OBRAS ADULTERADAS


Não raro, gravadoras alteram as capas de discos de uma edição a outra. Mas às vezes essas mudanças extrapolam o razoável, com álbuns se tornando irreconhecíveis...

 




Por Fabricio Vieira

 

Parece impensável que saia alguma edição de discos como Bitches Brew, A Love Supreme ou Unit Structures com capas (ou títulos!) diferentes das versões originais sob as quais foram consagrados. Um álbum deveria ser encarado em sua concepção completa, como uma obra única formada por suas imagens, títulos e a música em si; parece óbvio, mas muitas vezes não é o que acontece. Mudar a imagem da capa é algo que ocorre até que bastante quando uma obra muda de gravadora ou passa a fazer parte de uma série especial específica (um álbum de outro selo que ganhe versão nova na Hat Hut receberá o tratamento laranja e branco da editora, por exemplo). Às vezes, as edições sofrem mudanças quando migram de um país a outro. Mas há casos de transformações que, de tão radicais, acabam por descaracterizar completamente a obra, fazendo com que ela perca suas particularidades (e valores, por que não) originais. As motivações para isso são variadas e nem sempre compreensíveis. E os resultados, por vezes, desastrosos. Levantamos alguns interessantes casos do universo jazzístico em que o disco original foi profundamente desrespeitado.   

 

 

FORCE (1976)

Archie Shepp / Max Roach

Este álbum explosivo, tanto sonora quanto imagética e discursivamente, reuniu dois dos nomes mais significativos daquela parte do universo jazzístico que nunca se furtou à luta, o saxofonista Archie Shepp e o baterista Max Roach. As imagens e os títulos das faixas estampados na capa original de Force, editado pelo selo francês Uniteledis (ligado ao braço cultural do Partido Socialista do país), dialogavam com seu tempo (o simbólico punho cerrado em riste e Mao Tsé-Tung flutuando no oceano mais ao fundo) e tinham uma mensagem forte e clara. 

Originalmente um vinil duplo, Force é dividido em dois temas: “Sweet Mao”, formado por três partes, “La Préparation”, “La Marche” e “Le Commencement”; e “Suid Afrika 76”, com título que faz referência ao massacre de estudantes/manifestantes em Soweto, na África do Sul. O disco sofreria uma intervenção drástica na versão japonesa, editada em 1977 pela Victor: na capa, sob um fundo preto, apenas o título e o nome dos músicos. 

E a mutilação continuou em outras versões que surgiram mais à frente, como a do selo Magic Music, que saiu na Europa em 1990 com o título insípido Max Roach & Archie Shepp e apenas uma foto genérica da dupla: desapareceu de vez a icônica capa. O que era um disco com um discurso sócio-político certeiro se tornou "apenas" um disco de free jazz, com uma capa a mais neutra possível. Se essas mudanças não são explicadas por problemas de direito autoral que desconhecemos, ilustra bem o espírito censório sempre à espreita.

 



 *HARD DRIVING JAZZ (1959)

The Cecil Taylor Quintet

O que aconteceu com este álbum é um ilustrativo exemplo de como os artistas podem ser desrespeitados pelas gravadoras. Registro realizado em outubro de 1958, foi editado no ano seguinte com o título Hard Driving Jazz e sob a assinatura do Cecil Taylor Quintet. O que era para ser um álbum histórico – o único encontro registrado entre Taylor e John Coltrane – acabou sendo uma gravação talvez abaixo do que prometia (algo devido à voz mais conservadora do trompetista Kenny Dorham), afora o  imbróglio autoral. 

Sabe-se lá os trâmites legais que permearam este processo, fato é que o disco foi reeditado em 1962 pela Blue Note com o título Coltrane Time e sob a assinatura de Trane. A capa, inclusive, traz apenas a foto do saxofonista, como se Taylor fosse um convidado no trabalho. Naquele ano, 62, a fama de Coltrane rumava para seu topo, enquanto Taylor adentrava um período de ostracismo, que o deixaria sem gravar pelos anos seguintes. Interessante notar que, na edição original, o nome de Trane nem aparecia, sendo trocado por um pseudônimo: provavelmente por questões contratuais, o disco trazia a seguinte descrição "Tenor Sax: Blue Train". Nos anos 80, uma edição japonesa do disco voltou a trazer a capa original; apesar de sair com o título derivado "Stereo Drive", dava de novo a autoria da obra ao Cecil Taylor Quintet.

  



 *MILES (1956)

The New Miles Davis Quintet

É mais difícil imaginar mudanças em discos que tenham não só uma identidade bastante definida, mas que sejam amplamente conhecidos e difundidos. Mas nem esses estão imunes a transformações do tipo. O primeiro registro do Miles Davis Quintet dos anos 50 sofreu na história algumas intervenções relativamente drásticas. Gravação realizada em novembro de 1955, e editada no ano seguinte, pelo então novo grupo de Miles que contava com John Coltrane, Paul Chambers, Red Garland e Philly Joe Jones, trazia em sua capa apenas o nome Miles sob um fundo verde (que se tornaria azul em novas edições, se tornando a versão definitiva) e umas árvores, sendo creditado ao The New Miles Davis Quintet. 

A Prestige perderia o contrato com Miles para a Columbia pouco tempo depois e não deixaria de tentar ganhar o que pudesse com os discos que gravou com o trompetista. Em 1963, quando Miles começava a dar forma a seu "segundo quinteto", a Prestige voltou a colocar o disco do "primeiro" quinteto no mercado, buscando uma forma de revender a mercadoria já bem conhecida pelos ouvintes. Assim, saiu uma nova versão de Miles agora com o título The Original Quintet (First Recording) e com uma capa em que vemos o trompetista no centro de um palco. 

A gravação é exatamente a mesma, não há nem um extra para justificar mudanças - e nem deve ter faltado quem comprou, desatentamente, o álbum de novo. Não satisfeita, a Prestige aproveitou a morte de Coltrane (1926-1967) para tentar faturar mais um com este disco. E em 1968 editou uma nova versão na Europa com o título Soulin', e sob a assinatura: The Miles Davis Quintet featuring John Coltrane (com o nome de Trane do mesmo tamanho que o de Miles e os dois na capa!). A partir dos anos 80, quando começaram a sair versões em CD, o disco retomou sua cara original.




*BRONCA BUENOS AIRES (1971)

Jorge López Ruiz

Clássico do jazz avant-garde argentino, Bronca Buenos Aires é um álbum que nasceu em meio a um tempo brutal. Concebido pelo baixista e compositor Jorge López Ruiz, foi gravado no início da década de 1970, enquanto a Argentina vivia, como tantos outros países latino-americanos, sob o julgo de uma ditadura militar. A capa do disco original, editado pelo selo argentino Trova em 1971, é icônica e fala por si só: sobre intensos tons de vermelho, vemos um homem arremessando (provavelmente) um coquetel molotov em meio à explosão de uma manifestação. A peça une poesia (spoken word), solos incendiários (Chivo Borraro toca seu sax como nunca), coro e big band em uma viagem hipnótica que se revela atualíssima nos tempos que vivemos. 

Em quatro movimentos, traz os subtítulos: "La Ciudad Vacia", "Relatos", "Amor Buenos Aires" e "Bronca Buenos Aires". E foi provavelmente olhando para esses títulos que o produtor do já finado selo Catalyst Records, de Los Angeles, que lançou uma versão nos EUA em 1977, teve a genial ideia: mudar o nome do álbum para Amor Buenos Aires (sai a bronca, entra o amor...) e alterar a capa. A agressiva e marcante imagem seria substituída por uma bunda bronzeada (na contracapa, está uma linda foto de um por do sol) e pronto: o disco de protesto agora parecia um álbum de smooth jazz (a impressão é que o pessoal do selo de Los Angeles nem ouviu o disco). Apesar de a música ter sido mantida nesta bizarra versão, raras vezes uma obra foi tão deturpada.  

 

 


--------

*quem assina:

Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com publicações como Entre Livros, Zumbido e Jazz.pt. Atualmente escreve sobre música e literatura para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live in Nuremberg”, de Perelman e Matthew Shipp (SMP Records)