PLAY IT AGAIN (ainda 2020...)


LANÇAMENTOs
Antes de seguirmos com as novidades de 2021, trazemos discos que merecem ser conhecidos, editados em 2020 em diferentes cantos do mundo, que acabaram não aparecendo antes por aqui... Ouça, divulgue, compre os discos...

 


Por Fabricio Vieira

 


Selfie

Agustí Fernández

Sirulita

O pianista espanhol Agustí Fernández, em mais de três décadas de carreira, já tocou com a maioria dos principais nomes da free music. Neste novo registro, optou por estar só com seu piano, o que não deixa de ecoar o sentimento de isolamento que a pandemia nos submeteu. “Este álbum se chama Selfie por que eu gravei ele sozinho em meu estúdio, com o meu piano, meu microfone e meu equipamento de gravação. É ou deveria ser um retrato instantâneo do que penso/sinto atualmente sobre a música e o piano”, diz o artista. Com exceção de uma faixa mais antiga (“Limona”) gravada antes (que encerra o álbum), Selfie é composto por uma seleção de dez dessas peças que Fernández gravou sozinho no ano passado, representando um sólido painel de sua particular música, de complexa linguagem, aberta a técnicas estendidas. “Entendo o piano como uma caixa com potencial para fazer todos os tipos de sons. Eu toco o teclado de maneira tradicional, mas não exclusivamente. Para mim, a essência do piano está nos sons que as cordas emitem, não no teclado”, explica o músico de Barcelona.

 


Dream Twice, Twice Dreamt 

Ingrid Laubrock

Intakt Records

A saxofonista alemã Ingrid Laubrock tem nos últimos anos se firmado também como excelente compositora. Laubrock, que toca saxes alto, tenor, soprano e barítono, iniciou sua carreira no fim dos anos 90, mas começou a se tornar uma figura mais destacada na free music após se mudar para o Brooklyn (NYC), em 2009 – nos últimos anos, tem sido normal ver a saxofonista e seus álbuns seguidamente nas listas de melhores do ano. Em 2018, seu trabalho para orquestra “Contemporary Chaos Practices” mostrou a solidez de sua criação atual. E todos elementos que fizeram aquele álbum se destacar retornam neste novo ambicioso projeto. Dream Twice, Twice Dreamt traz cinco composições da artista. O álbum é duplo, sendo que no CD1 as peças são executadas pela EOS Chamber Orchestra Cologne, com Laubrouck, Cory Smythe (piano), Sam Pluta (eletrônicos), Robert Landfermann (baixo) e Tom Rainey (bateria) como solistas. No CD2, as mesmas cinco peças são reexecutadas, mas dessa vez por um sexteto. “While the small-group versions were composed first, I did not just re-arrange those compositions for the orchestra but rather re-imagined them. As I wrote the large-scale pieces, I often zoomed-in on a detail in a small-group version to generate a materially different large-group piece”, diz Laubrock.

 

 

Aura

Stefano Leonardi/ Colonna/ Bertoni/ Blumer/ Geisser

Leo Records

O flautista italiano Stefano Leonardi comanda novamente este quinteto em um novo título. A seu lado está o mesmo grupo com o qual gravou “L’Eterno” (2018): Marco Colonna (clarinete, sax sopranino), Antonio Bertoni (violoncelo), Fridolin Blumer (baixo) e Heinz Geisser (percussão). Aura foi captado em julho de 2019 no Metro Rec Studio, em Riva del Garda (Itália) e mostra o quinteto em ação em dez temas. O álbum é fruto de improvisação coletiva, com a ideia de criação em grupo sendo fundamental para o desenvolvimento das peças. A música vai de momentos de maior intensidade, como em “Breath”, com marcante solo de clarinete, e “Requiem” (nesta destacam-se as linhas criadas por flauta e violoncelo), a temas de climas encantatórios, com certo ar oriental, como “Sand Shapes”. A escolha/combinação dos instrumentos, que permitem intrigantes harmonias, é um dos grandes trunfos do álbum. 

 

 

Opus Magna

Nanati Francischini/ Romulo Alexis

Estranhas Ocupações

Este é o primeiro registro do duo formato por Nanati Francischini (guitarra, pedais de efeito) e Romulo Alexis (trompete, flauta). Captado em dezembro de 2019 no Estúdio Mitra (SP) e editado em meados do ano passado, Opus Magna apresenta cerca de uma hora de música dividida em sete temas. Se a improvisação livre é a trilha central percorrida pelo duo, a proposta é a de se abrir a múltiplas influências sonoras, como aponta o título do primeiro tema (“Free metal impro?”). Mesmo com tal proposta, a coesão do álbum não é rompida em nenhum momento. A música pode ir tanto dos ataques diretos, incessantes e de alta ruidosidade que abrem e fecham o disco (com a cortante “Inferno inferno”) a campos mais climáticos, nos quais os sons vão preenchendo o espaço com mais vagar (como em “Pense num vale à sua frente”). Os temas se desenvolvem de acordo com os limites de cada ideia, resultando em peças de tamanhos bastante variados, indo de 2 e 24 minutos, com a tensão oscilando, mas se mantendo firme, de ponta a ponta.

 

 

En Vivo En Dr. Jekyll

Ledesma/ Puntoriero/ Haslam/ Hurtado/ Marino

Discos ICM

Aqui um importantíssimo registro do jazz mais livre feito na Argentina no século passado. Captado originalmente em agosto de 1997, ao vivo no Dr. Jekyll (Buenos Aires), esta gravação, inédita até então, retrata um momento em que o saxofonista britânico George Haslam começou a se aproximar (e a divulgar) a cena do país. Junto a Haslam estão alguns dos mais destacados nomes do free jazz argentino: Pablo Ledesma e Pablo Puntoriero (saxes), Mono Hurtado (baixo) e Hugo Marino (bateria). Apresentando cinco longas peças, em mais de uma hora de música, sendo dois temas de Ledesma e dois de Hurtado, além do clássico popular "Vidala Para Mi Sombra" (de Julio Santos Espinosa), o quinteto mostra a vitalidade da música que era feita no país mais de duas décadas atrás.

 

 

Faixa Cinco 

Duo César & Juliano

Independente

Quem acompanha a cena free impro de São Paulo conhece o nome de Juliano Gentile, que teve papel fundamental para a difusão desta música, especialmente no período em que cuidava da curadoria musical do CCSP. Gentile também é músico e tem este interessante projeto em duo com o saxofonista César Martini. Com Juliano em guitarra e violão e César em sax e viola, são explorados neste disco de estreia oito temas, que têm no quinto (a “faixa cinco” que nomeia o álbum) seu centro de referência.  O duo estabelece diálogos a partir de gestos sonoros, suas interações e transformações. Sons não codificados formam o material musical bruto para expressar as múltiplas personalidades dos instrumentos. Através da escuta mútua, esses gestos são tomados não apenas como movimentos sonoros, mentais ou corporais, mas como portadores de intencionalidades”, explicam na apresentação do projeto. Em atividade há alguns anos, o duo tem uma íntima sintonia, desenvolvendo suas peças (relativamente breves) por meio de um diálogo que flui sem arestas ou protagonismos, uma música que tira sua força exatamente da interação das duas vozes.



Live At FarOut, Atsugi 1987

Derek Bailey/ Mototeru Takagi

NoBusiness Records/Chap Chap


Este encontro nunca editado oficialmente antes é um testemunho de grande valor na história da free improvisation. O lendário guitarrista britânico Derek Bailey (1930-2005) foi um dos primeiros músicos europeus a fazer parcerias com improvisadores japoneses, lá nos anos 70. Neste registro ele se une ao saxofonista Mototeru Takagi (1941-2002), referência da primeira geração do free nipônico. O duo subiu ao palco do FarOut, na cidade japonesa de Atsugi. O ano era 1987, e Bailey estava no Japão para uma pequena turnê, tendo se apresentado também com outros músicos. Live At FarOut traz mais de uma hora de improvisação livre, guitarra e sax soprano, dividida em quatro partes, sendo um enriquecedor capítulo na obra desses dois vitais artistas. Editado em CD e LP, faz parte da parceria entre os selos lituano NoBusiness e japonês Chap Chap que tem resgatado importantes registros de décadas passadas nunca antes lançados.

 


Introspective Landscapes

Sérgio Vieira

Tuaregue

Discos solistas de bateria na free music tem uma longa história, tendo um marco pioneiro em “What About?”, de Andrew Cyrille, de 1969. Apesar de esse tipo de registro não chegar a ser tão comum quanto os dedicados a outros instrumentos em formato solitário (como sax, piano e violoncelo), há importantes bateristas que deixaram álbuns solistas obrigatórios, como Roger Turner e Paal Nilssen-Love. De qualquer forma, é um formato que parece enfrentar certa resistência na hora de chamar a atenção dos ouvintes, mesmo que um concerto de bateria solista possa se revelar uma experiência de intensidade única. Em Introspective Landscapes, vemos o baterista brasileiro Sérgio Vieira testando o desafiador formato. O músico, que vive hoje no Porto (Portugal), apresenta aqui sete peças suas, registradas em meio à pandemia, em agosto de 2020. Vieira demonstra ter firme domínio do instrumento, sabendo utilizá-lo e explorá-lo em suas nuances também (observem como os quase-silêncios são fundamentais ao desenvolvimento de “Freedom’s Ritual”, por exemplo).

 


Rainbow Family 

George Lewis

Carrier Records

Este é um documento de inestimável importância. Vem lá da década de 1980 e mostra um período em que o trombonista e compositor George Lewis estava na França, desenvolvendo projetos no mitológico IRCAM. O registro, realizado em maio 1984, representa a conclusão de uma temporada de três anos que Lewis passou no Institut de Recherche et de Coordination Acoustique/Musique, onde estudou com Pierre Boulez e Tristan Murail. Rainbow Family é o primeiro de uma série de trabalhos que Lewis chamou de “interactive virtual orchestra”, que apareceram nos anos seguintes. As seis peças aqui presentes têm, de um lado, três computadores Apple II e um sintetizador Yamaha DX-7. E dialogando/interagindo com eles estão quatro experimentados instrumentistas da free music: Joëlle Léandre (baixo), Derek Bailey (guitarra), Douglas Ewart (clarinete-baixo, flauta) e Steve Lacy (soprano), que se alternam de uma faixa a outra, se juntando no tema final, o mais extenso do conjunto com quase 20 minutos. A música, se pode ser degustada como uma sessão de improvisação livre, tem toda uma complexa ideia que a ampara; dessa forma, vale ler as extensas liner notes de Lewis, disponíveis no Bandcamp junto com o disco.

 

 

--------

*quem assina:

Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com publicações como Entre Livros, Zumbido e Jazz.pt. Atualmente escreve sobre música e literatura para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live in Nuremberg”, de Perelman e Matthew Shipp (SMP Records)