CRÍTICAs Um box com nada menos que 13 CDs traz Anthony Braxton mais uma
vez em excitante visitação ao universo dos standards...
Por Fabricio Vieira
Cerebral, abstrato, hermético, vanguardista, muitos predicativos podem
vir à mente das pessoas quando se deparam com o nome de
Anthony Braxton. E quem
não adentrou sem medo sua obra pode acabar ficando preso a essas superficiais
rotulações. Braxton vai muito além. Braxton também swinga. E sabe ser
emocional e (por que não?) divertido quando empunha o sax alto. Avant-garde sem
renegar a herança jazzística. A complexa arte braxtoniana é composta de
elementos diferentes que abarcam desde sua metodologia e teoria composicionais
à improvisação sem amarras – e sem esquecer que o jazz existe e, sim, faz parte
de seu vocabulário. Não é à toa que, enquanto foi desenvolvendo sua obra, vez
ou outra Braxton deu um aceno aos standards que compõem o mundo jazzístico e o
cancioneiro norte-americano. Voltemos ao início de sua carreira e já lá em 1972
encontramos Braxton editando o álbum "Dona Lee" que, além do clássico
do bebop que nomeia o disco, trazia o standard "You Got To My Head"
(em meio a peças suas). Não tardaria para o saxofonista dedicar discos inteiros a
certa herança e tradição musicais. Claro que essas revisitações sempre foram feitas
com sua marca expressiva, standards atravessados pela mente e sopro de Braxton. Tais
registros formam um canto próprio dentro de uma discoteca braxtoniana, com
títulos que se espraiam por toda sua carreira, tendo ficado pelo caminho registros como "In The Tradition" (1974), "Seven Standards" (1985),
"Solo Piano (Standards) 1995", "Six Standards (Quintet) 1996" e o
monumental painel "23/20 Standards" (2003), dois boxes com 4 CDs cada
editados pelo Leo Records. Isso sem esquecer dos álbuns dedicados às obras de
ícones do jazz como Lennie Tristano, Charlie Parker e Thelonious Monk. Essa
faceta da obra de Braxton ganha agora um novo extenso capítulo:
Quartet
(Standards) 2020, nada menos que um box com que 13 CDs inéditos.
O lançamento, realizado pela parceria New Braxton House/Tri Centric
Foundation, é fruto das celebrações dos 75 anos de Braxton, completados em 4 de
junho de 2020. Infelizmente boa parte das comemorações planejadas para a
efeméride foi abortada pela pandemia que começou a assolar o mundo pouco mais
de um ano atrás. Mas Braxton conseguiu fazer a turnê europeia, no começo de
2020, de onde saiu a música que compõe este novo box. Acompanhado pelo Standard
Quartet – formado para a ocasião ao lado dos britânicos Alexander Hawkins
(piano), Neil Charles (baixo) e Stephen Davis (bateria) –, Braxton se
apresentou, entre 15 e 25 de janeiro de 2020, pela Europa, passando pelas cidades
de Londres, Warsaw (Polônia) e Wels (Áustria), locais de onde vêm a música
agora reunida. O box oferece nada menos que 67 faixas captadas em nove
apresentações, em um amplo cardápio que traz temas do "Great American
Songbook" ao lado de peças de Sonny Rollins ("Alfie"), John
Coltrane, Wayne Shorter, Dave Brubeck, Charles Mingus ("Peggy's Blue
Skylight"), Monk ("Pannonica", "Evidence"), Duke
Ellington, dentre outros.
Interessante destacar que este quarteto foi armado especialmente para a
ocasião. Dos três músicos convidados, Alexander Hawkins é o mais conhecido de
quem acompanha o mundo da free music; e foi ele que chamou Charles e Davis, que
costumam tocar com o pianista em diferentes projetos, para compor o grupo. O
entrosamento da "cozinha" com certeza facilitou as coisas: a música
flui com tal leveza que parece se tratar de um grupo que toca junto há uma longa
temporada. O painel apresentado é bastante amplo, e não apenas pelas dezenas de
faixas executadas (que, aliás, não se repetem: considerando que foram nove
noites de apresentações, dá para inferir que cada show teve um repertório
bastante distinto do outro). Fica a imaginação sobre as conversas de Braxton
com seus parceiros antes dos concertos (considerando que não deve ter havido
muito tempo para ensaios de verdade), dizendo "hoje tocamos essa, essa e
aquela". E como não se tratava de concertos de improvisação livre, era bom
que os músicos, de fato, tivessem algum conhecimento das peças apresentadas. Esse
passeio pelas estradas da tradição nos leva por entre clássicos do jazz ("Prelude To a
Kiss", "Moment's Notice"), baladas irresistíveis ("Old Friends",
"I'm So Glad We Had This Time Together"), passando por um bop certeiro ("Groovin' High") e encontrando até espaço para uma visitação a "Desafinado"
(e sem muita desconstrução, bem melódica e com uma levada bossa novística mesmo)...
Dentre muitos momentos excitantes, dois grandes destaques: "Evidence", bastante
ousada, fragmentada, jogando com ataques e silêncios, uma versão que se diria marcadamente braxtoniana; e a intensa releitura de "Impressions", com as baquetas
de Davis em potência máxima e solos inspiradíssimos de Braxton e Hawkins
enchendo nossos ouvidos.
Sobre a experiência de estar no Standard Quartet e tocar com Braxton
pela primeira vez, o baterista Stephen Davis disse ao site Marlbank: "The
group played standards but not how most would think of them. Braxton would say
things to us about how he envisaged the music but would never tell us what to
play. Instead he would suggest things and coax a group dynamic that would
respect the compositions whilst attempting to stamp a new approach. This
dissecting of the music often opened a door into an open space where we could
roam and coexist with the original intent of the composition. At times there
was only a vapour trail of the standard left but Braxton would somehow be able
to carve his sound around us".
Com o dólar insistentemente acima de R$ 5, importar o box não fica nada
acessível: o preço sugerido é de US$ 130. O álbum será editado no formato
digital no dia 18 de junho e os CDs (edição limitada de 300 cópias) devem estar disponíveis a partir de 15 de agosto.
*Photo
(3): Dawid Laskowski
Quartet (Standards) 2020 ****(
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Anthony Braxton
New Braxton House/Tri Centric Foundation
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*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e
Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos;
foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com
publicações como Entre Livros, Zumbido e Jazz.pt. Nos últimos anos, tem escrito
sobre música e literatura para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os
álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of the
Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live in Nuremberg”, de Perelman e
Matthew Shipp (SMP Records)