O novo projeto de Shocron e Díaz


CRÍTICAs Paula Shocron e Pablo Díaz apresentam seu novo projeto em duo, Algo en un Espacio Vacío...     

 



Por Fabricio Vieira


Quem se interessa pela música livre contemporânea obrigatoriamente acompanha a viva cena da Argentina. E quem conhece a cena argentina inevitavelmente viu em diferentes projetos os nomes da pianista Paula Shocron e do percussionista Pablo Díaz. O intenso trabalho que eles têm realizado juntos nos últimos anos, que tem no SLD Trio (ao qual se junta o baixista Germán Lamonega) seu resultado mais sólido e expressivo, chega agora a um novo capítulo: Algo en un Espacio Vacío. Este novo projeto em duo começou em 2019, quando Shocron e Díaz participaram de uma residência performática no Centro Cultural Sábato, em Buenos Aires. As ideias desenvolvidas ali logo foram levadas para o estúdio de gravação, resultando neste álbum.

Algo en un Espacio Vacío se propõe a ser mais do que somente música: também participa do projeto a artista plástica Verónica Trigo. A interação entre as matérias sonora e visual se deu da forma mais íntima possível: enquanto Shocron e Díaz tocavam/gravavam as faixas, Verónica Trigo ia pintando em paralelo, improvisando visualmente, uma aquarela para cada tema. Assim, Algo en un Espacio Vacío se apresenta como uma obra interdisciplinar, algo que o lançamento busca destacar. O álbum receberá, além do formato digital, uma edição limitada em formato de livro, com o disco e a reprodução das aquarelas. Este é um projeto sonoro-performático que em sua roupagem original foi feito para o palco, com a gestualidade dos dois artistas, a participação do corpo no desenvolvimento da obra, sendo outro ponto de relevo. Agora com o disco perde-se essa dimensão corpórea, mas o diálogo se estabelece entre sons e imagens (daí a importância das aquarelas para o todo). Além disso, importante destacar também o papel das palavras (e da voz) nesse processo. Afora tantas interpretações que se abrem do nome do projeto/álbum (Algo en un Espacio Vacío ), vale dar atenção aos títulos das nove peças, cada uma titulada com apenas uma palavra: Obertura/ Alterna/ Calma/ Agua/ Caer/ Vaciarse/ Lejanía/ Ritmo/ Forma. Mais do que nomes colocados aleatoriamente, temos aqui um jogo poético que nos ajuda a adentrar e mergulhar nas entranhas da obra, em uma sequência que poderia se unir em uma palavra só (como podemos unir a sequência sonora como se tratasse de uma peça só em partes indivisíveis): OBERTURAALTERNACALMAAGUACAERVACIARSELEJANIARITMOFORMA. Há ainda a voz em si de Shocron, presente em algumas peças, quer seja recitando poemas, quer seja por meio de vocalizações. Tudo isso se une tendo as possibilidades abertas pela improvisação livre como um caminho condutor.  

Os dois artistas buscaram também extrapolar os limites expressivos dos instrumentos a que estão ligados, e não apenas por explorarem piano e bateria em possibilidades estendidas e ampliadas ao limite. Díaz fragmenta o kit-bateria, deixando seus membros circularem pelo espaço, libertos da estrutura que os une tradicionalmente; além disso, explora também, por exemplo, objetos levados à cena. Já Shocron, além do piano em si, usa sua voz (algo que já a vimos fazer no SLD) e, surpresivamente, adiciona um violoncelo a seu arsenal  brilhante pianista que é, Shocron deixa agora seus ouvintes à espera de até onde irá nessa investida em um novo instrumento. O álbum se desenvolve com uma dinâmica muito própria, pedindo para ser degustado como uma obra única. Ou seja, as ideias só atingem seu máximo quando todas as nove partes (e o que rodeia cada uma delas) são apreciadas sequencialmente, como cacos que formam um vitral. Se é verdade que cada peça tem a sua significância interna, o ideal seria para juntar todas elas em um processo imersivo no qual um tema vai se unindo ao que o precedeu e abrindo as fronteiras para o que vem depois, formando ao fim do percurso um todo expressivo que, apenas dessa forma, pode revelar cada uma de suas camadas. Assim, iniciado o álbum, depois de uma abertura dentro de um esquema mais esperado, com percussão e piano, ingressamos logo em campo de maior estranhamento, com o violoncelo entrando em cena ("Alterna"), com uma linha cortante que parece querer serrar o ar. Nesse ponto, fica claro que os rumos a serem explorados por Shocron e Díaz poderão trazer muitas surpresas pelo caminho, quer seja com a voz sussurrante e silabar ("Caer"), quer seja com o retorno do violoncelo ou até mesmo quando eles retomam a estrutura basilar de piano e percussão ("Lejanía", que traz os momentos mais líricos da obra). Atravessado esse percurso ao qual os dois artistas nos convidam, fica a sensação de que fomos inundados por um campo de frescas ideias expressivas, que mostram o quanto a improvisação nas mãos certas pode ser uma via de criação realmente genuína e de potência poética sem limites.

 

-Algo en un Espacio Vacío será lançado em 1º de fevereiro pelo selo Nendo Dango Records. As liner notes são assinadas por William Parker e Violeta García.

 

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*quem assina:

Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com publicações como Entre Livros, Zumbido e Jazz.pt. Atualmente escreve sobre música e literatura para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live in Nuremberg”, de Perelman e Matthew Shipp (SMP Records)