PLAY IT AGAIN... (Duos)


LANÇAMENTOs
 Novidades de artistas de diferentes países. Experiências variadas em duos. Ouça, divulgue, compre os discos...

 



Por Fabricio Vieira

 

Searching For The Disappeared Hour  ****(*)

Sylvie Courvoisier/ Mary Halvorson

Pyroclastic Records

Este reencontro entre duas das vozes mais inventivas da free music não tinha como não dar em um grande resultado. A pianista suíça Sylvie Courvoisier e a guitarrista de NY Mary Halvorson já haviam gravado em duo em 2017 ("Crop Circles", Relative Pitch ). O registro que sai agora é bem fresco, uma fotografia da arte das duas instrumentistas neste momento; a sessão foi captada no começo de junho passado, no estúdio Oktaven Audio, em Mount Vernon (NY). São 12 faixas, nas quais Courvoisier e Halvorson se revezam na autoria. Se a improvisação, como parte central da linguagem delas, é um ponto sempre presente, as peças também trazem partes (umas mais, outras menos) escritas, com ideias que servem de ponto de partida ou de base para o desenvolvimento da música. “I think this album is much more developed”, diz Courvoisier no release. “When I wrote pieces for Mary, I really thought about all the possibilities of the guitar. And her music has pretty tonalities, great melodies and a very clear sense of harmony and melody, so I love to darken it.” Há momentos de grande lirismo, como na encantadora balada "Faceless Smears". Há intricadas construções em que cordas e teclas criam um universo de possibilidades sonoras desconcertantes ("Four-Point Play"). O ouvinte encontrará também peças que parecem de fato escritas, tamanha a perfeição com que as ideias vão se desenvolvendo (como "Torrential"). “We both have an affinity towards darkening things”, diz Halvorson, “which is great because you can start with a joyous melody and there's all kinds of room to mess with it. We're both really open to that. And Sylvie is great at adding harmonies and filling stuff in, so I was happy to leave space for her to do her thing, not only in the improvised sections but also within the written parts”, conclui.

 


Impermanence  ****

Violeta Garcia/ Émille Girard-Charest

Inexhaustible Editions

Duas jovens vozes da free music contemporânea se uniram aqui em projeto de muita potência expressiva. Este desconcertante duo de violoncelos traz a argentina Violeta Garcia ao lado da canadense Émille Girard-Charest. O registro foi realizado em outubro de 2019, no Ideo Music Studio, em Buenos Aires, e traz cinco peças, improvisação livre de elevada criatividade. Explorando técnicas estendidas e trazendo elementos das diferentes experiências de cada uma que vai da música de câmara (Girard-Charest ) ao rock (Garcia) , a dupla de violoncelistas cria uma obra de sensível vitalidade, cortante, densa, em diálogos quase agressivos nos quais as vozes podem tanto se unirem quanto duelarem, em resultados que, ouvidos por meio de caixas potentes, vão por vezes reverberar no peito  uma experiência de grande intensidade. Sai em CD, edição limitada de 300 cópias.  

 


Double Music  ****(*)

Lisa Ullén/ Sten Sandell

Clean Feed

O encontro entre dois pianos pode gestar trabalhos de realmente grande desafio e inventividade. Em diferentes searas musicais podemos constatar isso, quer seja no free impro (Marilyn Crispell e Iréne Schweizer em duo), no jazz (Herbie Hancock com Chick Corea, por exemplo) ou no erudito (como nas "Structures", de Boulez). Double Music, que acaba de ser lançado, vem para ampliar as possibilidades de parcerias entre dois pianistas juntos no palco. Este projeto vindo da Escandinávia une a pianista sul-coreana Lisa Ullén, radicada na Suécia, e o experimente instrumentista sueco Sten Sandell. A dupla se reuniu em fevereiro deste ano no palco do Musikaliska, um espaço cultural construído no século XIX em Estocolmo. Ullén e Sandell são antigos conhecidos de quem acompanha a free music. Mas, em certo aspecto, pode-se dizer que este encontro surpreenderá muitos ouvidos. É sensível a herança erudita na música que exploram aqui, podendo ela fazer parte de um programa de música contemporânea vale lembrar que Ullén se formou em piano clássico, na Royal Musical Academy sueca (de Sandell, não tenho a informação de sua formação). O duo apresenta oito peças, harmonicamente complexas, lidando sempre com espaços e silêncios como possibilidades de ampliação discursiva. A música resultante deste encontro vai de momentos mais densos, como vemos logo na abertura ("Double Music I"), a pontos de certo minimalismo (como em "Onyx I"), em uma complexa e envolvente exploração das teclas por meio de "Twenty Fingers" (como diz o nome de outra peça). Um belíssimo registro.

 


The Human Being As A Fragile Article  ****

Camila Nebbia/ Patrick Shiroishi

Trouble In Mind Records

Esta parceria entre os saxofonistas Camila Nebbia e Patrick Shiroishi é o que podemos chamar de surpreendente. A princípio, vendo os nomes dos dois na capa, a ideia que vem à mente é a de que encontraremos um disco com dois saxes em diálogos/duelos. Mas o que a artista argentina (vivendo hoje em Estocolmo) e o instrumentista nipo-americano (baseado em Los Angeles) propõem é uma exploração muito mais aberta e instigante. Nebbia toca sax tenor, eletrônicos e usa sua voz em poemas/declamações; Shiroishi vai de saxes alto, barítono e sopranino, field recording (de passarinhos a ruídos cotidianos) e eletrônicos. E com todo esse arsenal o duo constrói 10 peças, bastante distintas, mas bem sintonizadas. Há sim o diálogo mais direto dos saxes, como logo no tema de abertura ("Un niño llamado cuervo"). Mas o álbum cresce exatamente com as explorações que vão surgindo pelo caminho e suas variadas e complementares sonoridades, que formam um álbum que pede para ser ouvido na sequência. Dos ataques mais ariscos de "Apagar el Televisor" ao intrigante jogo de voz e sopros de "El ser humanx como un articulo fragil", um disco de vasta inventividade. Publicado em versão digital e edição limitada em K7.  

 


Zephyr   *****

Steph Richards/ Joshua White 

Relative Pitch

A trompetista canadense Steph Richards alcançou seu auge inventivo neste trabalho em duo com o pianista californiano  Joshua White. Tendo o mundo das águas como mote temático, Richards criou 12 peças divididas em 3 partes/suítes: "Sacred Sea", "Sequoia" e "Nothern Lights: Aurora". Não se trata de música programática, mas o universo aquático está presente de diferentes formas, das imagens que compõe o clip criado para um dos temas à própria sonoridade: a artista traz para algumas peças sons de água mesmo ("resonating water vessels", como diz o release). “What I love about water is that it's vulnerable and unstable - you can never know exactly what sound you're going to make”, diz a artista. Se alternando entre trompete e flugelhorn, Richards tem em White um parceiro que funciona perfeitamente às suas ideias, indo do piano ao piano preparado, de acordo com a necessidade de cada tema. A música, climática e envolvente, oferece também alguns momentos de maior potência, como em "Sacred Sea: Nixie", na voz solista que abre "Sequoia: Cicada" ou em "Sequoia: Heeyyookkee", uma das melhores, com o trompete e o piano preparado em momentos maiores de interação criativa.  Em 2019, quando concebeu/gravou este álbum, Steph Richards estava grávida de seis meses e meio, o que inevitavelmente impactou no resultado alcançado. "I was experiencing my own metamorphosis, and thinking about the idea of breathing one breath for two bodies - moving through the world with two distinct pulses happening at the same time”, afirma a trompetista. “It brought this a whole other color to my sound precisely because I had a different physical ability. Our bodies are full of potential, and that's something that I had never fully investigated”, diz ela. Um dos álbuns mais interessantes do ano.

 

 

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*quem assina:

Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com publicações como Entre Livros, Zumbido e Jazz.pt, de Lisboa. Nos últimos anos, tem escrito sobre música e literatura para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live in Nuremberg”, de Perelman e Matthew Shipp (SMP Records)