PLAY IT AGAIN... (quartetos)


LANÇAMENTOs
Em destaque, discos de quartetos de diferentes cantos do mundo. Experiências variadas, possibilidades múltiplas. Ouça, divulgue, compre os discos... 

 



Por Fabricio Vieira

  


Vegetables  ****

Lina Allemano Four

Lumo Records

A trompetista canadense Lina Allemano reúne neste seu quarteto três antigos parceiros: Brodie West (sax alto), Andrew Dowming (baixo) e Nick Fraser (bateria) para interpretar seis peças suas. Atuando junto há muitos anos (desde o lançamento de Pinkeye, em 2006, com esta formação), o Lina Allemano Four demonstra grande sintonia, com os temas compostos pela trompetista fluindo de forma precisa e contagiante. O álbum foi registrado um pouco antes de a pandemia assolar o mundo, em janeiro de 2020, no Union Sound Company, em Toronto. A formação do quarteto remete ao clássico grupo de Ornette Coleman e Don Cherry e, de certa forma, a herança deles se faz presente aqui. A interação de trompete e sax, que trabalham de forma complementar, é um dos trunfos do grupo. As linhas temáticas desenvolvidas por meio deste diálogo servem de base para o desenvolvimento das peças, marcadas por solos sob medida, sem muitos arroubos. "Beans" mostra bem o nível elevado desse jogo (com as melhores soluções ao lado de "Brussel Sprouts, Maybe Cabbage"), com os ataques e respostas pontuais indo crescendo com o passar da peça. "Champignons", na sequência, é mais contemplativa, com o solo de baixo, com arco, no centro da peça, puxando as atenções e e criando um clima algo hipnótico, que vai se dissipando com a bela melodia criada pelo trompete  o baixo terá seu outro grande espaço de destaque em "Leafy Greens". Vegetables mostra o quanto o quarteto está afinado, apresentando uma música criativamente certeira.

 


Altbüron  ***(*)

The Workers

Wide Ear Records

Este novo quarteto da Suíça apresenta diferentes gerações da cena free impro do país. Em um extremo, está o experiente saxofonista Urs Leimgruber, de 69 anos, na ativa desde a década de 1970. No outro, o baterista Alex Huber, nascido em 1982. Completam o time Omri Ziegele (sax alto, flauta, voz) e Christian Weber (baixo). Os quatro instrumentistas começaram a trabalhar juntos nesse formato há não tanto tempo, sendo este álbum a estreia do projeto. Captado ao vivo em outubro de 2019 no Bau 4, na comuna suíça de Altbüron, o álbum traz apenas uma longa peça de 43 minutos. O The Workers apresenta um trabalho de improvisação livre coletiva desenvolvida com muita segurança e concentrada interação. A música começa com vagar, ganhando corpo progressivamente em seus primeiros três minutos, até os saxes arriscarem já algumas entradas mais ariscas, como que avisando que a o negócio vai começar a esquentar. Lá pelos nove minutos, o sax soprano de Leimgruber inicia um duelo com o sax alto de Ziegele que, entre subidas e descidas (ora cedem o protagonismo aos outros parceiros, ora o coletivo é o núcleo do que estamos ouvindo), terá seu ápice lá pelos 28, 29 minutos. Vale notar que, se por um lado os músicos aqui presentes são menos conhecidos, por outro, no caso de Leimgruber, já tivemos até a oportunidade de vê-lo em ação no Brasil, em apresentações em 2012 (quem esteve por lá fica com alguma ideia do que esperar deste registro). O CD saiu  em edição limitada de 100 cópias.

 


Fly Or Die Live  ****(*)

Jaimie Branch

International Anthem

A trompetista de Chicago Jaimie Branch consolidou sua carreira nos últimos anos, tendo no projeto Fly Or Die seu mais bem-sucedido trabalho. Após dois discos de estúdio, chegamos a este Fly Or Die Live, que reúne as ideias desenvolvidas nos registros anteriores, agora em versão ao vivo, com toda potencialidade e abertura que isso possa significar. O concerto agora editado foi captado em janeiro de 2020 no Moods, em Zurique, quando eles estavam no início da turnê, que foi sendo, nas semanas seguintes, cancelada com o avançar da pandemia. Para a apresentação, Branch trouxe toda o material de Fly Or Die I e II, traçando um painel completo do projeto. A seu lado estão Lester St. Louis (violoncelo), Jason Ajemian (baixo) e Chad Taylor (bateria). A apresentação começa na verdade com os temas do disco II ( que tinha saído há pouco), sendo seguidas por peças do primeiro álbum do Fly Or Die. Assim, logo após os pouco mais de cinco minutos de introdução de "Birds of Paradise", somos jogados diretamente na explosiva “Prayer for Amerikkka pt. 1 &2”, faixa atualíssima que aborda questões como imigração, preconceito e violência, com a voz de Branch anunciando logo no começo do tema: "It's a song about America", alertando na sequência "...but it's about a whole lotta places - 'cause it's not just America where shit's fucked up". E acompanhamos a narrativa, que culmina em um grito e que transborda para rasgante solo de trompete  arrepiante. Quem ouviu e apreciou os registros de estúdio de Fly Or Die sem dúvida vai ficar seduzido pela música que Branch e seus parceiros oferecem aqui. E fica a expectativa: quando poderemos voltar a ver ao vivo uma música tão impactante como essa?

 


New Dance  ****

Neumann/ Gutvik/ Haker Flaten/ Nilssen-Love

PNL

New Dance pode ser visto como uma continuidade do álbum "Events 1998-1999", do The Quintet, editado pelo mesmo PNL cerca de  dois anos atrás. Lá tratava-se de um quinteto norueguês do fim da década de 90; aqui, uma nova versão do grupo, agora quarteto. Carl Magnus "Calle" Neumann (sax alto), Ketil Gutvik (guitarra) e Paal Nilssen-Love (bateria) seguem; os dois baixistas originais, Eivind Opsvik e Bjornar Andresen (este, morto em 2004) cedem lugar para Ingebrigt Haker Flaten. O concerto presente em New Dance foi captado no Victoria Jazz Club, em Oslo, no meio da pandemia, em julho de 2020. A princípio, a ideia era esquentar o grupo com a gig e depois ir para estúdio. Mas o resultado foi tão empolgante que resolveram editar o registro ao vivo. É curioso que tanto a versão original do grupo quanto esta ofereçam um pouco da mais íntima cena local norueguesa, com músicos de lá se unindo para tocarem por lá mesmo; ou seja, se o anterior The Quintet ou esta apresentação não tivessem virado discos, provavelmente nem saberíamos de sua existência. Afora o grupo em si, é interessante se deparar com alguém como Neumann, um sólido saxofonista. Se Nilssen-Love e Flaten se tornaram músicos internacionais, o veterano Neumann, de 76 anos, é pouco conhecido no exterior (e não gravava há mais de uma década!). Dividido em quatro temas, a apresentação tem generoso espaço para todos integrantes. "Det er Kjaerlighet" é especialmente interessante, com uma longa introdução comandada por baixo e guitarra, que se abre para o melhor solo de Neuman. Já "Dett var Dett", que fecha o registro, traz os momentos mais enérgicos da música do quarteto.

 


Melt  ****(*)

Hearth

Clean Feed

Dificilmente alguém que acompanha de perto a free music contemporânea não estivesse ansioso para ver a estreia desse incrível quarteto. Hearth agrupa quatro vozes que têm feito muito do mais inventivo que temos ouvido na última década. Estão aqui reunidas quatro artistas de diferentes nacionalidades: a trompetista portuguesa Susana Santos Silva, a pianista eslovena Kaja Draksler, a saxofonista argentina Ada Rave e a saxofonista dinamarquesa Mette Rasmussen, o que bem ilustra a universalidade dessa música. Elas se uniram pela primeira vez em 2016, durante o festival October Meeting, na capital holandesa. E dali saiu a ideia de formar um grupo mesmo, ideia que culmina agora neste álbum de estreia. Captado no Portalegre Jazz Festival, em maio de 2019, Melt traz seis peças, em quase 50 minutos de música. O nome do grupo é um neologismo que une as palavras "Earth" e "Heart". E a envolvente exploração sonora que o trabalho nos oferece parece dialogar tanto com o nome do grupo quanto com os títulos das faixas, além da paisagem que estampa a capa. Assim, essa exploração começa com um tema que traz um título significativo como "Fading Icebergs", que abre o álbum de forma hipnótica e como que nos convidando a embarcar com as artistas nessa viagem, com os sopros e o piano indo e vindo, soltando notas esparsas, repetitivas, inebriantes, que acabam por se revelar uma justa introdução à explosão de sons que vêm em seguida. Após a serenidade da abertura, "Tidal Phase" chega de forma contundente, com nossos ouvidos sendo atacados pelo trompete e os saxes em rotação contínua, ataque que dura uns dois minutos (mas que parece mais, devido à sua intensidade), baixando o tom para uma seara mais reflexiva no restante da peça. Os últimos dois temas (os mais extensos) são os que oferecem a maior amplitude da sonoridade do quarteto. "Diving Bells" inicia com o sax tenor de Rave, que centra as ações nos primeiros dois minutos, enquanto suas cortantes linhas são atravessadas por ruidosidades vindas de vários lados; o espaço se alterna com o piano ascendendo ao primeiro plano, com Draksler explorando notas esparsas, que jogam nossa atenção de um lado a outro, até que nossos sentidos sejam aguçados por um assobio, depois vocalizações, que abrem espaço para o retorno do sax tenor, que nos conduz a um ponto de maior serenidade adentrando a parte final: são muitas vias de exploração e possibilidades, que se revelam realmente bem amarradas; dúvida: trata-se centralmente de free improvisation? Em “Turbulent Flow”, que fecha o registro, Draksler está incrível na primeira parte, com o piano em um tema circular que domina os primeiros dois minutos, até que o trompete atravesse o ar e o clarinete (tocado por Rave) irrompe em linhas paralelas ao sax de Rasmussen (um dos grandes momentos do álbum). O piano volta ao protagonismo, ameaçando adentrar um solo, mas sem ir muito longe, logo interagindo com os sopros, nos lembrando que a coletividade está no centro da música do grupo. É curioso que a única dessas quatro artistas que nunca tocou no Brasil seja Ada Rave, nossa vizinha argentina. Quem sabe não a vejamos pela primeira vez por aqui exatamente em um concerto do Hearth?

  

------

*quem assina:

Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com publicações como Entre Livros, Zumbido e Jazz.pt. Nos últimos anos, tem escrito sobre música e literatura para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live in Nuremberg”, de Perelman e Matthew Shipp (SMP Records)