Baixo Solo



LANÇAMENTOs Em destaque, discos para baixo solo, novidades de músicos de diferentes países. Ouça, divulgue, compre os discos...

 


Por Fabricio Vieira

 

O contrabaixo demorou mais tempo que outros instrumentos para conquistar um espaço protagonista na música. No período barroco, seu uso passou a ser sistemático nas formações orquestrais e camerísticas, mas sendo preponderante na função de baixo-contínuo. Por não pouco tempo, o contrabaixo foi lembrado mais como tendo a função de reforçar o campo melódico mais grave das composições. Não parece acaso que mesmo alguém como J.S. Bach (1685-1750), atento às particularidades de cada instrumento, que gestou peças solistas referenciais para diferentes deles (violoncelo, violino, órgão, cravo...), tenha deixado o contrabaixo em segundo plano. É no século XIX que o contrabaixo vai ganhando progressivo espaço. O papel do compositor italiano Giovanni Bottesini (1821-1889) nesse processo foi fundamental. Bottesini, além de virtuose do instrumento, compôs seminais peças colocando o contrabaixo em primeiro plano, de concertos a pioneiras peças solistas dedicados ao instrumento. Mas seria de fato no século XX que o instrumento atingiria sua plenitude, em muito pelo papel central que assumiu no universo do jazz. Nas últimas décadas, cresceu consideravelmente o número de contrabaixistas a explorarem o formato solista. Após o pioneiro "Unaccompanied Barre", de Barre Phillips (69, Music Man/Opus One), importantes registros no formato solista foram surgindo, como "Handicaps", de Maarten Altena (73, ICP),"Statements V-XI", de Barry Guy (77, Incus) e "Emerald Tears", de Dave Holland (78, ECM). Para os contrabaixistas contemporâneos da free music, o formato solista é algo que está sempre lá à espera, sendo que grande parte deles tem aceitado tal desafio. Selecionamos discos para contrabaixo solo, saídos nos últimos tempos em diversas partes do mundo, que mostram o quanto o formato tem sido explorado e de formas bastante distintas, com resultados por vezes geniais.

 


Twelve Bass Tunes 

Hernâni Faustino

Phonogram Unit

O baixista português Hernâni Faustino é um nome bem conhecido por todos os que acompanham a free music contemporânea, sendo uma das vozes do excepcional Red Trio. Neste seu primeiro álbum solista, Faustino apresenta 12 peças suas. É interessante vê-lo nesta posição sempre difícil de estar só, criando sem a possibilidade estimulativa do diálogo. O músico começou tocando baixo elétrico em banda de rock e aprendeu o contrabaixo acústico de forma autodidata. É louvável que tenha decidido gravar neste formato a esta altura de sua carreira, quando já domina seu instrumento de forma precisa, munido de ampla gama de ideias. Twelve Bass Tunes foi gravado em janeiro de 2020 no Namouche Studios (Lisboa).

 

 

Irvin's Comet

Barry Guy

NoBusiness Records


Tendo experimentado o formato solista em diferentes oportunidades nas últimas décadas, o veterano baixista britânico Barry Guy, de 74 anos, mostra que ainda tem muito a dizer quando sozinho. Irvin's Comet traz uma apresentação solista de Guy realizada em outubro de 2019, em Vilnius, Lituânia. Em seis peças, algumas relativamente curtas, com apenas 2 minutos, Guy mostra toda a versatilidade de sua estética, com técnicas estendidas, em arco e pizzicato. Às vezes agressivo e desconcertante, às vezes apenas como que quase sussurrando, o músico cria um registro de grande e profunda variedade expressiva. Lançado em LP, edição limitada de 300 cópias.

 


Just Another Day At Home

John Edwards

Independente

Britânico como Barry Guy, mas de geração posterior, John Edwards é uma das vozes mais sólidas da música contemporânea. Não sendo especialmente lembrado pelo formato, apesar de já ter feito gravações solistas, Edwards, recolhido no ano passado como consequência do lockdown provocado pela pandemia, decidiu fazer este registro. Editado por ele mesmo em formato digital (faz questão de frisar na apresentação do álbum: "recorded at home. Self-Isolating"), Just Another Day At Home traz apenas duas longas improvisações, "Jadah" 1 e 2, de mais de 20 minutos cada, na qual podemos apreciar inventivos momentos desse sólido instrumentista.

 


Live Ateliers Claus

William Parker

Les Albums Claus


Mestre maior do instrumento, William Parker tem gravado discos solistas desde a década de 90, quando apresentou o impactante "Testimony". E se esse não é seu veículo principal, nunca o deixou de lado. Aqui temos uma gravação feita em junho de 2014, no Les Ateliers Claus, em Bruxelas, na Bélgica, lançada apenas neste ano. Parker apresenta duas longas peças (de 37 minutos e de 28 minutos), que se desenvolvem de forma progressiva, exigindo atenção e disposição do ouvinte para o acompanhar nesta muitas vezes instigante viagem, quer seja pelas águas mais calmas do primeiro tema, com seu denso dedilhado nos levando, quer seja no segundo tema, marcado pelo sempre preciso uso do arco.   

 


Whatever is not Stone is Light

Damon Smith

Balance Point Acoustics

O norte-americano Damon Smith iniciou sua carreira apenas no fim da década de 90, mas tem construído uma extensa discografia, gravando com nomes como Joe Morris, Paul Flaherty,  John Butcher e Fred Van Hoove. Parte razoável dessa discografia tem saído pelo selo Balance Point Acoustics, que fundou em 2001. Este é o caso desta sua última gravação solista. Aqui sozinho, em registro realizado quando eclodia a pandemia, em abril de 2020, Smith apresenta 23 temas, sendo bastante concentrados, com alguns deles durando 1 ou 2 minutos apenas. Smith é um músico que gosta muito de explorar o instrumento em duos de contrabaixos, formato com o qual já gravou/tocou ao lado de nada menos que Peter Kowald e Joëlle Léandre (tendo publicado no começo deste ano o álbum Bass Duos). Sai em CD, edição limitada de 300 cópias.

 


Monólogos A Dois

Gonçalo Almeida

A New Wave Of Jazz

Outro fruto da era pandêmica, Monólogos A Dois traz o baixista português Gonçalo Almeida em atuação solista captada em uma igreja vazia em Roterdã, na Holanda (onde vive). A gravação, realizada em julho de 2020, traz 12 peças de improvisação livre, todas chamadas Monólogos A Dois  essa conversa íntima entre o músico e seu instrumento. A profundidade expressiva, raramente agressiva, que emana do álbum pode até surpreender quem conhece os projetos mais alinhados ao jazzcore de Almeida, quando saca também a versão elétrica do baixo. Mas Almeida é um baixista completo, que pode soar até camerístico empunhando o arco (como na faixa IV). Monólogos A Dois é uma boa oportunidade para compreender de forma mais ampla o trabalho do músico. Lançado em LP, edição limitada de 100 cópias.

 

 

MoNoCRoMo

Germán Lamonega

Nendo Dango Records

Germán Lamonega é um dos que tem feito da Argentina uma referência na cena free contemporânea. Sendo uma das vozes do fantástico SLD Trio, Lamonega tem participado de diferentes projetos na última década e agora chega a este seu primeiro álbum solista. Gravado antes da pandemia, no segundo semestre de 2018, no Estudio Libres, em Buenos Aires, MoNoCRoMo traz nove temas seus. Lamonega explora múltiplas possibilidades de seu instrumento, com momentos contemplativos se alternando com outros mais densos, utilizando arco e pizzicato em busca de possibilidades expressivas múltiplas.

 

 

Yet Very

Noah Punkt

Otherunwise

Talvez muita gente lembre mais do suíço Noah Punkt tocando com o saxofonista Chris Pitsiokos. Mas este músico tem desenvolvido diferentes projetos, tocando tanto baixo elétrico quanto acústico, na última década. Em certo aspecto, este seu novo disco solista é um de seus trabalhos mais desafiadores. Em Yet Very, Punkt apresenta 12 peças, sendo que cada uma delas tem cerca de 30 minutos  ou seja, são seis horas de música solista! As longas faixas partem de uma ideia de repetição/variação, com os temas se desenvolvendo sempre de forma densa, cortante, com o arco usado como multiplicador de sons e tensões. Interessante, original, mas um desafio quase instransponível para ser encarado de uma vez só.  

 

 


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*quem assina:

Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com publicações como Entre Livros, Zumbido e Jazz.pt. Nos últimos anos, tem escrito sobre música e literatura para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live in Nuremberg”, de Perelman e Matthew Shipp (SMP Records)