Por Fabricio Vieira
Henry Threadgill Zooid ****
Poof
Pi Recordings
O saxofonista Henry Threadgill apresenta mais um capítulo de seu projeto Zooid, com o qual tocou no Brasil em agosto de 2018, durante o Sesc Jazz. Mais uma vez, estão ao lado de Threadgill (sax alto, flautas) José Davila (tuba e trombone), Liberty Ellman (guitarra), Christopher Hoffman (violoncelo) e Elliot Humberto Kavee (bateria). Registrado em dezembro de 2019, Poof traz cinco novas composições. O Zooid apresenta um free jazz camerístico em que as intrigantes relações harmônicas funcionam sempre de forma muito coesa, tudo bem equilibrado e moldado pela hábil fatura composicional de Threadgill. Sob seu justo comando, o quinteto oferece uma música detalhista, de arranjos minuciosos e precisos. Há espaços solistas – como o tocante solo de sax na faixa-tíulo – em cada composição, mas que nunca extrapolam os limites desenhados pela peça. A coesão do trabalho não limita as possibilidades oferecidas, com os temas tendo marcas bem particulares e com protagonismos distintos. De fato, Threadgill pensou cada uma das composições com um ou dois instrumentos em destaque: "Come and Go", que abre o disco, para sax e violoncelo; "Poof", para sax e guitarra; "Beneath The Bottom", onde o protagonismo é do trombone, com Davila encontrando espaço mais generoso para mostrar suas habilidades; "Happenstance", para flauta e bateria; e "Now And Then", a faixa mais agitada, algo swingante até, com tuba e guitarra em seu centro. Mais um sólido capítulo para celebrar as duas décadas de história do fundamental Zooid.Walpurgisnacht ****(*)
Total Music Association
NoBusiness Records
Além de apresentar novos artistas e a música que está sendo feita hoje, o selo lituano NoBusiness Records tem realizado um incrível trabalho de resgate de gravações de décadas atrás, fora de catálogo ou mesmo inéditas. Após a vital reedição do trabalho da banda Modern Jazz Quintet Karlsruhe no ano passado, o selo traz agora mais uma preciosidade alemã perdida no tempo. Total Music Association foi um dos muitos grupos de free music que surgiram na Europa na virada dos anos 60 e 70. Septeto, fez apenas este registro, editado em 1971 de forma independente. Era formado por: Hans-Jörg Hussong (saxes barítono e soprano), Andreas Boje (trombone), Wilfried Eichhorn (tenor e bass clarinet), Erich Schröder (viola), Helmut Zimmer (piano), Matthias Boje (baixo) e Rudi Theilmann (bateria). Walpurgisnacht trazia apenas duas longas faixas, uma em cada lado do vinil, improvisação coletiva de picos ruidosos e enérgicos, bem ao sabor da época. A nova versão tem um bônus, uma faixa (simplesmente chamada de "Improvisation") com 21 minutos de música inédita; gravado em 1988, este bônus na verdade é um trio comandado pelo saxofonista Hans-Jörg Hussong (que era o idealizador do grupo original), com a participação do baixista Matthias Boje. Importante registro para conhecer mais amplamente a free music europeia do período.Vitalic ****
Pedway
ears&eyes Records
Pedway é um trio criado em 2006, em Chicago, que reúne a saxofonista Caroline Davis, o baixista Matthew Golombisky e o baterista Quim Kirchner. A ideia por trás do projeto era improvisar, criar "sem palavras". Segundo o próprio trio, a proposta era nunca discutir, preparar ou verbalizar o material sonoro. "Esta música é puramente improvisada, primordial e energizante." E desde o álbum de estreia, "Subventure" (2008), foram desenvolvendo essa música improvisada, herdeira do free jazz clássico, mas aberta ao rock e a outras sonoridades que interessavam os músicos. "As improvisações são inspiradas por muitos grupos locais de Chicago e atuam como uma ponte conectando uma variedade de estilos musicais", diziam na apresentação do primeiro álbum. O trio acabou entrando em um período de hiato, com a mudança de cidade de seus membros (Golombisky, fundador do selo ears&eyes, foi para Buenos Aires, onde vive atualmente). Em 2017, Caroline Davis (sax alto), Golombisky (baixo elétrico) e Kirchner tiveram seus encontros derradeiros nos palcos de Chicago. É dessas apresentações, que aconteceram em 29 e 30 de agosto de 2017, no Café Mustache e no The Whistler, que vem o material deste novo álbum. De um total de cerca de três horas de registro, extraíram as nove faixas presentes em Vitalic. O trio está em grande forma aqui, com Davis especialmente inspirada, nos oferecendo solos envolventes e linhas de grande imaginação que se mostram certeiras para a música enérgica sem ser explosiva do trio. Vitalic sai em LP, edição limitada de 250 cópias.Sommes ****
Le GGRIL
Tour de Bras
Criada na pequena cidade canadense de Rimouski, ao leste de Quebec, a orquestra Le GGRIL lança agora provavelmente seu mais ambicioso projeto. Em comemoração a seus 15 anos de existência, a big band preparou este Sommes, um álbum triplo com cerca de 210 minutos de música, mostrando toda sua versatilidade. Com 21 músicos, tem uma formação com instrumentos bastante variados, com sopros, cordas, guitarra elétrica, acordeon, eletrônicos, percussão e voz, trazendo um colorido e uma paleta sônica bem particulares. Tendo a música criativa e improvisada como norte, a Le GGRIL já trabalhou com artistas como Evan Parker e Ingrid Laubrock. Para Sommes, encomendaram 12 peças para diferentes compositores, entre canadenses e estrangeiros, como Lisa Cay Miller, Robert Marcel Lepage e Caroline Kraabel, resultando em um álbum formado por faixas de complexidade e perfis estéticos variantes, com sensíveis nuances de um tema a outro. O resultado é uma obra de profunda elaboração, que demanda uma escuta atenta e que deve ter em salas de concertos seu espaço mais adequado para ser apreciada ao vivo. Produzido e mixado por Michel F. Côté, com direção musical de Guido Del Fabbro, o álbum foi gravado na Coopérative de Solidarité Paradis, em setembro de 2020.El Templo ****(*)
Paula Shocron/ William Parker/ Pablo Díaz
Astral Spirits
Alguns anos atrás, a pianista Paula Shocron e o baterista Pablo Díaz tiveram a oportunidade de iniciar uma parceria com o lendário baixista William Parker. Entre encontros em Nova York e Buenos Aires, os dois artistas argentinos não hesitaram em unir suas ideias com as de Parker, alcançando resultados realmente potentes, como já mostrava o primeiro álbum deles em trio, "Emptying The Self" (2017). Agora eles apresentam um novo registro, El Templo, em que mostram uma centrada sintonia. Captado no Scholes Street Studio, no Brooklyn (NYC), em setembro de 2019, o álbum é formado por quatro temas, que oscilam entre 8 e 30 minutos. Com a improvisação livre em seu cerne, o trabalho do trio apresenta temas muito sólidos e inventivos, nos surpreendendo não poucas vezes, com soluções realmente estimulantes às dificuldades impostas por um dos formatos mais explorados no universo jazzístico. Das explosões enérgicas de "Los Jardines" à construção fraturada e mais abstrata de "Capricornio" ou as belas e quebradiças linhas melódicas que surgem em "Ausencia", um álbum para ser ouvido muitas vezes. E vale sempre destacar o trabalho genial de Shocron, uma das mais poderosas pianistas a fazer a música neste século. Fechamos com as palavras do mestre Matthew Shipp, que escreveu as liner notes: "Paula has a firm and beautiful touch – she creates a really profound-strong but gorgeous wall of sound in the base register – but she always keeps some line going through it, almost like she has some background in romantic piano; she can shake the time-space continuum in a profound way with the sheets of sound in the bass register in a poetic way. She can also get a real patchwork of motifs going and moving many directions when she gathers steam in the middle register. She also has a phenomenal ability to play jazz based harmonies spaced out in a free jazz context and her voicings imply a really strong melody line though there is not a written melody line to begin with. To do this in a convincing way is a very very rare talent. She has it".Lull *****
Jessica Pavone
Chaikin Records
A violista Jessica Pavone tem desenvolvido um trabalho como compositora que revela uma ampla imaginação e profundidade criativa. Quem ouviu seu anterior "Lost and Found" (2020) terá uma ideia do que Lull oferece, sendo como que uma continuidade de fatura mais ambiciosa. Se lá Pavone trabalhou com um quarteto, agora ela coloca em palco um octeto de cordas para desenvolver suas peças. A esse conjunto, adicionou a participação de dois solistas: o trompetista Nate Wooley e o percussionista Brian Chase. O octeto de cordas é formado por, sempre dobrados, violino, viola, violoncelo e baixo acústico. Com essa instrumentação em mãos, Pavone leva ao extremo sua concepção de criação musical. Camadas hipnóticas, drone, minimalismo, temas circulares, sua música vai nos engolfando em um processo de tensão e anestesiamento dos sentidos, se revelando uma experiência inebriante. "Lull directly reflects Pavone’s interests by centering flexibility rather than perfection - the music is meant to sit right in the body, not force the artists to cram their hands in positions that simply don’t work. Her score for Lull focuses on open pitches that players oscillate between at their own rate, taking advantage of the natural resonance of instruments", diz o release. Em quatro partes, centra o foco nas cordas em "Indolent" e na sombria "Midmost"; a percussão de Chase ganha destaque em "Holt"; enquanto o trompete de Wooley tem seu momento protagonista em "Ingot". Lull, gravado exatamente um ano atrás, no Scholes Street Studio, no Brooklyn (NYC), sedimenta Pavone como uma das artistas imperdíveis da atualidade.---------
*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com publicações como Entre Livros, Zumbido e Jazz.pt, de Lisboa. Nos últimos anos, tem escrito sobre música e literatura para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live in Nuremberg”, de Perelman e Matthew Shipp (SMP Records)