TURIYA SINGS


CRÍTICAs Importante trabalho do início dos anos 80 de Alice Coltrane ganha reedição que resgata  inédita versão original... 

 



Por Fabricio Vieira

 

Passada mais de uma década de sua morte, o interesse pelo trabalho de Alice Coltrane (1937-2007) parece ter se renovado. Tanto que nos últimos anos têm sido resgatadas algumas gravações suas, inéditas ou raras, o que ajuda a fortalecer o interesse por seu legado. Com o lançamento de Kirtan: Turiya Sings um momento singular de seu percurso artístico recebe pela primeira vez o devido tratamento.

Apesar de a obra de Alice Coltrane manter uma coerência interna, é inegável que se transformou radicalmente nas cerca de quatro décadas em que se manteve como artista criativa. Podemos identificar em sua trajetória três fases distintas, mesmo que interligadas entre si. A primeira fase, que poderíamos chamar de avant-jazzística, se inicia com "A Monastic Trio", álbum com o qual estreou sua discografia em 1968. Ainda bastante ligada ao jazz (free, avant, spiritual), Alice editou uma sequência de álbuns obrigatórios, em que unia a liberdade free jazzística, o lirismo inerente à sua linguagem e uma atmosfera espiritual (já nessa época, ela vinha se aproximando da religiosidade hindu). Após A Monastic Trio, se seguiriam três outras pequenas joias: Huntington Ashram Monastery (69), Ptah the El Daoud (70) e Journey in Satchidananda (71). Nesses álbuns, gravados com nomes como Pharoah Sanders, Jimmy Garrison e Rashied Ali, Alice passou a tocar também harpa, dividindo os espaços com o piano. Ainda em 71, lançaria "Universal Consciousness", álbum com o qual deu um passo a mais na aproximação ao campo espiritual que a orientava: as cordas, que estariam presentes em muitos de seus trabalhos futuros, surgiram em destaque aqui. Ela também passa a tocar órgão, além de piano e harpa. Poderíamos dizer que aqui se inicia uma segunda etapa, que chamaremos de cósmica. Na sequência, virão os discos "World Galaxy" (72), "Lord of Lords" (72) e "Eternity" (76). Nesses trabalhos, ela ainda conta com a colaboração de parceiros do mundo do jazz (Charlie Haden, Ben Riley, Reggie Workman), mas vai adicionando elementos novos, abrindo outras vias sonoras, em um campo já bastante distinto de sua primeira fase. Na virada para 77, começa a se estabelecer uma nova etapa, que chamaremos de devocional, período em que a vemos assinando como  Turiyasangitananda. Naquele ano, Alice lança dois álbuns, já pela Warner, "Transcendence" e "Radha-Krsna Nama Sankirtana", nos quais passa a dedicar grande espaço a cânticos religiosos/indianos. Focada no órgão e trabalhando cada vez mais com vozes, vai se distanciando do universo jazzístico  do qual, em certo sentido, se despede em uma apresentação em 78 na UCLA, onde toca uma última vez com Reggie Workman e Roy Haynes. Este último registro mais jazzístico, editado como "Transfiguration", também representou sua despedida das grandes gravadoras (apenas em 2004, ela voltaria a lançar algo por um selo comercial, o derradeiro "Translinear Light” pela Impulse!).

No começo da década de 1980, seu filho John Coltrane Jr., baterista que tocava às vezes com a mãe, morre em um acidente de carro, aos 18 anos. A partir daí, Alice Turiyasangitananda se isolará de vez e se dedicará integralmente à vida espiritual. Mas ela nunca deixará de fazer música. Nas décadas de 80 e 90, época em que comandava o ashram Vedantic Center, no sul da Califórnia, editaria uma série de álbuns de forma independente, pelo selo Avatar Book Institute. Esses discos raros, lançados em K7 e vendidos no ashram ou pelo correio, têm circulado nos últimos tempos em cópias digitalizadas (muitas vezes em baixa qualidade) pela internet, tendo ganhado nova vida com a edição da coletânea The Ecstatic Music of Alice Coltrane Turiyasangitananda, pelo selo Luaka Bop em 2017, que trazia temas dos registros “Divine Songs”, “Infinite Chantes” e “Glorious Chants”, originalmente editados entre 87 e 95. A repercussão da coletânea foi realmente grande. Tanto que agora o selo Impulse!/UMe decidiu reeditar “Turiya Sings”, o primeiro de seus registros feitos pelo Avatar Book Institute. 

Captado em 23 de junho de 1981, no Redwing Sound, em Los Angeles, e lançado apenas em K7 (versões não autorizadas em CD chegaram a circular), Kirtan: Turiya Sings traz Alice Coltrane sozinha, criando sua música apenas com órgão e voz. Esta foi a primeira vez em que ela gravou sua própria voz. Nos registros da década anterior, quando os cânticos se tornaram protagonistas em sua música, estes eram conduzidos por um pequeno coro. Mas mesmo para quem já teve a oportunidade de ouvir Turiya Sings antes há uma mudança radical neste lançamento. No K7 original, havia overdubs feitos em estúdio, com a adição de cordas e efeitos (observe-se que na capa do K7 vinha o subtítulo Devotional Songs In Original Composition with Organ, Strings and Synthesizer). Agora, apenas a gravação primária, digamos assim, foi resgatada. Ravi Coltrane, responsável pelo resgate e produção do álbum, decidiu restaurar apenas o registro original com a voz e o órgão Wurlitzer, trazendo uma outra profundidade meditativa a esse material. "It is always difficult to make a creative decision that is counter to what the artist originally chose for their work. It’s always a delicate matter. But as her son, growing up hearing her play these songs and songs like them every day, on the very same Wurlitzer you hear on this recording, I recognize this choice maintains the purity and essence of Alice’s musical and spiritual vision. In many ways, this new clarity brings these chants to an even higher place", diz Ravi no texto de apresentação.

Uma coisa importante a destacar é que o material se trata de composições de Alice, são nove peças originais inspiradas em melodias hindus tradicionais (o "kirtan" no título dessa nova edição se refere a uma forma de canto devocional). Essas peças tinham a função original de servir como suporte à meditação em seu ashram. E talvez assim possam ser encaradas hoje também, mesmo que sua qualidade/beleza expressiva extrapole essa função. A voz de Alice, em um tom mais grave do que o de sua voz conhecida por meio de entrevistas, é explicada por ela da seguinte forma: é a voz da alma, nem feminina nem masculina, o tom que o Senhor (Lord) indicou, durante uma meditação, que deveria ser usado, contou Alice certa vez. Ravi destaca um outro ponto importante. Apesar de serem cânticos devocionais de inspiração hindu, toda a herança musical de Alice Coltrane está presente aqui. "On this album, your ear will be turned toward the sound of the blues, to gospel, to the Black American church, often combined with the Carnatic singing style of southern India. You will hear beautiful harmonies influenced by Alice’s Detroit/Motown roots, her bebop roots, John Coltrane’s impact, and her absorption of European classical music, particularly that of her favorite: Igor Stravinsky", diz Ravi. Kirtan: Turiya Sings está sendo editado em CD e LP. A gravadora chegou a anunciar também uma versão Deluxe, trazendo como extra a gravação com overdubs publicada em 82.



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*quem assina:

Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com publicações como Entre Livros, Zumbido e Jazz.pt. Nos últimos anos, tem escrito sobre música e literatura para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live in Nuremberg”, de Perelman e Matthew Shipp (SMP Records)