Steve Lacy, 1966: desventuras na Argentina


Há 55 anos, o saxofonista Steve Lacy embarcava pela primeira vez para a América do Sul, junto com seu quarteto, em uma viagem que acabou se transformando em uma experiência cheia de infortúnios...

 



Por Fabricio Vieira

 

A passagem de Steve Lacy com seu quarteto pela Argentina em 1966 se tornou um daqueles eventos lendários que todos conhecem, mas do qual não se tem uma versão precisa, oficial. A história daquele que foi provavelmente o primeiro concerto de free jazz realizado na América Latina daria (e quase deu) um ótimo roteiro de filme, com os músicos, por meses, impossibilitados de deixar um país em que nem a língua falavam. Ao menos, de concreto, restou um disco ("The Forest and The Zoo") e as memórias (nem sempre confluentes) daqueles que presenciaram ou vivenciaram a pitoresca história.

O ano de 1966 seria sem dúvida marcante para o saxofonista Steve Lacy (1934-2004), tanto musicalmente quanto pessoalmente (seria neste ano, inclusive, que conheceria Irene Aebi, violoncelista suíça que se tornaria sua companheira nas décadas seguintes). O músico nascido em Nova York tinha à época ido passar uma temporada na Europa, em busca de novos ares para a sua música, cada vez mais entranhada no universo free jazzístico. Ainda no fim de 65, em Roma, estava tocando com um novo trio, com Kent Carter (baixo) e Aldo Romano (bateria), com quem gravaria o disco "Disposability". Pouco depois, um jovem trompetista local, Enrico Rava, se uniria a eles. Já em quarteto, voltaram a estúdio em 4 de fevereiro de 66, em Milão, de onde sairia o conhecido álbum "Sortie". Mas essa etapa durou pouco, com Carter e Romano partindo para outros projetos. Lacy, que estava contente com o formato da banda, saiu à procura de substitutos. O saxofonista foi com Rava para Londres, onde acabou convidando para tocar com eles o baixista Johnny Dyani (1945-1986) e o baterista Louis Moholo, dois músicos sul-africanos que haviam desembarcado na Europa em 64 ao lado de seus parceiros no (futuramente mítico) grupo The Blue Notes. Empolgado com a sonoridade do novo quarteto, Lacy reservou o dia 10 de março para uma sessão em um estúdio em Londres. Com a gravação na mão, enquanto aguardavam a resposta (que nunca chegou!) do produtor de um conhecido selo para um possível lançamento, veio a ideia de Rava que marcaria profundamente todo o resto daquele ano: por que não ir tocar na Argentina? O inusitado convite para a época tinha uma explicação: a então namorada de Rava, Graciela, era argentina e poderia indicar o caminho das pedras para eles. E a história acabou indo para frente. Semanas depois, Lacy, Rava, Dyani e Moholo tomavam um avião rumo a Buenos Aires, com a ideia inicial de ficarem algumas semanas (conseguiram agendar shows para os 15 dias seguintes) no país e depois tentarem ir para o Brasil ou cavar mais alguma apresentação na América do Sul. Mas os músicos cometeram um grande erro: foram apenas com a passagem de ida, com a proposta de receberem o cachê e as passagens de volta no decorrer da breve turnê, organizada por um tal de Centro de Artes y Ciencias*. "Steve e eu fomos a Londres procurar Dyani e Moholo porque conhecíamos os dois. Fizemos alguns shows na Itália e depois partimos para a Argentina, onde tocamos 15 dias em um teatro. Havia muitas pessoas nas primeiras noites, mas a música que tocávamos não era muito amigável [risos]. Era muito radical e, portanto, a cada dia havia menos e menos pessoas. No último dia, já não havia ninguém. Terminamos as gigs, não tínhamos dinheiro e não sabíamos o que fazer", afirmou Rava, em entrevista à All About Jazz.

Não se sabe com exatidão por quantos meses se estendeu a forçada temporada argentina do quarteto naquele ano de 1966. Normalmente fala-se em oito, nove meses; mas ninguém aponta o mês preciso em que chegaram ao país sul-americano (às vezes, fala-se em primavera, às vezes em verão no Hemisfério Norte quando partiram); provavelmente lá para maio, abril talvez. Sabemos que Lacy, Rava, Dyani e Moholo se juntaram em março daquele ano em Londres, depois fizeram alguns shows na Itália e então embarcaram para a Argentina. Na outra ponta, a última aparição pública deles em Buenos Aires, quando gravaram The Forest and The Zoo, se deu em meados de outubro. Para completar os apuros dos músicos, após as gigs programadas, sem dinheiro e sem passagem de volta, em um país em que nunca tinham estado e nem ao menos falavam o idioma local (lembrando que o quarteto era formado por um norte-americano, dois sul-africanos e um italiano), a Argentina sofreu um golpe militar. No dia 28 de junho de 1966, o general Juan Carlos Onganía liderou um golpe de Estado e assumiu o comando do país, posto no qual se manteria até 1970. "That was the wrong group at the wrong time in the wrong place playing the wrong kind of music, the wrong money and wrong hotel. (...) And we arrive with our little free jazz routine, and posters advertised: Revolution in Jazz! You can imagine the reaction. We were on one-way tickets and playing off the door of the theater. It's a recipe for disaster. (...) We played all we could, and we performed, and eventually we found a small public that appreciated what we were doing", contou Lacy, que fala em tanques nas ruas e completa: "It was a facist jungle"  (In: DownBeat - The Great Jazz Interviews).

Esse era exatamente o período em que Lacy havia mergulhado mais profundamente na free improvisation. Talvez se tivesse ido à Argentina uns anos antes, com o School Days (grupo que teve com Roswell Rudd, em que revisitavam o material de Monk em uma visada mais free), as chances de algum sucesso teriam sido maiores. E talvez tivessem conseguido arrecadar logo dinheiro suficiente para poderem ir embora. A Argentina sempre foi um país com uma forte presença do jazz, com uma efervescente cena local. Mas free improvisation e energy music eram coisas ainda muito radicais para a maioria dos fãs de jazz à época, imagine na América do Sul... Sobreviver por meses em Buenos Aires não deve ter sido nada fácil. Não encontramos nem em entrevistas nem em artigos detalhes do cotidiano dos músicos no decorrer daquele ano, mas tudo indica que foi a comunidade de artistas que os acolheu e permitiu que atravessassem aquele longo exílio forçado. Para Rava, as coisas devem ter sido menos difíceis, já que ele ficou hospedado na casa da família da namorada. Mas os outros tiveram que se virar. No caso de Lacy, teria ficado hospedado na casa do escritor Néstor Sánchez (1935-2003), no bairro de Villa Pueryndon. Sánchez, fã de jazz, buscava inspiração na improvisação jazzística para compor a novela que escrevia então, "Siberia Blues", editada no ano seguinte e que se revelaria um dos livros mais inventivos lançados na época. De Dyani e Moholo, que ao que parece nunca retornaram à Argentina, pouco se sabe; uma rara informação encontrada é dada pelo saxofonista local Sergio Paolucci. Adolescente então, Paolucci era filho de um amante de jazz e músico amador, que acabou abrigando os músicos sul-africanos. "Durante su estadía en Buenos Aires, que fue bastante prolongada por razones económicas, Dyani e Moholo vivieron en mi casa y ese contacto cotidiano me levó a profundizar en el free jazz", diz Paolucci*. Dyani viveu relativamente pouco, morreu nos anos 80, sendo mais difícil encontrar testemunhos dele. Já Moholo, ativo até hoje, raramente fala da experiência argentina. Em um raro relato, demonstra que as coisas podem ter sido mais difíceis do que podemos imaginar, como quando um cara quebrou a bateria dele. "This cat came on-stage in Argentina and smashes all my drums. The story behind it - I would not like to tell you. But, that’s what happened: this guy smashed my drums to nothing. Later, I have to play with Lacy. I had to play, so I picked up some pots and pans", disse Moholo, em entrevista em 2005.

Lacy chegou a pensar em procurar a Embaixada dos Estados Unidos para pedir que fosse repatriado. Mas, e o que fazer com seus companheiros? O saxofonista, então com 32 anos, uma década de carreira e já com um punhado de discos lançados, era não só o líder do quarteto, mas o artista veterano entre eles. Vendo de hoje, logo pensamos no grupo como um superquarteto, mas a verdade é que se tratava de jovens talentos ainda tentando se firmar: Rava, com 26 anos, Moholo, também com 26, e Dyani, de apenas 20 anos, só veriam seus trabalhos deslancharem, tornando-se nomes destacados na cena, a partir dos anos seguintes. "As pessoas nos pagavam bebidas, mas nunca refeições", disse certa vez Lacy sobre a difícil temporada em Buenos Aires. Com a ajuda de alguns amigos artistas que fizeram, foram aos poucos arrumando gigs em bares, eventos culturais, festas de endinheirados ligados ao mundo da arte, tudo o que fosse possível para o quarteto ir sobrevivendo e juntando dinheiro para poder deixar a Argentina. Rava conta que havia uma dificuldade extra: como eram estrangeiros, eles tinham que pagar as passagens de avião em dólares, sendo que quando recebiam algum cachê era na moeda local. Um dos lugares em que se apresentaram por um tempo foi o café Gotán, espaço criado pelo músico Tatá Cedrón nos anos 60, referência para a cena tanguera do período. "Tocamos 20 días en un club que se llamaba Gotán. La primera parte la hacíamos nosotros, la segunda la ocupaba Piazzolla con su quinteto", rememorou Rava, em conversa com o jornal Página/12. Lacy em algumas ocasiões também destacou que dividiram as noites em certo tempo com o grupo de Astor Piazzolla (1921-1992), lembrando que o cultuado músico argentino afirmou que, quando chegava em casa depois de ouvi-los tocar com "faca entre os dentes", tinha que colocar Vivaldi e Monteverdi na vitrola para acalmar os nervos. "Eu vi o grupo mais de uma vez. Meus amigos e eu gostamos muito. Estávamos perfeitamente conscientes de que ele era um elemento importante na atividade musical daquele momento. Nos shows que assisti, o local estava lotado - mas, proporcionalmente, era provavelmente um público muito pequeno. Sabíamos de uma maneira geral o que ouviríamos. (Mas) eu nunca tinha escutado Steve Lacy tocar de uma forma tão decididamente livre, e isso me impressionou", disse em entrevista um dos pioneiros do free impro argentino, o saxofonista Guillermo Gregorio, que pouco depois ajudaria a criar o influente coletivo Movimiento Música Más.

O desfecho dessa inusitada temporada se daria no dia 8 de outubro de 1966. Segundo Rava, foi o compositor Alberto Ginastera (1916-1983), que era diretor do Instituto Di Tella, quem organizou o concerto deles nesse importante centro cultural, palco destacado para as artes de vanguarda da Argentina na década de 60. Lacy, atento à estrutura que o Centro de Experimentación Audio-Visual do instituto oferecia, decidiu gravar a apresentação para ter um registro daquela improvável temporada. Do show, ficariam duas peças de tamanhos praticamente iguais (20:53 e 20:56 minutos), chamadas depois de "Forest" e "Zoo", em alusão à paisagem do bairro de Palermo, com seu zoológico e seus bosques. Depois daquela noite, a expectativa de deixar o país sul-americano parecia algo menos incerto, apesar de não terem ainda as passagens na mão. Os primeiros a conseguirem partir foram Lacy e Rava, rumo a Nova York. Segundo o crítico argentino Sergio Pujol, o saxofonista teve que recorrer a seu pai nos Estados Unidos, com quem não falava há anos, para completar o dinheiro necessário para as passagens. Já Rava, recebeu uma ajuda do pessoal da Embaixada da Itália**. Saxofonista e trompetista fizeram uma escala no Rio de Janeiro, onde ficaram dois ou três dias, mas sem tocar na cidade (Lacy se apresentaria no Brasil apenas em 2000). No caso de Dyani e Moholo, tiveram que ficar ainda mais um tempo na Argentina, até o alvorecer de 1967, tendo sido socorridos por Chris McGregor e seus parceiros de Blue Notes, que fizeram uma vaquinha para completar o custo da viagem deles de regresso a Londres***.

Uma das primeiras coisas que Lacy fez em Nova York, ainda antes de o ano acabar, foi procurar Bernard Stollman, fundador do ESP-Disk. "Steve Lacy visited the new ESP-Disk office (...) with a master tape of his concert in Buenos Aires with his quartet. He offered to sell the master for what I thought was an exorbitant price. I bought it", diz Stollman, que lançou a gravação, com o título "The Forest and The Zoo", pelo ESP-Disk em 1967. Stollman conta ainda uma curiosidade de quando o disco seria reeditado pela primeira vez em CD, em meados dos anos 90: "In 1992, the master tape was brought to enginner Ken Robertson at the Sony Studio, who observed that it had been recorded out of phase, and he corrected the phasing". O disco acabou se tornando um documento muito importante na trajetória desses músicos e também, em certo sentido, um capítulo de relevo na(s) história(s) sobre o free jazz na América Latina. "Para mim, foi muito bom porque houve uma certa reação a esse disco na Europa e no Japão. De repente, quando retornei para a Europa, fiquei conhecido na comunidade jazzística por causa desse álbum. Eu acho que é um disco muito bom, e a música de um momento histórico", conclui Rava.


-Notas:

*Walther Thiers, "El Jazz Criollo y Otras Yerbas", 1999

** "Jazz Al Sur", 2004

***Richard Scott, “The Man with the Straight Horn” (The Wire), 1992



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*quem assina:

Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com publicações como Entre Livros, Zumbido e Jazz.pt. Atualmente escreve sobre música e literatura para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live in Nuremberg”, de Perelman e Matthew Shipp (SMP Records)