William Parker: cinco décadas de música


LANÇAMENTOs O baixista e compositor William Parker tem sua aguardada biografia finalmente editada, ao mesmo tempo em que lança um box com 10 novos discos...

 


Por Fabricio Vieira

 

Quando William Parker adentrou o palco do Teatro do Sesc Pompéia (SP), na noite do dia 15 de agosto de 2015, uma das grandes injustiças da agenda musical do Brasil começava a ser reparada. Um dos maiores nomes da música criativa, Parker havia sido ignorado até aquele momento por produtores e curadores nacionais. Mesmo com festivais regulares de jazz (e arredores) acontecendo no país desde ao menos a década de 1980, nunca haviam olhado para ele. O baixista havia estado no Brasil anteriormente, mas como sideman, com Cecil Taylor, em 1989, e com Yusef Lateef, em 2011. Seria apenas naquele noite de 2015, com seu quarteto, que Parker poderia mostrar toda a genialidade da arte que vem desenvolvendo desde meados dos anos 70, encantando os ouvintes que esperavam há tanto tempo poder vê-lo ao vivo. William Parker é uma parte fundamental do jazz, do free jazz, da música criativa e improvisada de nosso tempo: ignorar sua obra significa deixar de apreciar uma das vozes mais potentes da arte contemporânea. E sua genialidade artística ganha neste ano homenagens à altura, com o lançamento de um box com 10 discos novos e sua tão aguardada biografia. 

A trajetória profissional de Parker, que começou a estudar e tocar ainda na infância e teve aulas de baixo com figuras como Jimmy Garrison e Richard Davis, se iniciou no começo da década de 1970, quando passou a circular pela efervescente cena loft de Nova York. Nascido em 10 de janeiro de 1952 no Bronx (NYC), Parker está chegando a cinco décadas de atividade, em que tem criado incessantemente uma das obras mais sólidas, abrangentes e inventivas da música jazzística. Tendo deixado sua assinatura em mais de 400 álbuns, Parker, além de parceiro fundamental de artistas como Cecil Taylor, Peter Brötzmann e David S. Ware, tem comandado uma série de projetos obrigatórios para quem se interessa por free music, a destacar a "The Little Huey Creative Music Orchestra", o "In Order To Survive", o sexteto "Raining On The Moon" e o seu "Quartet", parte do que de melhor e mais excitante surgiu no free jazz e na música improvisada nas últimas décadas. "Eu chamo a música que toco de Creative Improvised Music. Ela traz influências e informações de sons de todos os cantos do mundo", sintetizou Parker em conversa com o FreeForm, FreeJazz quando esteve no país em 2011. Pela primeira vez, a história de Parker é contada de modo mais profundo e amplo. Universal Tonality: The Life and Music of William Parker (Duke University Press, 416 pgs.), de Cisco Bradley, que está sendo lançado neste mês, começou a nascer a partir de uma série de entrevistas feitas pelo autor com Parker. Depois, Bradley foi ampliando sua escuta conversando com pessoas próximas ao artista, da companheira Patricia Nicholson e sua filha Miriam a músicos como Matthew Shipp, Cooper-Moore, Steve Swell, Hamid Drake, Rob Brown, dentre outros, o que permitiu a ele traçar um painel extenso de sua vida e obra.

O livro é dividido em três capítulos. No primeiro, “Origins”, o autor busca traçar a história familiar de Parker, suas raízes na África Ocidental, depois na Carolina do Norte e Carolina do Sul, até chegar a Nova York, onde o baixista nasceu e cresceu. Esse tipo de capítulo inicial, comum em biografias, tem a finalidade de tentar encontrar sinais que ajudem a explicar como que a pessoa retratada acabou se tornando alguém vital na área que escolheu para seguir. “Parker’s journey to many of the world’s premier jazz stages began from humble beginnings as a poor kid growing up in the South Bronx in the 1960s. In December 1967, when William Parker was fifteen, living with his parents and older brother in the Claremont Housing Projects, he had a powerful vision that would define his life (...)”, escreve Bradley na introdução. Parker era um jovem especialmente interessado em cinema – nouvelle vague francesa, Bergman, Stan Brakhage –, mas logo viu que era a música que seria seu caminho. “Parker entered the music scene at the age of nineteen in 1971, just as the loft scene in downtown Manhattan was exploding with activity. He frequented many of the key venues of the time such as Studio We, Studio Rivbea, Ali’s Alley, and the Firehouse Theater. He quickly developed a reputation as one of the most talented young bassists on the scene and found gigs such that he was often playing five or more nights per week in his early years.” Este capítulo inicial ajuda a entender por que Parker se tornou o complexo artista que conhecemos, mas provavelmente o leitor fique mais interessado no segundo capítulo, que trata de seu percurso na cena na década de 1970. Dividido em três partes, traz: “The Loft Scene: Art, Community and Self-Determination”; “Music That Will Give People Hope: Centering Dance Music with Patricia Nicholson” e “Music Is Supposed to Change People: Working with Cecil Taylor”. Já o terceiro capítulo esmiúça seus principais projetos, desenvolvidos especialmente a partir dos anos 90: “It Is the Job of the Artist to Incite Political Revolution: In Order to Survive”; “Into the Tone World: Little Huey Creative Music Orchestra”; “Toward a Universal Sound: William Parker Quartet and Raining on the Moon”; e “Honoring the Elders: Tribute Projects and Other Bands”. Para fechar o livro, Bradley foca o momento atual do artista, seus trabalhos nos últimos anos e o legado de Parker.

In a way, William Parker’s a historian. He’s telling stories through his music. Until I sat down, I didn’t realize how many tributes he had done. He’s a proactive historical figure, he’s out there defining himself, defining his own narrative. His music is Black music, and it’s also other things. He says in the beginning of his career, he identified most closely with the Black music spiritual school. [Eventually he said,] I’m not going to be limited by any categories, but I’m also going to embrace these categories”, disse o autor em conversa com Lee Rice Epstein, do blog Free Jazz Collective.

Ao mesmo tempo em que a biografia é lançada, chega ao mercado Migration of Silence Into and Out of The Tone World (AUM Fidelity/Centering Music), um box com nada menos que 10 CDs. Cada CD traz uma grande peça/suíte, com suas várias partes, totalizando 91 faixas inéditas escritas por Parker, em um total de 594 minutos de música nova; o material foi gravado entre novembro de 2018 e fevereiro de 2020 no Park West Studios, no Broklyn (NYC), por Jim Clouse. As instrumentações mudam de um disco para outro, sendo que grande parte do material tem na voz feminina um importante elemento, com a maioria das letras/poemas também escritos por Parker. O disco 5, por exemplo, que traz a peça “Harlem Speaks”, é executado por um trio formado por Parker, a vocalista Fay Victor e o percussionista Hamid Drake. O disco 2, “Child of Sound”, traz apenas a pianista japonesa Eri Yamamoto, em um lírico capítulo solista dos temas criados por Parker. No CD 4, que traz “Cheops”, vemos Parker no baixo acompanhado por Kyoko Kitamura (voz), Matt Moran (vibrafone), Bem Stapp (tuba), Kayla Milmine-Abott (soprano) e Rachel Housle (bateria). Já o disco 10, com a peça “Manzanar”, traz Parker tocando vários instrumentos (khaen, Navajo flute...) acompanhado por um quarteto de cordas. A música apresentada no box adentra uma estética bastante ampla, não se trata propriamente de free jazz, e serve para bem mostrar o trabalho de compositor de Parker. Instrumental e tematicamente, ele buscou referências em diferentes culturas e momentos históricos, resultando em um trabalho, quando visto em sua totalidade, de grande ambição artística. “There are dedications to jazz heroes, Native Americans and Mexican migrants, plus tributes to the great African-American culture of Harlem and the mix of passion and compassion Parker found in vintage Italian cinema”, diz o release, ilustrando a amplitude de informações com as quais Parker lidou durante a criação da obra. Para quem se interessa pelo trabalho de Parker, 2021 começa de forma empolgante.

 

 

--------

*quem assina:

Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com publicações como Entre Livros, Zumbido e Jazz.pt. Atualmente escreve sobre música e literatura para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live in Nuremberg”, de Perelman e Matthew Shipp (SMP Records)