CRÍTICAs Quase duas décadas após ser lançado, She Knows..., segundo álbum do The Thing, ganha nova reedição...
Por Fabricio Vieira
Mats Gustafsson, saxofonista sueco nascido em Umea, em 1964, iniciou o ano de 2000 cheio de novos projetos. Um deles era montar um selo; nasceria então o Crazy Wisdom, que criou com dois amigos, o produtor Christian Falk e o crítico musical Conny Lindström. Outro era organizar um trio para gravar peças de Don Cherry (1936-1995). Para isso, convidou dois jovens músicos noruegueses que havia conhecido há pouco tempo, o baterista Paal Nilssen-Love, então com 25 anos de idade, e o baixista Ingebrigt Haker Flaten, que tinha 28 anos. Nascia o The Thing, que se revelaria um dos trios centrais do universo free jazzístico no século XXI. O The Thing (que a princípio deveria se chamar “Trans-Love Airways”, nome de outra peça de Cherry) gravou muitos discos nas duas décadas seguintes, com parcerias que se tornaram marcantes, como a com Neneh Cherry (“The Cherry Thing”, 2012), até suspender suas atividades “por tempo indeterminado” em 2019.
Os dois primeiros álbuns do The Thing – o disco de estreia homônimo e o seguinte She Knows... – apareceram exatamente pelo Crazy Wisdom (o selo não tardaria a encerrar suas atividades), em edições limitadas. Ambos seriam depois relançados juntos no box “Now and Forever” (Smalltown Superjazz, 2007), junto com material ao vivo. Quem não adquiriu nenhuma dessas edições tem agora nova oportunidade: o selo ezz-thetics (Hat Hut) coloca novamente no mercado She Knows... Gravado exatamente um ano depois do primeiro registro, em 21 e 22 de fevereiro de 2001, no Nord Studios, em Estocolmo, She Knows... é fundamental no estabelecimento de características que marcariam a estética do The Thing. Curiosamente, este é o único disco formado apenas por releituras, de temas do free jazz clássico e underground e, pela primeira vez, do rock alternativo. Soma-se a isso a participação de um convidado, no caso o lendário Joe McPhee (durante sua trajetória, o The Thing gravaria, sempre em formato quarteto, com Ken Vandermark, Thurston Moore, James Blood Ulmer, Otomo Yoshihide, Jim O’Rourke e Barry Guy). Era impossível quando gravaram este disco imaginarem o quanto o trio se tornaria importante tanto para eles quanto para a cena free. A banda tocou em dezenas de países, fazendo centenas de shows (uma conta feita por eles em 2013 apontava que já tinham mais de 600 apresentações no currículo do trio), tendo inclusive visitado o Brasil em junho de 2013, acompanhada exatamente de Joe McPhee, quando fizeram uma mini-turnê que passou pelas cidades de São Paulo, Ribeirão Preto, Santos e Araraquara.
Produzido por Gustafsson e Christian Falk, She Knows... apresenta sete temas, em cerca de 56 minutos de música. A instrumentação traz Gustafsson nos saxes tenor e barítono; Joe McPhee em pocket trumpet e sax tenor; Ingebrigt Haker Flaten no baixo; e Paal Nilssen-Love na bateria. O disco começa com arrebatora releitura de “To Bring You My Love”, peça da cantora e compositora britânica PJ Harvey, que faz parte de seu álbum homônimo, de 1995. A primeira coisa que ouvimos é o pocket trumpet de McPhee, criando linhas sufocantes por mais de um minuto, uma introdução sob a qual vai despontando, bem ao fundo, o sax barítono, cantarolando o tema de “To Bring You My Love” (arrepiante para quem conhecia a canção da PJ Harvey ouvir pela primeira vez o tema sendo executado pelo sax), até assumir o primeiro plano e mergulhar em um solo que vai se revelando cada vez mais denso. No final, o tema principal passa a ser tocado pelo baixo (como na peça original). Daquelas faixas que, por si só, tornam o álbum obrigatório.
O disco muda bastante de tom no tema seguinte, que é a própria "The Thing", faixa de Cherry registrada no álbum “Where is Brooklyn?” (69). Aqui o quarteto está mais alinhado a uma sonoridade free jazzística clássica, com destaque para os duetos/duelos de sax tenor e trompete e o explosivo solo final de Gustafsson. Nova virada sonora vem em seguida, com "Baby Talk", tema do guitarrista James Blood Ulmer da época de seu grupo Music Revelation Ensemble, que fez grande free funk na década de 1980. Iniciando com uma entrada marcada por baixo com efeitos, que adiciona um swing muito particular, um sabor bastante diferente ao grupo (tom que marcaria o encontro do The Thing com Ulmer uma década e meia depois), logo surge a percussão bastante fraturada, que é cortada pelo tema cantado repetidamente pelos dois sopros, já se abrindo logo a rascantes intromissões do trompete e do sax. Mantendo a mesma vibração, "Baby Talk" é seguida por "Kathelin Gray", peça de Ornette Coleman da mesma década, que apareceu no disco "Song X" (86). Por algum motivo (contratual? direito autoral?) este tema foi retirado da reedição de She Knows... no box Now and Forever; no bandcamp do The Thing, quando subiram este disco, também não constava "Kathelin Gray". Bom que agora a peça volta nesta reedição. O clima do disco tem outra ruptura no quinto tema, "Going Home". Canção tradicional que Albert Ayler gostava de tocar no início de sua carreira, "Going Home", com o tenor em destaque, traz certa melancolia e dá uma esfriada no disco. O álbum segue com "For Real", tema do saxofonista Frank Lowe (1943-2003). A faixa começa de forma bastante arrastada, até esquentar com um duelo dos dois saxes, do qual se abrem solos, a partir dos três minutos, que, movidos pela percussão intensíssima de Nilssen-Love, compõem alguns dos momentos mais energy do álbum. O disco fecha com "Old Eyes", tema clássico de McPhee do fim dos anos 70 em que temos novamente os dois saxes tenor em ação, traçando linhas que se chocam e se complementam, em um diálogo muito intenso que atravessa praticamente todos os cerca de oito minutos da peça.
Quando foi editado pela primeira vez, em setembro de 2001, She Knows... não recebeu muitas críticas (duas décadas atrás a cobertura do universo free jazzístico era menos viva); houve, por exemplo, a de Mark Corrotto na All About Jazz, em fevereiro de 2002, elogiosa sem dar nota ao disco, que termina com "This is a solid hour of music making, and highly recommended". No Discogs, a média das notas dadas pelos leitores é de 4,7/5; no Rate Your Music, a nota ficou em 3,69, o que o colocaria no Top 5 da banda. Sob vários aspectos, She Knows... é um forte álbum, que marca a solidificação do projeto The Thing, e seu retorno ao mercado merece ser comemorado.
She Knows... ****(*)
The Thing
ezz-thetics
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*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com publicações como Entre Livros, Zumbido e Jazz.pt. Atualmente escreve sobre música e literatura para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live in Nuremberg”, de Perelman e Matthew Shipp (SMP Records)