LANÇAMENTOs O ano começou agitado, com muita coisa boa saindo. Experiências variadas, possibilidades múltiplas. Ouça, divulgue, compre os discos...
Por Fabricio Vieira
Let My People Go ****(*)
Archie Shepp / Jason Moran
Archie Ball
Archie Shepp fez sua estreia discográfica exatamente seis décadas atrás, no álbum "The World of Cecil Taylor". O saxofonista nascido ne Flórida, em maio de 1937, continua ativo e buscando novas parcerias, o que nos leva agora a este duo com o pianista Jason Moran. O formato de duo de sax e piano é um dos favoritos de Shepp, como bem ilustra sua discografia. Desde que lançou "Goin' Home" (77), com Horace Parlan, Shepp gravou duos com vários outros pianistas: Dollar Brand, Mal Waldron, Ferdinand Tchangodei, Jasper Van't Hof, Joachim Kühn... Com Jason Moran, essa é primeira parceria. Shepp e Moran se conheceram relativamente há pouco tempo, nos bastidores do festival JazzMiddelheim, na Bélgica, em 2015. E não tardou para se reunirem no palco: Let My People Go traz material registrado ao vivo em dois concertos realizados pela dupla em setembro de 2017 (durante o Jazz à la Villette Festival , em Paris) e em novembro de 2018 (no Enjoy Jazz Fest, em Mannheim). São sete peças (há faixas bônus na versão para o Spotify), em cerca de quase uma hora de refinada e envolvente música. A opção de Shepp e Moran foi trabalhar com temas conhecidos, jazz, blues, spirituals em visões muito pessoais. O disco abre com o spiritual "Sometimes I Feel Like a Motherless Child", em versão lírica e tocante, tendo primeiramente o sax soprano em destaque, abrindo para um solo de piano e concluindo com a dolorida e profunda voz de Shepp, já adentrado os 80 anos, mas ainda mostrando muito vigor. "Isfahan", tema de Duke Ellington E Billy Strayhorn, surge em versão para sax tenor e piano, bastante livre. O esquema se repete em "Wise One", peça de Coltrane gravada em "Crescent" – tenor e piano, incrivelmente livres e inventivos, em alguns dos melhores momentos do álbum. Há ainda um outro spiritual, "Go Down Moses", e revisitações aos clássicos "Lush Life" e "Round Midnight", além de um tema de Moran, "He Cares", tocado com um soprano rascante. O encontro entre Shepp e Moran funcionou de forma precisa e resultou em um álbum cheio de encantos, para ser ouvido muitas vezes.Frequency Equilibrium Koan ****
Michael Gregory Jackson
Golden Records
Este é um belo exemplar resgatado lá da época da cena loft nova-iorquina. A gravação, realizada ao vivo no loft do cantor Joe Lee Wilson, o The Ladies Fort, em 1977, era inédita até agora, vinda dos arquivos pessoais do guitarrista Michael Gregory Jackson. A seu lado estavam alguns dos mais potentes instrumentistas da cena, Julius Hemphill (sax alto), Abdul Wadud (violoncelo) e Pheeroan aKLaff (bateria), formando um quarteto que dá vontade de ouvir só pela sua escalação – e ao que parece, não há outras gravações com esse grupo. Frequency Equilibrium Koan traz cerca de 40 minutos de música, nas quais vemos o quarteto explorando quatro temas de Jackson. “Heart & Center” é um dos destaques, marcada por intenso solo de Hemphill. Já “Clarity 3” tem importante presença do violoncelo, com Wadud em sua melhor forma. A vibração do disco muda em seu tema final, “A Meditation”, mais contemplativa e que traz inclusive Jackson tocando flauta e sinos. O registro tem qualidade sonora até que boa, considerando a forma como foi feito. “F.E.K. was recorded live (...) on my trusty Sony field recording cassette machine. This recording is not without some sound issues, it’s a little bright here and there, there’s some breaking up, and a bit of gritty dirt/old tape saturation...a stamp of time passed, in music that is wholly presente”, explica Jackson. Um valioso documento histórico.Resting In The Heart of Green Shade ***(*)
Patrick Shiroishi
Tripticks Tapes
Discos para saxofone solo têm feito parte da história da free music há cerca de cinco décadas. O formato é um daqueles praticamente obrigatório para saxofonistas dedicados ao free e se tornou uma marca para nomes referenciais como Evan Parker, Anthony Braxton e Kaoru Abe. Quando nomes mais jovens decidem se embrenhar por essa seara, fica no ar a dúvida se terão, de fato, algo de peso a agregar. O saxofonista nipo-americano Patrick Shiroishi aceitou o desafio e mostrou que tinha o que dizer. Com cerca de uma década de estrada, Shiroishi tem gravado, além do campo free impro, com artistas do rock e se arriscado às vezes por outros instrumentos, como guitarra e piano – na sua já extensa discografia, vale conhecer o intenso álbum, em quinteto, "Anfinsen's Landmark" (2015, Creative Sources). Mas o sax sem dúvida é seu instrumento central. E esta não é a primeira experiência do saxofonista, que vive em Los Angeles, no formato solo, o que ajuda a fazer com que demonstre segurança e inventividade solista nas quatro peças que formam Resting In The Heart of Green Shade. Tocando saxes alto, soprano e tenor, Shiroishi mostra que pode explorar com precisão tanto momentos mais energy quanto linhas mais contemplativas.Talking Gong ****
Susie Ibarra
New Focus Recordings
A percussionista e baterista Susie Ibarra é uma das vozes mais particulares da free music. Desde a década de 1990, Ibarra vem encantando com sua expressividade única, com uma forma muito própria de abordar o aparato percussivo em vias que buscam olhar também para suas raízes filipinas. E isso está bastante evidente neste novo trabalho, repleto de memórias afetivas. Para essa empreitada, Ibarra convocou o pianista Alex Peh e a flautista Claire Chase, em encontro que se deu em meio à pandemia, em julho de 2020, no Studley Hall, na SUNY New Paltz. Talking Gong é um projeto que nasceu a partir de uma residência para composição de Ibarra, em 2018, na State University of New York. Dedicado a seus pais, Herminia e Bartolome, o álbum traz nove peças que passeiam por suas memórias, com sugestivos nomes como "Merienda" e "Dancesteps". Entre temas solistas, em duo e em trio, Ibarra mostra toda sua lírica composicional em peças que podem ir dos 30/40 segundos que formam as "Merienda", que funcionam como intros e intermezzos, aos 16 minutos da faixa-título, na qual as ideias de Ibarra são melhor desenvolvidas, funcionando como uma síntese das propostas de Talking Gong.Aevum ****
Romulo Alexis
Brava
Romulo Alexis é um dos artistas mais criativos da cena brasileira. Uma das vozes do incrível duo Radio Diaspora, Alexis tem na última década participado de diferentes projetos artísticos, aos quais tem adicionado sua expressividade muito particular. O instrumentista retorna agora ao formato solista, que já havia rendido anteriormente o inventivo "Phylum” (2014, Mansarda Records). Mas agora a proposta do músico parece ser, em certo aspecto, mais profunda. Aevum é mais do que uma simples exploração da improvisação livre, sendo um trabalho que une interesses "estéticos e meditativos". Alexis explica: "Surge de um misto de interesses estéticos e meditativos, com foco nos mistérios causados pela defasagem de determinados hertz em relação ao sopro do trompete com distintas abordagens orgânicas do grão do som. Os hertz experimentados em AEVUM são relacionados aos 7 chakras principais dentro da tradição Hindu. O álbum propõe diálogos com um tipo de escuta profunda em um viés estético quase minimalista, não fosse a veia decompositiva que explora sem reservas os caminhos criativos abertos pelas manifestações dos fenômenos acústicos. O título faz menção ao gozo de uma temporalidade mítica, que escapa do cronológico". A música em si, com sua própria natureza contemplativa, seria suficiente para nos conduzir por essas vias amplas que o sopro de Alexis nos abre, mas suas palavras são relevantes, ajudando a amplificar a experiência singular que é ouvir o disco. Aevum é um trabalho com grande coesão interna, que funciona como uma obra única, com suas sete faixas arquitetadas como partes que vão se somando. Do quase-silêncio que atravessa "Anahata" às linhas cortantes que que surgem e se dissipam em "Manipura" ou atravessam o minuto final de "Svadhisthana", tudo se mantém dentro de uma lógica interna expressiva, sem arestas ou incoerências. A viagem sonoro-meditativa a que nos convida Alexis tem seu cume no tema final, "Sahasrara", com seus extensos 15 minutos nos engolfando de vez nessa experiência estética inebriante. E finda a escuta, entendemos melhor o que quis dizer com uma "temporalidade" que escapa do "cronológico": saímos do álbum como se estivéssemos deixando uma dimensão própria, de suspensão do cotidiano e do ordinário do dia a dia (importante: ouça o disco sem distrações). O álbum foi gravado no Estúdio Mitra (SP), na primavera de 2020, por Igor Souza, e está sendo oficialmente lançado hoje. A bela capa é de autoria da artista Leila Monsegur.Smashing Humans ****(*)
Sana Nagano
577 Records
A violinista japonesa Sana Nagano se estabeleceu em Nova York há cerca de uma década e tem aos poucos se destacado na fervilhante cena do Brooklyn. Depois de gravar com artistas veteranos como Karl Berger e Adam Rudolph, chegou a hora de Nagano apresentar seu novo projeto, o Smashing Humans. Para montar seu quinteto, escalou experimentados músicos de diferentes origens e trajetórias: Ken Filiano (baixo), Keisuke Matsuno (guitarra), Peter Apfelbaum (sax) e Joe Hertenstein (bateria). “It kind of means smashing our egos. I think that’s what it means at the end of the day. It means that we try so hard, but then we get into our agony and just going in a circle. We wanna mean it well, but it’s difficult, and we’re always being questioned by our egos”, diz a artista sobre o projeto. Smashing Humans traz oito peças compostas por Nagano, que servem de base e partida para intensas improvisações coletivas. Inegável a influência rock no álbum, tanto em sua atitude quanto no desenolvimento dos temas – ouçam a forma como as linhas são criadas e conduzidas por guitarra e violino na abertura de "Loud Dinner Wanted", por exemplo. A apresentação de Nagano como artista "noise-jazz" sintetiza bem sua estética, com picos caóticos de ruidosidade sendo cortados por solos mais arquitetados (como o envolvente que ela apresenta em "Dark Waw"), feitos por quem de fato domina o vocabulário de seu instrumento. Smashing Humans soa realmente como algo fresco, com potentes ideias novas. "Humans In Grey" é uma das faixas mais contagiantes, com o tema inicial cantado pelo violino sendo logo atacado pela entrada cortante de sax e guitarra, impulsionados pelo sólido pulso de Hertenstein, alcançando, lá pelos três, quatro minutos, uma explosiva massa sonora, antes de uma surpresiva pausa que prepara o desfecho da peça. Já "The Others Humans" fecha o álbum com outra vibração, algo mais viajante, com ruidosidades pontuais, funcionando como um epílogo. Gravado em julho de 2019 no BC Studios, no Brooklyn nova-iorquino, Smashing Humans será lançado em digital, vinil e CD, em edição limitada de 300 cópias, no dia 19 de março.--------
*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com publicações como Entre Livros, Zumbido e Jazz.pt. Atualmente escreve sobre música e literatura para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live in Nuremberg”, de Perelman e Matthew Shipp (SMP Records)