1965: Coltrane em Seattle


Lançamento de gravação desconhecida de A Love Supreme leva os ouvintes à marcante visita de John Coltrane a Seattle em importante momento de transição em sua música...


 


Por Fabricio  Vieira


O ano de 1965 ficaria marcado como um importante período de transformação na trajetória de John Coltrane (1926-1967), especialmente após a gravação, em 28 de junho daquele ano, do clássico do free "Ascension", quando o saxofonista produziu sua mais radical obra até então. Um dos músicos convidados para aquela sessão histórica era Pharoah Sanders. Também sax-tenorista como Coltrane, Sanders só voltaria a se encontrar com ele, após a experiência de Ascension, no mês de setembro, num evento chamado Jazz Workshop, em San Francisco. É quando Trane chama Sanders para tocar junto com o seu quarteto. "Ele me contou que estava pensando sobre mudanças em seu grupo e em sua música", lembraria Sanders. "E perguntou se queria me juntar a ele." Ainda no fim daquele mês, embarcariam para tocar alguns dias em Seattle, Washington. Era a primeira vez que Trane ia à cidade comandando um grupo seu. E levava muitas ideias novas na cabeça.

Em Seattle, Coltrane desembarcou com seu quarteto McCoy Tyner, Jimmy Garrison e Elvin Jones já reforçado por Pharoah Sanders. A eles se juntaria ainda um músico de Chicago que já havia tocado com Coltrane anos antes, Donald Garrett (baixo e clarinete baixo), formando, assim, um sexteto. O tour por Seattle previa algumas apresentações no clube Penthouse. A Impulse!, gravadora de Coltrane, não previu nada em relação a essa passagem por Seattle. Mas o saxofonista queria fazer gravações para ver como que a sonoridade com a nova formação funcionava. O concerto do dia 30 de setembro de 1965 no Penthouse foi gravado por iniciativa de Coltrane, sendo editado anos depois, já após sua morte, pela Impulse! como "Live in Seattle". Este concerto já apresentava uma ampla abertura em relação ao som do clássico grupo de Trane, um novo rumo que acabaria por fazer com que seu idolatrado quarteto terminasse, com a saída de McCoy Tyner e Elvin Jones poucos meses depois. No dia seguinte, em 1º de outubro, Coltrane coloca esse sexteto em uma van e se deslocam até Lynnwood (cerca de 20 km de Seattle), onde ficava o Camelot Sound Studios. Quem os levou lá foi um antigo conhecido seu, o flautista Joe Brazil, que morava em Seattle. No Camelot Sound Studios, mais uma vez bancado por Trane, gravam uma sessão lendária que seria lançada depois como "OM". Aqui a formação era em septeto, com a adição de Joe Brazil. Biógrafos contam que a sessão de OM, quase 30 minutos sem cortes de improvisação coletiva, oscilando entre o enérgico e o espiritual, foi turbinada com LSD  Coltrane, em sintonia com a contracultura da época, havia passado a usar LSD (o que seus detratores diriam que ajudava a explicar o porquê das viagens sonoras em que havia embarcado, em sacrifício do equilíbrio perfeito de seu quarteto clássico). A realidade é que OM se revelaria uma das peças mais singulares, fascinantes e inebriantes deixadas pelo músico. No dia seguinte, o saxofonista e seus parceiros voltam a Seattle, onde tinham mais uma apresentação agendada no palco do Penthouse. Era 2 de outubro de 1965. E Coltrane queria ainda fazer outros testes. Decide que naquele dia o sexteto tocaria nada menos que A Love Supreme.

O álbum A Love Supreme foi registrado no Van Gelder Studio pelo quarteto de Coltrane no dia 9 de dezembro de 1964. Apesar de ser o maior clássico do saxofonista (e um dos álbuns mais conhecidos do jazz), A Love Supreme não fez carreira nos palcos. Até o momento, só se sabia de uma apresentação ao vivo gravada no "Juan-les Pins Festival", em Antibes (França), em 26 de julho de 1965. Isso até a Impulse! anunciar nesta semana que irá lançar a versão de A Love Supreme registrada em 2 de outubro de 65 em Seattle. Esta nova gravação, da qual não se sabia a existência, foi descoberta nos arquivos de Joe Brazil, que cuidou do registro do concerto daquela noite no Penthouse. "As fitas estavam em excelentes condições... e os resultados estão entre as melhores gravações não profissionais de John Coltrane com que tivemos o prazer de trabalhar", disse Kevin Reeves, engenheiro de som responsável pela produção deste lançamento. Esta versão, que será editada daqui a algumas semanas como A Love Supreme: Live In Seattle, mostra o sexteto em ação, o mesmo grupo que participou do antigo álbum "Live In Seattle" (um então jovem Carlos Ward acabou subindo no palco com o grupo, mas não fica claro se participou de toda a apresentação). Vale lembrar que Coltrane chegou a testar uma versão em sexteto de A Love Supreme no estúdio. No dia seguinte à gravação do disco original, em 10 de dezembro de 64, o quarteto voltou ao estúdio para gravar uma nova versão da suíte, agora em sexteto com a adição de Archie Shepp (dobrando o tenor) e Art Davis (baixo) esta segunda versão, concentrada em alguns takes de "Acknowledgement", acabou engavetada até os anos 2000. Ou seja, se na única outra versão conhecida de A Love Supreme ao vivo, em Antibes, o que ouvimos é o quarteto executando o álbum original, esta nova versão dialoga mais com o registro do dia 10 de dezembro de 64. Além disso, devemos considerar o momento em que foi realizada a apresentação, prometendo uma abertura ainda maior a solos e improvisação coletiva (não nos esqueçamos que OM foi gravado apenas um dia antes e, além disso, esses concertos em Seattle, até por terem acontecido fora de um festival e sem o envolvimento da gravadora, davam ampla liberdade para Trane experimentar ideias novas). Por tudo isso, o anúncio da descoberta e lançamento de A Love Supreme: Live In Seattle é uma das grandes notícias do universo jazzístico em um bom tempo. O álbum será editado em CD e vinil duplo, sendo lançado oficialmente em outubro.

 

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*quem assina:

Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com publicações como Entre Livros, Zumbido e Jazz.pt. Nos últimos anos, tem escrito sobre música e literatura para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live in Nuremberg”, de Perelman e Matthew Shipp (SMP Records)