RODRIGO AMADO: "Está tudo a regressar lentamente ao normal"


ENTREVISTA
O saxofonista português Rodrigo Amado conversou com o FreeForm, FreeJazz sobre os dois novos álbuns que está lançando...

 


Por Fabricio Vieira


Um dos nomes centrais da free music de Portugal, o saxofonista Rodrigo Amado já extrapolou há algum tempo as fronteiras de seu país, tendo sua música apreciada e muito demandada em diferentes cantos do mundo. E não apenas tocando em palcos de diversos países (tivemos a oportunidade de vê-lo no Brasil em 2013), mas também sendo amplamente reconhecido  não por acaso, venceu por duas vezes, em 2015 e 2017, a eleição de "saxofonista tenor do ano" da revista digital El Intruso, que conta com a participação de mais de 50 críticos internacionais. Agora sua discografia ganha novos álbuns de dois de seus projetos mais empolgantes: Let The Free Be Men, com o quarteto This Is Our Language (selo Trost Records), e The Field, com o Motion Trio (pelo NoBusiness Records). Nesses álbuns, Amado está ao lado de duas lendas do free jazz: o saxofonista Joe McPhee, de 81 anos, e o pianista alemão Alexander von Schlippenbach, de 83 anos. Rodrigo Amado conversou com o FreeForm, FreeJazz sobre os novos discos, seu trabalho como fotógrafo e o que vem por aí...  

 

Você está lançando novos títulos com dois de seus projetos mais relevantes e destacados. Gostaria que começasse falando sobre o quarteto This Is Our Language. Quando e como surgiu esse projeto? A ideia inicialmente já era a de formar um grupo ou isso aconteceu naturalmente?


Rodrigo Amado:
"O quarteto This Is Our Language, com o Joe McPhee, Kent Kessler e Chris Corsano, surgiu da minha vontade deliberada de tocar com o Joe. Nós já nos tínhamos cruzado por diversas vezes, em Nova Iorque ou em algum festival em algum ponto do mundo, e a energia do Joe era sempre fascinante, de uma extrema cordialidade, alegria e elegância. Sem filtros. Para além disso, era um dos improvisadores que eu mais admirava, como instrumentista e como personalidade musical. A obra do Joe é um colosso. Por ocasião da minha exposição de fotografia no Museu da Electricidade, em 2012, surgiu a oportunidade (e o financiamento) para reunir uma banda internacional. Pensei de imediato no Joe. Mais tarde, pensei quem seriam os músicos certos para completar o grupo. A primeira escolha foi o Chris, pela sua versatilidade, do jazz ao rock alternativo, improvisação livre, música experimental... ele consegue integrar tudo isso na sua própria linguagem, sem tiques nem clichés. Imaginei que a sua capacidade de abstracção iria constituir um bom contraponto à orgânica do Joe. Na altura eu andava a ouvir os duos do Chris com o Paul Flaherty e estava fascinado com o drumming dele. A escolha do Kent para tocar contrabaixo deu-se pela necessidade de ligar a banda à terra, integrando uma pulsação forte que pudesse unir as diferentes linguagens. O Kent consegue fazer isso sem se tornar nunca óbvio e mantendo a criatividade no topo. O facto de se tornar um grupo aconteceu naturalmente, pelo impacto da música, primeiro, e pelo feedback incrível do disco de estreia."


Let The Free Be Men foi gravado em 2 de março de 2017, poucos dias antes de vocês registrarem "A History of Nothing". Apesar da proximidade temporal, os dois álbuns soam bastante distintos e independentes. A música do This Is Our Language é totalmente improvisada? Como se dá o processo criacional do grupo? Poderia falar um pouco sobre a gravação deste álbum?

Amado: "Todos os projectos liderados por mim são totalmente improvisados. Não há nunca qualquer conversa sobre o que se irá tocar. E raramente se fala sobre o que se tocou. A confiança musical entre todos os elementos do quarteto foi sempre, desde o início, muito grande. E isso é essencial, determinante mesmo, para nos lançarmos em palco, sem rede, num concerto importante, como aconteceu no festival de Wels, em 2019, com a sala principal esgotada e o público ansioso por ouvir a música. Em relação à música do disco, esta foi a gravação de um concerto memorável no Jazzhouse de Copenhaga, entretanto encerrado. Lembro-me que, na altura do concerto, pensei de imediato que iria utilizar aquela gravação. Foi um dos concertos mais fortes da tour e, por feliz coincidência, tinha sido gravado por pistas com o melhor material possível. Só não foi editado na altura porque existia a gravação de estúdio que também estava muito boa."


 Como é trabalhar com uma lenda do free jazz como o Joe McPhee?

Amado: "Trabalhar com o Joe é uma absoluta inspiração. Como já disse noutra entrevista, se ele vivesse na idade das cavernas, seria um xamã. Perto dele, tudo é comunicação, tudo é energia. E o Joe tem essa capacidade, como improvisador, de transportar todo esse legado dentro de si, reverberando verdade e intensidade poética quando toca. Quando estou ao lado dele, no palco, sinto toda essa energia a invadir a música e a única resposta possível é a entrega total."



O título do novo álbum ("Let The Free Be Men") vem de um poema de E.M. de Melo e Castro que, apesar de ser de 1962, se revela muito atual, parece uma voz, um grito de nosso tempo. De alguma forma, o livro "Ideogramas", de onde vem o poema, foi uma fonte de inspiração na concepção deste trabalho? O quanto o diálogo com outros campos das Artes, como a  Literatura, é importante para você como músico?

Amado: "Apesar de já conhecer o livro 'Ideogramas', não lhe dava ainda a importância que dou hoje e o meu encontro com este poema aconteceu ao ler um post de alguém numa rede social, no período em que fazia pesquisa para o nome e a capa do disco. O impacto foi imediato. A construção do poema tem tanto de simples como de genial e a sua relevância é absolutamente actual. Sinto que a música do disco tem uma maior ligação às raízes puras do free jazz e ao movimento dos anos 60, em que a música continha fortes conotações políticas. Daí o nome 'Let The Free Be Men' a assinalar uma perda progressiva de liberdades essenciais para toda a humanidade. Liberdades que nos vão sendo tiradas de forma não deliberada, pela forma como a sociedade se organiza. E não são 'eles' que o fazem (sou pouco de teorias da conspiração), somos nós que o fazemos a nós próprios todos os dias, nas opções mais básicas do dia a dia. E claro que o universo capitalista se aproveita disso. Para mim, o diálogo entre os vários campos das artes é absolutamente fascinante. Por essa razão, coloco sempre tanta energia na escolha das capas, dos nomes dos discos e das músicas. Acho importante que haja uma consistência e sinergia entre todos esses elementos. Que haja um todo poético. Acredito que isso projecta mais claro a visão do músico."


Quais os próximos planos para o This Is Our Language? Outras gravações a sair? Alguma turnê em vista?

Amado: "Neste momento estou a ouvir e seleccionar música gravada na última tour, em 2019. Temos dois bons concertos gravados e uma sessão de estúdio. Está também planeada uma nova tour, em 2022. Tento não fazer demasiados planos para que não sejam novamente frustrados pela pandemia. Mas a intensidade está ao rubro!"


O outro álbum que acaba de lançar é "The Field", com o Motion Trio. Desta vez, o parceiro convidado é outro lendário músico, o pianista alemão Alexander von Schlippenbach. Como se deu este encontro?

Amado: "O Alex é, desde há muito, um dos nossos grandes ídolos. Não apenas como o extraordinário improvisador e 'band lider' que é, mas também como um dos maiores representantes europeus das raízes desta música. Nas sessões de escuta que fazemos frequentemente em casa, com amigos, os discos do Schlippenbach Trio são presença regular. O primeiro contacto surgiu através do Gabriel Ferrandini que realizou um concerto em que o Alex participou. Mais tarde surgiu o convite para o Motion Trio tocar no Festival de Vilnius e havia a hipótese de levar um convidado. Pensámos de imediato no Alex. Eu e o Miguel conhecêmo-lo pela primeira vez no dia em que este disco foi gravado. Foi mesmo um 'first time meeting'."


O Motion Trio tem mais álbuns editados com parceiros (dois títulos com Jeb Bishop e outros dois com Peter Evans) do que apenas com a formação nuclear do grupo, com você, o violoncelista Miguel Mira e o baterista Gabriel Ferrandini. Esta quarta voz se tornou uma marca do Motion Trio? Algum novo convidado já está nos planos do trio para um futuro trabalho?

Amado: "Eu acho que isso aconteceu de forma natural. Talvez pelo facto de se tratar de uma working band que tocava com regularidade todas as semanas, receber um convidado para tocar com o grupo representava uma prova, um desafio adicional. Ainda mais tratando-se de improvisadores com o nível do Jeb, do Peter ou outros, como o Steve Swell, Matthew Shipp ou Paul Dunmall. Era irresistível. Não podemos esquecer que o Motion Trio representa o início de um movimento mais alargado de internacionalização do jazz português. A ânsia de estímulos exteriores era muito grande e acho que acabou por marcar a personalidade do trio. Também porque tivemos essa capacidade. A integração de um quarto elemento foi sempre bastante natural, mesmo que feita, como no caso do Peter Evans, através de um 'confronto' musical. Neste momento estou já a trabalhar num segundo álbum de Motion com Schlippenbach, gravado um dia depois, em Berlim; num outro com a Motion Trio Orchestra featuring Larry Ochs; e ainda numa gravação ao vivo em que tocamos com o Trevor Watts. Relativamente a novos convidados, essa é uma pesquisa que procuro manter bem viva, e existem alguns nomes com quem sei que gostaria de colaborar, no contexto de Motion Trio ou outros, mas para já não tenho planos concretos."


Na Europa, apesar de a pandemia ainda não ter sido de fato superada, concertos já estão acontecendo com certa regularidade. Sua agenda já está mais cheia, com um ritmo mais normalizado? Ou as coisas por aí permanecem mais incertas do que parecem para quem olha daqui?

Amado: "Por aqui está tudo a regressar lentamente ao normal. A especulação vinda de fora é enorme, muitas vezes com motivos políticos. No meu caso, desde maio que regressei aos palcos e tenho tocado regularmente em Portugal. Sempre em locais que seguem rigorosamente as regras de protecção contra o vírus. No que diz respeito a concertos no circuito europeu, a incerteza é maior. Estamos dependentes da evolução da pandemia e das medidas adoptadas nos outros países. Ainda assim, tenho agendada uma tour extensa na Europa com os Humanization Quartet, em setembro/outubro deste ano, e ainda duas outras pequenas tournées, também na Europa."

(photo by Rodrigo Amado)

Você também é fotógrafo. A maior dificuldade para se fazer música devido à pandemia, em especial em 2020, deu algum novo alento a seu trabalho com a fotografia?

Amado: "Sim, sem dúvida. Desde 2014, a disponibilidade para desenvolver o meu trabalho fotográfico sofreu bastante com a intensificação de concertos e tournées internacionais. Não é apenas o tempo que estou fora, é também o tempo necessário para recuperar e regressar ao bio-ritmo habitual. Para mim, o confinamento forçado pela pandemia acabou por ser positivo, de muitas formas. Tive bastante mais tempo para partilhar com a família e iniciei uma rotina de práctica do saxofone que já não tinha há muito. Para além de tudo isso, ainda sobrou tempo para dedicar à fotografia. Regressei ao arquivo, comecei a imprimir de novo e criei uma página no Instagram dedicada ao meu trabalho fotográfico (rodrigoamado07)."


Você se apresentou no Brasil em 2013, em duo com o Gabriel Ferrandini, passando por São Paulo (Sesc Belenzinho e Santos) e Rio de Janeiro (Audio Rebel). Como foi tocar no Brasil? Lembranças daquela turnê?

Amado: "Essa nossa passagem pelo Brasil foi memorável, mágica mesmo. As ocasiões em que tocámos foram especiais, sem dúvida, mas marcantes mesmo foram as pessoas, os locais, cheiros, vibrações. A paixão pelo Rio foi imediata. Em São Paulo, o choque inicial foi duro, mas ao fim de dois dias já estávamos completamente rendidos. De alguma forma sentimos a enorme paixão do povo brasileiro pela música, em todas as suas encarnações, e acima de tudo, pela vida. E eu estou ligado a isso."


  


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*quem assina:

Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com publicações como Entre Livros, Zumbido e Jazz.pt. Nos últimos anos, tem escrito sobre música e literatura para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live in Nuremberg”, de Perelman e Matthew Shipp (SMP Records)