Ivo Perelman: 100 álbuns


CRÍTICAs O saxofonista Ivo Perelman solta nesses meses cinco novos discos, material inédito com parcerias e resultados bastante variados...


 


Por Fabricio Vieira


Quem acompanha o trabalho do saxofonista Ivo Perelman sabe que ele gosta de editar vários discos proximamente. E se ele andava um pouco calado nos últimos meses, fez desta virada de ano um de seus típicos eventos de lançamentos sequenciados. São cinco novos álbuns que chegam aos ouvintes, em novas edições até fevereiro, que fazem a discografia de Perelman alcançar os 100 títulos. No ano passado, quando completou 30 anos de sua estreia discográfica (com "Ivo", editado em 1989 pelo selo K2B2 Records), o saxofonista nascido em São Paulo e radicado em Nova York realizou dois marcantes concertos, em duo com o pianista Matthew Shipp, no Teatro do Sesc Pompeia (SP). Com um bom público presente, nem parecia que apenas pouco mais de uma década antes Perelman era ignorado por crítica e produtores brasileiros (e por tabela, pelo público), apesar de sua já destacada e sedimentada carreira no exterior. 


(Ivo Perelman, Rashied Ali e William Parker, 1996)


Quando entrevistei Perelman pela primeira vez, em 2005, para a Folha de S.Paulo, o gancho da reportagem era exatamente o fato de ele nunca ter tocado no Brasil até então. Em meados da década de 1990, quando, em sua primeira fase, o saxofonista buscava explorar brasilidades em seu free jazz, até que a imprensa brasileira chegou a escrever sobre sua música. Mas, conforme ele foi adentrando mais e mais o universo da free improvisation, ia sendo esquecido por aqui. E sua estreia nos palcos brasileiros acabaria acontecendo apenas em março de 2007, quando tocou em duo com o baixista Dominic Duval no Centro da Cultura Judaica (SP) – ele já tinha quase duas décadas de carreira e 28 álbuns editados. Uma coisa que chama atenção é que em todas as suas vindas ao país (2008, 2009, 2010, 2013, 2019) tocou sempre apenas em São Paulo; com certeza pessoas de outros estados gostariam de poder vê-lo em ação. Mas, apesar de ter estabelecido essa conexão com o Brasil na última década, a música de Perelman só teve a oportunidade de se espraiar por essa agora centena de álbuns devido ao interesse de selos estrangeiros. Com discos editados por alguns dos mais prestigiados selos dedicados à free music (Leo Records, Not Two, Cadence/CIMP, Clean Feed, RareNoise, ESP-Disk...), o saxofonista desenvolveu uma obra sólida e das mais expressivas da música criativa.


Ivo Perelman dá mais um passo nessa trajetória e solta agora cinco novos registros, que trazem o saxofonista atuando com parceiros diversos, alguns pela primeira vez, sempre em formato de duo ou trio (que se revelam atualmente os favoritos do músico). Os álbuns, captados em 2020, antes e em meio à pandemia, apresentam o que de mais recente Perelman tem produzido. A atração pelas cordas é uma marca antiga e constante na obra do saxofonista. E neste novo lote de discos vemos seu sax tenor em diálogos com instrumentos de cordas em três títulos. The Purity of Desire é especialmente interessante por trazer Perelman ao lado de dois artistas com os quais nunca havia trabalhado antes, o guitarrista canadense Gordon Grdina e o percussionista de origem iraniana Hamin Honari. Eles se reuniram em janeiro deste ano no Park West Studios (Brooklyn, NYC), onde Perelman tem registrado grande parte de sua obra nos últimos anos, sempre aos cuidados de Jim Clouse. Grdina (que aqui toca oud, instrumento similar ao alaúde, mais comum no Oriente Médio) é uma voz que está em ascensão (editou o excelente "Resist", com seu sexteto, no começo deste ano) e que traz novas perspectivas à sonoridade do saxofonista. Certo sabor oriental marca essa música, como fica claro já na faixa-título, que abre o álbum. Perelman adentra um terreno mais melódico, com passagens quase festivas, bailantes, que nos remetem à atmosfera de "En Adir" (1997), quando revisitou a música judaica em um modo free. "This Longing" é outra peça, bastante melódica, que adentra bem esse clima (ouvindo as linhas criadas por Perelman aqui, parece até tratar-se de uma composição propriamente e não de improvisação livre). Um álbum de sonoridade singular na discografia do músico.

O encontro seguinte com cordas é Dust of Light/Ears Drawning Sounds, feito em duo ao lado do guitarrista francês Pascal Marzan, em sessão realizada em 30 de janeiro deste ano, em Londres, no David Hunt Studio. Marzan (que toca guitarra acústica de 10 cordas) oferece uma voz que se adequa com perfeição ao desenvolvimento das ideias de Perelman. Os dois músicos se encontraram para apresentações em janeiro deste ano, na Hundred Years Gallery (Londres), e foi daí que veio a ideia deste álbum, que é a primeira gravação em duo que eles fizeram. O resultado são 12 faixas nas quais a improvisação flui sem arestas, com uma sessão relaxada, descontraída como uma conversa descompromissada. Os temas vão de 1 a 8 minutos e têm momentos de criação mais impactante, como "Bees And Squires In The Garden/Two Bees At My Window", a melhor do álbum, em que Marzan cria camadas contínuas com dedos incrivelmente ágeis, que servem de perfeito impulsionador aos solos mais potentes do sax no disco. 

Já em Shamanism vemos o sax-tenorista acompanhado de dois antigos parceiros, com quem começou a gravar em meados da década de 1990, o pianista Matthew Shipp e o guitarrista Joe Morris. É curioso, até por Shipp e Morris terem parcerias várias com Perelman, que este trio nunca tenha gravado junto nesse formato antes (eles estiveram lado a lado em "The Hour of The Star", de 2011, mas lá se tratava de um quarteto com Gerald Cleaver, que inclusive tivemos a oportunidade de ver ao vivo no Brasil). O brilho do novo disco deve muito também ao fato de Morris estar tocando seu principal instrumento. Não que o Morris baixista seja menor, mas é na guitarra que o instrumentista selou seu nome como dos mais inventivos de sua geração. Shamanism traz 10 peças, que variam entre 1 e 10 minutos, temas guiados pela improvisação livre mais inventiva que só um trio desse calibre pode trazer. O disco abre com uma pequena introdução de Shipp ("Prophets and Healers"), bastante lírica, que nos convida a adentrar esse universo. A faixa-título, na sequência, é a síntese da genialidade do trio, trazendo um diálogo desconcertante em que sax, piano e guitarra criam sonoridades impressionantes em que por vezes, especialmente nos primeiros minutos, nem entendemos de qual instrumento vem o som, tal integração simbiótica alcançada. "Spiritual Energies" traz outros desses momentos, com o piano dessa vez como que traçando as linhas centrais que serão percorridas pelo trio. O sax tem momentos de protagonismo maior em "Trance", com Perelman solando continuamente e sem amarras, especialmente na primeira metade da peça. Shipp volta sozinho em "Spernatural Faith", penúltimo tema que funciona como um intermezzo para o desfecho do álbum. O dueto de piano e guitarra que marca o primeiro minuto do tema final, "Religious Ecstasy", é deleite puro; e o sax surge como que duelando com eles, arisco, cortante  não poderia ter conclusão melhor o álbum.   

Ainda com Shipp, mas em trio com o baterista Whit Dickey, vem Garden of Jewels. Programado para ser oficialmente lançado pelo selo Tao Forms em janeiro próximo, Garden of Jewels marca o título de número 100 da discografia de Perelman. O disco traz oito temas e foi captado em junho passado, em meio à pandemia; o saxofonista conta que o dia da gravação, feita em uma sessão, foi a primeira vez que saiu de seu apartamento no Brooklyn desde que o isolamento começou meses antes. Com muita "tensão criativa no ar", como diz, os três músicos criaram uma potente sessão de improvisação livre. Esse trio fez um registro antes, em 2015 ("Butterfly Whispers"), e demonstra grande intimidade criativa, até por terem tocado em outras oportunidades e contextos. A capa de Garden of Jewels traz uma amostra da coleção de joias desenhadas por Perelman, lançada no ano passado, universo ao qual os nomes das faixas (de pedras preciosas) faz alusão. Um belo exemplar da sessão é "Amethyst", que começa com o sax uivando, nos remetendo ao Perelman mais vigoroso do final dos anos 90; se não chega a trovejar como naqueles tempos, o sax mostra ímpeto, ganhando impulso com as linhas de Shipp, antes de a tensão se acalmar. Outra faixa de impacto é "Sapphire", peça de energia free jazzística com linhas diretas e potentes, com o sax em solo de contínua vitalidade. Não faltam ao disco momentos de maior lirismo também, como na algo melancólica "Emerald" e em "Diamond", que fecha o registro.


E o último título, que chega em fevereiro de 2021 pelo novo selo Burning Ambulance Music, Polarity, apresenta um duo de sax e trompete, com Perelman ao lado do sempre inventivo Nate Wooley. É curioso que Pereleman nunca tinha gravado antes ao lado de um trompetista até o primeiro encontro com Wooley, em junho de 2017, que resultou nos álbuns "Octogon" e "Philosopher's Stone". E é relevante que isso tenha acontecido exatamente com Wooley, que é um dos nomes centrais do free da última década, sendo que temos a sorte de poder ver este excitante encontro de gerações. Polarity foi gravado em fevereiro deste ano, também no Park West Studios. "Four" abre o álbum com as duas vozes chegando aos poucos, como se estivessem sentindo o terreno. Mas, após não muito, pouco mais de minuto, já começamos a adentrar rumos mais intricados, onde o fluxo vai se desenvolvendo por meio de embates e consonâncias, em um diálogo certeiro. "Two B", na sequência, é bastante distinta, com o sax conduzindo os momentos iniciais, enquanto Wooley ao fundo explora técnicas variadas extraindo sons mais pontuais, que não chegam a rivalizar inicialmente com seu par; e depois que o trompete se junta no primeiro plano, vamos adentrando momentos melódicos até, chegando a passagens quase sussurradas para encerrar a peça. Já "Five" se revela como provavelmente a mais arisca, com sonoridades inusuais e linhas mais cacofônicas, com os sopros entrecortando o espaço sem se preocupar com um rumo linear. Essa grande alternância de possibilidades marca o disco, elevando o interesse da escuta e deixando a impressão de que as ideias de ambos são inesgotáveis, o que nos faz, automaticamente, ansiar por um novo capítulo da parceria.

   


The Purity of Desire  ****

Ivo Perelman / Gordon Grdina/ Hamin Honari

Not Two Records

 

Dust of Light/Ears Drawning Sounds ****

Perelman/ Pascal Marzan

Setola di Maiale/ Ibeji

 

Shamanism *****

Perelman/ Joe Morris/ Matthew Shipp

Mahakala Music

 

Garden of Jewels  ****(*)

Perelman/ Matthew Shipp/ Whit Dickey

Tao Forms

 

Polarity  ****(*)

Perelman/ Nate Wooley

Burning Ambulance Music

 

 

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*quem assina:

Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com publicações como Entre Livros, Zumbido e Jazz.pt. Atualmente escreve sobre música e literatura para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live in Nuremberg”, de Perelman e Matthew Shipp (SMP Records)