PLAY IT AGAIN (solos)...


LANÇAMENTOs
  Novos álbuns com trabalhos solistas para diferentes instrumentos. Experiências variadas, possibilidades múltiplas. Ouça, divulgue, compre os discos...

 



Por Fabricio Vieira

 

 

Slow Pieces for Aki  ****(*)

Alexander von Schlippenbach

Intakt Records

 

Em atividade desde a década de 1960, o pianista alemão Alexander von Schlippenbach, 82 anos, é um dos pilares da free improvisation europeia. Comandando alguns dos projetos seminais da free music, a destacar a Globe Unity Orchestra e seu Trio (ao lado de Evan Parker e Paul Lovens), Schlippenbach é o que se pode chamar sem exageros de figura lendária. Já esteve duas vezes no Brasil, com seu trio em 1997 e com a GUO em 2017. Sua discografia, com dezenas de registros em todos os formatos, representa um ponto essencial da música criativa do último meio século. Essa história ganha um novo capítulo agora, com a edição deste Slow Pieces for Aki, um belíssimo e íntimo disco de piano solo. Captado em dois dias de novembro de 2019 no Radio Studio 1, em Zurique, o álbum é dedicado à pianista japonesa Aki Takase (a caligrafia na capa foi feita por ela), com quem é casado. São breves 21 peças, que vão de 1 a 4 minutos, nas quais Schlippenbach apresenta uma face rarefeita de sua voz, com os temas se desenvolvendo de forma centrada e sem arroubos, pequenas miniaturas de ideias e impressões que pedem que ouçamos cada nota, sem pressa e com o foco apurado. Alguns temas partem de ideias preconcebidas, em meio a outros que são propriamente improvisações livres (estes aparecem sob o título "Improvisation", I, II, III...). De qualquer forma, a coerência e a coesão da proposta nunca são abaladas, sendo Slow Pieces for Aki um conjunto uno feito para ser ouvido como um painel constituído de fragmentos que apenas revelam seu todo quando colocados para atuarem juntos, formando um painel lírico e de alta expressividade.    

 

 

Ossos  ****

Valentin Ceccaldi

Cipsela Records 

Em pouco mais de uma década de carreira, o violoncelista francês Valentin Ceccaldi tem estado envolvido com uma série de interessantes projetos (“Chamber 4”, “Deux Maisons”, “Théo Ceccaldi Freaks”) que o colocam entre as vozes a serem ouvidas com atenção em sua geração. Após tocar nas mais diferentes formações, agora ele apresenta um potente disco solista, mostrando a técnica complexa que marca sua linguagem. O registro, na verdade, foi realizado há algum tempo, em maio de 2017, no Centro Norton de Matos, em Coimbra. Mas só agora vem à luz.  Não sei a formação de Ceccaldi, se estudou violoncelo clássico, mas, de qualquer forma, sua opção estética aqui o mantém distante de tais vias, de uma linhagem de abordagem tradicional e virtuosa do instrumento. O que ele se propõe é explorar a sonoridade do violoncelo em seu limite, por meio de técnicas estendidas que podem tanto resultar em passagens detalhistas, onde nos esforçamos para ouvir os sons propostos, quanto em picos explosivos em que o arco parece querer romper as cordas, em ataques brutais (neste sentido, destaque para a linha de abertura de "Marteau"). São apenas três peças, em um total de cerca de 35 minutos, mas de muitas ideias concentradas. Nas duas primeiras faixas, as mais extensas, vemos esse processo de tensão-relaxamento em seu pleno desenvolvimento. Já a breve peça final, "Étrier", tem uma proposta um tanto quanto diversa, com ideias mais coesas e diretas, que criam uma inquietante metálica voz que rasga o ar e nos conduz, sem que percebamos, para fora dessa particular experiência.    

 

 

Chinese Medicine   ***(*)

Lao Dan

Dusty Ballz

 

O músico chinês Lao Dan aos poucos vai se tornando aquele tipo de artista que seguimos com curiosidade, que queremos ver onde seus passos levarão sua arte. Seu nome ganhou atenção no ocidente após gravar um potente registro com Paul Flaherty em 2018 (“Live at Willimantic Records”). Nascido na distante cidade de Dandong, que faz fronteira com a Coreia do Norte, Lao Dan primeiro se especializou na flauta de bambu para depois, em 2013, começar a tocar saxofone e adentrar de vez o cenário da free improvisation. E é com este instrumento que o vemos neste registro solista. Chinese Medicine traz Lao em três peças registradas em junho de 2019, nas quais toca sax tenor e o zheng (ou Chinese zither, um instrumento de cordas). Aqui uma curiosidade: há momentos em que ele toca simultaneamente os dois instrumentos, usando os pés para executar o zheng. O tenor de Lao é bem robusto, de sonoridade encorpada, como fica bem pontuado em “Goose-no-eat Herb”; ele apresenta passagens mais rascantes em “Horny Goat Weed”, em contraste e alternância com o som das cordas, sendo esta a faixa em que melhor podemos apreciar as variações de sua música. O álbum foi editado em K7 e digital e é um interessante capítulo para acompanharmos a evolução da sonoridade e das propostas de Lao Dan.

 

 

Variaciones Aeróbicas  ****

Pablo Ledesma

Numeral

 

O argentino Pablo Ledesma é uma das importantes vozes do free jazz de seu país. Em atividade desde meados dos anos 80, Ledesma tem uma relativamente discreta, mas muito interessante, discografia, à qual o acesso poderia ser melhor (às vezes se revela muito difícil conseguir ouvir um ou outro trabalho seu). Desde a década de 90 tem desenvolvido parcerias internacionais, como as com o também saxofonista britânico George Haslam e com o pianista espanhol Agustí Fernandéz. Entre suas gravações, me perece que este Variaciones Aeróbicas é o primeiro título solista. Registro realizado em 2011 no Estudio del Conservatorio Gilardo Gilardi, em La Plata, ficou engavetado até o momento e mostra Ledesma sozinho com o sax soprano. São nove temas, onde o foco está na improvisação livre, trazendo o mesmo título do álbum - exceção à solitária composição "La Renuncia". “Esta experiencia fue resultado de una impresión que de alguna manera me había dejado hacía ya varios años la música de Evan Parker. Todo lo que él hizo con el saxofón desde la década del 70, y John Butcher tiempo después, en la línea de saxofonistas ingleses", diz Ledesma. E essa herança/referência do free britânico fica bastante clara quando vão sendo ouvidas as peças. Um ótimo registro que revela o lado mais improvisador de Ledesma e que vai interessar especialmente quem acompanha sua obra.

 

 

Exolinger  *****

Sarah Bernstein

577 Records

 

A violinista de NY Sarah Bernstein deve passar a ser mais conhecida após ter vencido neste ano o Critics Pool da DownBeat na categoria “Rising Star - Violin”. Mas ela vem tocando e gravando desde o início do século. Quem ouviu trabalhos como “Trillium E/J” e “Creative Music Orchestra (NYC) 2011”, do Anthony Braxton, já a viu em ação. Como líder/colíder, tem lançado discos mais ativamente na última década, a destacar os duos com o baterista Kid Millions. Nesta nova gravação solista, Sarah Bernstein apresenta oito temas seus, nos quais toca violino e explora a voz (com poesia sua). Captado “live in studio” em janeiro passado no Sear Sound, NYC, Exolinger é um trabalho no qual a espacialidade é fundamental, com a artista expandindo o alcance do que seria um trabalho para um instrumento solista utilizando efeitos (discretos, mas potentes, como os ecos e pedais que fazem “Recolinations” exibir crescente peso, como se diferentes instrumentos de cordas dialogassem), junto a palavras de forma por vezes desconcertante. A cortante abertura de “Ghosts Become Crowds” é arrepiante, com as cordas rasgando o espaço e a voz surgindo ao fundo, como um lamento desesperado, em alguns dos melhores momentos do álbum. Em “The Plot”, a mais extensa do conjunto, com seus 14 minutos, a voz assume o protagonismo, com o violino criando as linhas por sobre as quais as palavras vão sendo adicionadas, até alcançarmos a explosão de ruidosidades do final. O disco pode ser ouvido como uma trilha ininterrupta, uma peça única que nos leva por caminhos variados (não sei se há planos de apresentá-lo assim no palco, mas faria muito sentido), um labirinto de sensações e vibrações inquietantes. Exolinger vai ser lançado oficialmente, em CD e digital, no dia 6 de novembro. Um dos álbuns imperdíveis da free music editados neste ano.

 

 

Über die Linie  ****(*)

Benedict Klöckner

PLAIST

Peças para violoncelo solo costumam ter um apelo bastante particular. O instrumento tem sido investigado neste formato há pelo menos três séculos, tendo nas seis suítes escritas por J.S. Bach (1685-1750) uma pedra angular. No século XX, não foram poucos os compositores que escreveram para violoncelo solista (Scelsi, Britten, Penderecki, Cage...), ampliando cada vez mais o vocabulário para o instrumento. É nesse contexto que surge este novo álbum do violoncelista alemão Benedict Klöckner. Focado na peça Über die Linie, escrita pelo compositor contemporâneo também alemão Wolfgang Rihm, o álbum é relativamente breve, com 35 minutos. A peça de Rihm, que se desenvolve de forma direta, sem quebras em movimentos, é aqui gravada pela primeira vez. Para a gravação, que ocorreu no dia 25 de setembro de 2019, foi feita a escolha de um lugar muito singular: um bunker da época da Segunda Guerra, localizado abaixo do UFO Studios, em Berlim. E o espaço não é mera curiosidade. A acústica do local se revela surpreendente no registro, criando ecos e reverberações naturais que fazem com que em diferentes passagens o violoncelo soe como se estivesse duplicado, com uma interação entre espaço-instrumento que não se daria em outro lugar. Über die Linie é uma obra de bastante dramaticidade em sua aparente aridez, trazendo certa desolação meditativa a quem se propõe a atravessar sua pouco mais de meia hora de sons ininterruptos. Há um denso lirismo sombreando esta música, que ganha contornos por vezes sufocantes, especialmente quando pensamos no local onde foi registrada. “Über die Linie is one of the most demanding cello pieces that I know. When I asked the extraordinary cellist Heinrich Schiff for advice on the piece, he told me that he considered the work unplayable. That pushed me even more to dedicate my time to Über die Linie”, diz Klöckner. O álbum saiu em edição limitada pelo PLAIST, selo do baterista Christian Lillinger, em vinil (300 cópias) e CD.  

 

  

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*quem assina:

Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com publicações como Entre Livros, Zumbido e Jazz.pt. Atualmente escreve sobre música e literatura para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live in Nuremberg”, de Perelman e Matthew Shipp (SMP Records)