sugestivo subtítulo de "Volume One". Nunca houve um The Art Of The Duet: Volume Two, mas esse álbum marcava o início de uma prolífica e contínua parceria com Shipp, durante toda a década que se seguiu, registrada em uma dezena de álbuns em duo. Após este reencontro com Shipp, Perelman lançou apenas um disco em dueto com outro pianista, Karl Berger ("Reverie", 2014). Isso até agora.

Mostrando que realmente o formato se tornou um dos veículos fundamentais para sua expressão artística, o saxofonista convocou nada menos que 9 pianistas para dividirem ideias com ele nessa nova empreitada. Com cada um deles gravou uma sessão, bastante distintas em seus resultados, como mostram cada um dos 9 CDs que formam Brass and Ivory Tales, editado pelo selo polonês FSR (Fundacja Sluchaj Records). Todos os nomes convidados por Perelman são bem-conhecidos por quem acompanha o universo free jazzístico. São eles: Dave Burrell, Marilyn Crispell, Craig Taborn, Aaron Parks, Aruán Ortiz, Sylvie Courvoisier, Angelica Sanchez, Vijay Iyer e Agustí Fernández. "Os pianistas foram escolhidos por suas características únicas, pensando em formar um conjunto que oferecesse ao ouvinte estilos variados e complementares", diz Perelman. Essa variedade se revela em diferentes pontos, a começar pelo geracional, indo de Dave Burrell, 81 anos, que faz parte da cena free jazz desde seus tempos heróicos, ainda na década de 1960, a Aaron Parks, 38 anos, voz que se estabeleceu apenas nos anos 2000. Destaca-se também a variação de nacionalidades; Perelman é um brasileiro radicado em Nova York, e a seu lado aqui estão artistas vindos de EUA, Suíça, Cuba e Espanha, o que ilustra a universalidade da free music. "Tocar com pianistas tão diversos (trajetória e idade) é muito estimulante, pois me ofereceu a oportunidade de saborear várias influências e estilos de jazz, mas todos com uma mesma perspectiva da criação livre", diz o saxofonista. De todos os convidados, Perelman tinha trabalhado anteriormente apenas com Crispell, com quem gravou alguns potentes álbuns nos anos 1990 ("En Adir", "Sound Hierarchy").

As gravações que compõem Brass and Ivory Tales vêm de datas distintas. Os mais antigos registros foram feitos com Crispell, que datam de março de 2014; com Fernández, em julho de 2017; e Ortiz, que vem de dezembro de 2017. Dentre os mais recentes, estão os temas criados com Taborn, Sanchez e Iyer, captados em maio e junho deste ano. "As primeiras gravações não foram (feitas pensando no box). Ia aproveitando viagens pela Europa ou a disponibilidade de certos músicos para ir gravando os duos, até que me veio a ideia de um dia lançar uma caixa (isso já lá pelo quinto duo)." Essa variedade temporal também se reflete na multiplicidade sonora que os discos trazem, afinal, o próprio saxofonista mudou muito sua sonoridade nesses anos todos. Dessa forma, Brass and Ivory Tales nunca se revela repetitivo: cada CD tem uma história, um diálogo muito particular que merece ser apreciado em sua própria complexidade. É interessante que, apesar de cada duo formar um CD, o tempo oferecido por eles é bastante diverso  ou seja, cada diálogo tem sua própria forma de se desenvolver. O mais breve é o dueto com Parks, que totaliza 39 minutos; já o mais longo, o com Taborn, que alcança os 65 minutos. Afora o tempo total, há a divisão interna de cada disco, também mutante e representativa de como as ideias surgem e se completam cada uma a seu tempo. Com Burrell, a sessão resultou em apenas duas peças bastante extensas, de 20 e 37 minutos. Já ao lado de Courvoisier saíram 11 temas, a maioria entre 3 e 5 minutos. Essa imprevisibilidade é uma das belezas da improvisação livre, com as ideias tendo a duração que demandarem, sem limites ou imposições. É claro que o interesse do ouvinte irá variar de um CD a outro, de acordo com a própria proximidade que tenha à música dos pianistas convidados ou mesmo pela sintonia maior que estabeleça com este ou aquele duo. Diante dessa ampla, variada e inédita oferta sonora, eu estava particularmente ansioso para ouvir os encontros com Dave Burrell, por todo seu peso histórico; com Sylvie Courvoisier, por ser uma das artistas que mais tem levado o piano a novos campos atualmente; e com Vijay Iyer, um dos nomes fundamentais do piano contemporâneo, de geração mais próxima à de Perelman e que tem projeto a projeto revelado uma inventividade sem fronteiras. Uma primeira audição do box bastou para logo destacar também o encontro com Fernández, que traz os momentos mais furiosos, explosivos do conjunto. Surpreende também o lirismo que emana de algumas peças criadas ao lado de Crispell. Com Courvoisier, saíram as faixas mais abstratas, sufocantes, sombrias até. Brass and Ivory Tales é um fundamental documento da música de Perelman e, em certo aspecto, uma síntese de uma face mais recente de seu trabalho. A multiplicidade discursiva à qual seus parceiros o levam a navegar neste álbum nos remete por vezes à sua voz de outros tempos e, em outros momentos, nos revela rumos novos de seu sopro.  


Aos que  saborearam os encontros, fica a questão: haverá novas parcerias com esses pianistas? "Sim, já comecei a gravar outra série com estes mesmos pianistas, só que desta vez serão trios ou quartetos. Sairão pelo selo Mahakala. Já foram gravados trio com Aruán Ortiz; trio com Dave Burrell; e quarteto com a Angelica Sanchez", conta Perelman. Para quem sentiu falta da presença de Matthew Shipp neste box, talvez o devamos ver como hors-concours nessa história. Não à toa, um novo álbum em duo com Shipp já está forno. Trata-se de Fruition, a ser lançado pelo ESP-Disk. Este próximo disco com Shipp terá 11 novas peças e será editado em setembro do próximo ano. É interessante que Brass and Ivory Tales tenha sido lançado entre Special Edition Box e Fruition, ou seja, entre dois álbuns em duos com Shipp, como que demarcando o espaço nevrálgico que Matthew ocupa atualmente na discografia e na história sonora de Perelman.


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*quem assina:

Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com publicações como Entre Livros, Zumbido e Jazz.pt, de Lisboa. Nos últimos anos, tem escrito sobre música e literatura para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live in Nuremberg”, de Perelman e Matthew Shipp (SMP Records)