CRÍTICAs O pianista Matthew Shipp e o
baterista Whit Dickey voltam a unir forças, em um novo registro em duo, mostrando
bem o porquê deles estarem entre os mais brilhantes músicos da cena contemporânea...
Por Fabricio Vieira
O duo é uma das
formações mais exploradas no mundo da free music. Nesse segmento, mesmo que não
estejam entre os mais populares, os duetos de piano e bateria já renderam
álbuns geniais. Lembremos das parcerias de Cecil Taylor com Max Roach
(“Historic Concerts”) e Tony Oxley (“Left Pal Hand”); ou de Irène Schweizer com
Han Bennink; Marilyn Crispell e Gerry Hemingway (“Duo”); Alexander von
Schlippenbach e Sunny Murray (“Smoke”), e por aí vai. Agora temos a
oportunidade de ouvir um novo registro nesse tipo de encontro, reunindo dois
grandes nomes da música contemporânea: o pianista Matthew Shipp e o baterista
Whit Dickey.

Shipp e Dickey
são parceiros de longa data. Pianista e baterista começaram a trabalhar juntos
há muito tempo, no quarteto de David S. Ware (1949-2012), ainda no começo dos
anos 90. Na mesma época, Shipp montou um trio, e as baquetas ficaram a cargo
exatamente de Dickey. Entre idas e vindas, a parceria entre os dois ganhou novo
alento em anos recentes, culminando exatamente no álbum duplo “Morph”, editado
por Dickey no ano passado, onde eles aparecem em duo e em trio com Nate Wooley.
Shipp demonstra em sua trajetória ter um especial apreço por tocar em duo,
tendo experimentado o formato ao lado de diferentes instrumentos, como baixo
(com William Parker e Michael Bisio), guitarra (Joe Morris, Mark O’Leary),
viola (Mat Maneri), trompete (Nate Wooley) e o seu favorito, o sax, que rendeu duetos com uma ampla lista de saxofonistas: Roscoe Mitchell, Ivo
Perelman, Rob Brown, Darius Jones, Evan Parker, David S. Ware, John Butcher,
Sabir Mateen, Daniel Carter.... Mais recentemente, em 2016, lançou um álbum em
duo com o baterista Bobby Kapp (“Cactus”).

O novo
Reels
reúne Shipp e Dickey em uma sessão em duo captada em 12 de março de 2019 no
Park West Studios, no Brooklyn (NY), mixada e masterizada pelo sempre preciso Jim
Clouse. São dez faixas, que vêm da mesma época em que saíram os oito temas
presentes em “Reckoning” (nome dado ao registro em duo que forma um dos CDs de
“Morph”). Ou seja, este novo disco funciona como uma continuação, um lado B, do
álbum lançado no ano passado. Dessa forma, quem escutou aquele disco sabe por
onde vai este novo registro, apesar de suas inerentes surpresas: grande música
feita por dois artistas singulares. Apesar de Shipp e Dickey terem tocado
juntos em diferentes projetos nas últimas três décadas, esse encontro, focando
somente os dois, tem apelo único, é onde podemos de fato ver o diálogo entre
eles em todas as suas nuances. "Lattice"
abre o registro com muita placidez, com notas esparsas sendo dedilhadas por
Shipp, enquanto Dickey vai tomando o espaço sutilmente com os pratos e um toque
aqui outra acolá na caixa; uma introdução perfeita ao universo que vai se abrindo
aos nossos ouvidos. “Cosmic
Train”, na sequência, muda o jogo, ampliando os horizontes expressivos – e
entregando já um dos ápices do álbum, com Shipp martelante como nunca,
lembrando até por vezes o toque mais percussivo que marcava sua música na
década de 90, enquanto Dickey vai elevando o pulso, sempre com pratos e chimbal
trabalhados com sua rude delicadeza, com toques surdos pontuais nas peles, com
a tensão indo lá em cima, apenas baixando no minuto final da faixa. Momentos sublimes
nessa que é uma das peças mais empolgantes do ano. “Hold Tight” mantém a
temperatura, com suas linhas martelantes e circulares e uma pegada mais firme
de Dickey. "Moon Garden" muda o tom, adentrando uma atmosfera mais
lírica. Já a breve "Fire Dance" traz outro tipo de quebra: coloca
Shipp em primeiro plano, sendo a breve peça centrada no piano, com Dickey dando
mais um suporte (como um todo, o disco se desenvolve tendo o diálogo entre os
dois instrumentistas, não o protagonismo de um deles, em foco).
"Vector" é outro tema incrivelmente potente, com o baterista marcando
sólida presença, força que é retomada na faixa-título, especialmente em seus
quatro intensos primeiros minutos. O disco fecha com "Icing", em
tonalidade bastante diversa, abstratamente contemplativa, funcionando
perfeitamente como um epílogo, instigando nossa escuta para um (esperamos que
não tarde) novo capítulo desta mágica parceria.
Reels será publicado pelo selo Burning Ambulance Music no dia 23 de julho, em CD com edição limitada de 500 cópias.
Reels ****(
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Matthew Shipp/
Whit Dickey
Burning
Ambulance Music
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*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e
Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos;
foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com
publicações como Entre Livros, Zumbido e Jazz.pt. Nos últimos anos, tem escrito
sobre música e literatura para o Valor Econômico. É autor de liner notes para
os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of
the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live in Nuremberg”, de
Perelman e Matthew Shipp (SMP Records)