Jocy de Oliveira: arte como resistência


Em sua 10ª edição, o Festival Novas Frequências terá a compositora Jocy de Oliveira como atração de abertura na próxima semana...

 



 Por Fabricio Vieira

  

As estatísticas comprovam que apenas 2% de mulheres compositoras figuram na programação mundial de música erudita. O que se pode esperar? Sou uma compositora –mulher num mundo masculino de compositores e, pior ainda, machista como o brasileiro…

 

Jocy de Oliveira me disse isso em uma entrevista em julho de 2018, quando ela foi convidada para fazer a apresentação de abertura da Flip (Festa Literária Internacional de Paraty). A artista falava mais especificamente sobre o mundo musical do qual faz parte, mas tal reflexão se aplicaria a diferentes gêneros musicais, o jazz, o rock, o free impro... Aos 84 anos de idade, Jocy de Oliveira é, sem dúvida, muito menos reconhecida do que deveria, dada a importância universal de sua obra, em uma ininterrupta história de criação artística de mais de seis décadas. Pianista que poderia ter se tornado uma das grandes de sua geração (tocou sob a regência de Stravinsky; teve peças dedicadas a ela e fez estreias mundiais de obras de Luciano Berio ("Sequenza IV") e John Cage ("ASLSP"); realizou uma referencial gravação do "Catalogue D'Oiseaux", de Olivier Messiaen nos anos 70 – reeditada em 2010 no exterior pelo selo Naxos), decidiu se focar no trabalho de compositora. 

E foi assim, como compositora, que sedimentou seu nome, criando obras para formações variadas nas últimas seis décadas, de grupos de câmara, instrumentos solistas e orquestra a voz, eletroacústica e instalações. Com o tempo, especialmente após adentrado os anos 1980, se focou cada vez mais na ópera (já compôs nove peças do tipo). Essas obras, de originalidade ímpar, transitam por possibilidades várias, aparecendo normalmente catalogadas como óperas multimídia, que combinam voz, instrumentação acústica e elementos eletrônicos, sendo que a concepção cênica/visual é tão relevante quanto a esfera sonora para o resultado final. O último trabalho seu, de 2017, é a ópera cinemática “Liquid Voices – A história de Mathilda Segalescu”, que teve como produto final um longa-metragem, finalizado em 2019. À época da entrevista com Jocy, ela falou também das dificuldades para concluir este projeto: “No momento, toda minha concentração e criatividade estão voltadas para um enorme desafio de criar e produzir minha mais recente obra – uma ópera cinemática, Liquid Voices - A história de Mathilda Segalescu. Trata-se de uma história ficcional situada num evento histórico da Segunda Guerra Mundial e que tem como foco a questão da imigração e de refugiados. Estamos na fase de pós-produção, editando o filme e ainda sem nenhum patrocínio ou apoio financeiro! Para isso, estou vendendo meu piano de cauda Steinway! Um piano histórico que me acompanha por quarenta anos e no qual artistas como Stravinsky chegaram a experimentar seu teclado. Fazer arte no Brasil é um ato de resistência!

Resistência. É assim que Jocy de Oliveira segue desenvolvendo sua obra. E foi muito animador ver seu nome figurando na edição deste ano do festival Novas Frequências. Não poderia ter sido mais acertado pela curadoria comandada por Chico Dub colocar nossa compositora maior para abrir um evento que sempre se propôs a apresentar a música experimental em suas mais diversas roupagens. “Neste ano comemorativo de 10 anos, o tema do festival é o X, tanto do número romano, quanto o X de indefinição, de incógnita, de oposição, de enfrentamento, de ruptura, de negação, de colaboração, de pluralidade, de feminino, de não binarismo”, diz o texto de apresentação do festival. 

Em sua 10ª edição, que acontece de forma virtual entre os dias 1 e 13 de dezembro, o Novas Frequências terá uma programação 100% brasileira, tendo uma expressiva presença feminina (o que nos leva de volta à fala inicial de Jocy). Serão mais de 40 atrações, que poderão ser acompanhadas pelo site do festival. Alguns destaques: o encontro (IN)Flexos, que reunirá Nanati Francischini (guitarra), Flora Holderbaum (violino/voz), Marina Mapurunga e Tânia Mello Neiva; a obra Estilhaço, de Isabel Nogueira; Ou Ver Dentro, vídeo sonoro de Renata Roman; e Trigrama, que reunirá o duo de trompete e bateria Radio Diaspora à voz de Paola Ribeiro.

 

Jocy no Novas Frequências


A participação de Jocy de Oliveira no Novas Frequências contemplará a apresentação de duas peças suas para voz e eletroacústica, La Loba e Naked Diva, que ganharão uma releitura imagética da artista visual e radiofônica Lilian Zaremba. La Loba e Naked Diva foram regravadas especialmente para o evento pela soprano Gabriela Geluda (a principal intérprete da obra de Jocy) e por Marcelo Carneiro (eletroacústica). Podemos dizer que as duas peças que serão apresentadas são apenas um aperitivo de um conjunto mais amplo; elas fazem parte, são extratos, de uma trilogia de óperas com enfoque no universo feminino, formada por “Inori à Prostituta Sagrada” (1993), “Illud Tempus” (94) e “As Malibrans” (99).  

La Loba é originalmente a quarta parte da ópera “Illud Tempus” (do latim tempo de agora e de sempre, algo que remete à “atemporalidade do contar, do sonhar, do inconsciente, de quando deus era mulher”, diz Jocy), escrita para atriz, soprano, clarinete, percussão e sintetizador, tendo cerca de 9 minutos de duração. La Loba sempre teve um espaço especial, tendo sido apresentada pela primeira vez sozinha, antes da estreia da ópera, no Espaço Cultural Sergio Porto (RJ), realizada em versão para voz e clarinete. Depois ganharia vida própria, como “pocket opera”, ampliada para 50 minutos e estreada em 2015, para voz e eletrônicos. A peça inicia com a apresentação da lenda de uma mulher, muito idosa, da qual pouco se sabe, mas sobre a qual há várias histórias; conhecida como La Loba, ela vaga sem rumo para coletar ossos de todas as criaturas do deserto, sendo a sua especialidade ossos de lobos. Centrada no inconsciente feminino, “Illud Tempus” se inspira, segundo a compositora, em contos de fadas e na leitura feita por psicólogas jungianas sobre eles. Originalmente, a peça tem em uma atriz sua protagonista, sendo que o texto é muito mais narrado/declamado que propriamente cantado.


Dizem que se alguém se perder no deserto ao entardecer

poderá ter a sorte de se deparar com La Loba.

Dizem que ela vem de mansinho lamber seu corpo

E mostrar algo – algo da alma.

Porque La Loba é também – La que sabe.

(trecho de La Loba)

 

Naked Diva é a última parte da ópera “As Malibrans” (1999), composta originalmente para soprano, tenor, violoncelo, oboé, clarinete-baixo, percussão, piano e eletrônicos. Naked Diva tem duração original de cerca de 16 minutos e faz um diálogo transgressor com a ópera clássica, trazendo ao palco a face obscura de uma diva e seu papel mítico no mundo operístico. Tendo como livres referências a lendária soprano francesa de origem espanhola Maria Malibran (1808-1836) e a personagem La Stilla, cantora do romance gótico “O Castelo de Cárpato” (1892), de Julio Verne, “As Malibrans” busca desnudar os conflitos, medos e fraquezas das cantoras líricas, o lado mais obscuro dessas artistas que em tempos passados ocupavam o espaço de divas pop. “Ao longo da história da ópera e também da vida real, essas divas com suas divinas vozes tornaram-se deusas no imaginário do público e foram muitas vezes levadas à insanidade”, diz Jocy (In: Diálogo com Cartas, 2014, Sesi Editora). Naked Diva/As Malibrans pode ser encarada como uma ópera pós-moderna, que revisita e desconstrói esse universo sonoro, utilizando também canto em italiano (a língua mater dessa música) e fragmentos de óperas/cantoras clássicas. 

 

Fica a expectativa de que uma apresentação em um evento com o perfil aberto do Novas Frequências ajude a levar a potente e desafiadora obra de Jocy de Oliveria a novos ouvintes. Quem sabe as pessoas que assistirem La Loba e Naked Diva no festival não sejam suficientemente seduzidas para querer desbravar não só as obras das quais essas peças fazem parte, mas o universo único da compositora...

 

*JOCY DE OLIVEIRA*

Quando: 1 de dezembro (terça-feira)

Horário: 20h

Onde: Festival Novas Frequências (novasfrequencias.com)

 

 

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*quem assina:

Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com publicações como Entre Livros, Zumbido e Jazz.pt. Atualmente escreve sobre música e literatura para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live in Nuremberg”, de Perelman e Matthew Shipp (SMP Records)