Sons nas Redondezas



LANÇAMENTOs  Novos álbuns de artistas de diferentes cantos do Brasil. Experiências variadas, possibilidades múltiplas. Ouça, divulgue, compre os discos...

 

 



Por Fabricio Vieira

 

Disputa e Guerra no Terreiro de Roça de Casa de Avó

Cyrino/ Iwao/ Koole/ Scarassatti

open ear music

Registrado em outubro de 2019 em Belo Horizonte, na Kasa Invisível, Disputa e Guerra no Terreiro de Roça de Casa de Avó reúne um quarteto com uma formação bastante particular: Marina Cyrino, nas flautas amplificadas; Matthias Koole, na guitarra elétrica; Henrique Iwao, eletrônicos e objetos; e Marco Scarassatti, pássaro-cocho (uma viola de cocho modificada, criação do próprio artista). Editado pelo selo britânico oem (open ear music), podemos dizer que o álbum é ligado à cena de Minas Gerais (não sei se todos os músicos são naturais do Estado, mas parecem estar conectados musicalmente e/ou profissionalmente a MG). O quarteto apresenta duas longas improvisações, "Disputa" (18:33 minutos) e "Guerra" (19:31). Os temas se desenvolvem de forma detalhista e cheia de pontuações onde as ruidosidades provenientes das quatro fontes-instrumentações parecem – mesmo que estejamos, segundo o título, em um ambiente de disputa e guerra – necessitar sempre do apoio do outro: as vozes que se complementam se tornam a estrutura do trabalho, não havendo aqui espaço para solos e brilhos individuais. É das quatro vozes que se monta o sentido do álbum, nesse jogo improvisativo que, se nasce livre, é antes de mais nada coletivo.



Live in Seattle

Projeto B

Independente

Com duas décadas de carreira, o grupo paulistano Projeto B edita só agora um disco ao vivo gravado há alguns anos, em uma passagem pelos Estados Unidos, em março de 2012. O grupo, que trabalha com elementos jazzísticos, improvisação e instrumental brasileiro, participou de uma residência artística de uma semana em Seattle, no Cornish College of the Arts, convidados por Jovino Santos Neto, professor na instituição. O concerto editado vem dessa residência e mostra o Projeto B em versão sexteto, com Yvo Ursini (guitarra), Leonardo Muniz Corrêa (saxes alto e tenor, clarinete), Amilcar Rodrigues (trompete), Henrique Alves (baixo), Mauricio Caetano(bateria) e Vicente Falek (piano). O grupo, que havia lançado um tempo  antes deste concerto um álbum dedicado a Heitor Villa-Lobos ("A Viagem de Villa-Lobos), apresenta aqui obras do compositor ("Prole do Bebê no.1", "Chôros 5") entre peças autorais ("Labirinto", "339") e uma curiosa releitura de "A Sagração da Primavera" (Stravinsky).

 

 

Vísceras/Contradanças

Thelmo Cristovam

sirr-ecords

O músico de Brasília radicado em Pernambuco Thelmo Cristovam, muito lembrado pelo projeto Hrönir, tem sido uma ativa figura do cenário experimental e free impro desde o começo dos anos 2000. Com algumas dezenas de títulos editados nesse tempo, por selos nacionais e estrangeiros, Cristovam é especialista no saxofone C-melody, apesar de também explorar outras vias expressivas, como trompete e eletrônicos. Neste novo título, editado pelo selo português sirr-ecords, o instrumentista está focado no saxofone C-melody, em um disco solista onde mostra a amplitude de sua ideias e técnicas. Cristovam já editou alguns outros álbuns solistas, como "ΑΒΡΑΣΑΞ", de 2005, mas sem dúvida a maturidade de seu discurso hoje coloca este Vísceras/Contradanças em outro patamar. São sete temas, de durações variadas (50 segundos a 14 minutos), nos quais o músico explora técnicas estendidas e possibilidades expressivas diversas – ou, como diz Marco Scarassatti nas liner notes, "um mergulho nas entranhas do saxofone" –, criando campos climáticos de atmosferas por vezes sufocantes. É o tipo de proposta que o ideal é poder ver ao vivo, com cada gesto do instrumentista se somando aos sons produzidos por ele.

 


Lobo Temporal

Thelmo Cristovam/ Renê Freire

Antena.art.br

Neste outro lançamento, Thelmo Cristovam se une ao pianista pernambucano Renê Freire. Em duo, apesar de seguir tocando apenas saxofone C-melody, vemos possibilidades bastante distintas e complementares às propostas de Cristovam em "Vísceras/Contradanças". Lobo Temporal é um duo de sax e piano muito intenso e inventivo, herdeiro de tantos potentes duos nesse formato que têm marcado o free jazz e a improvisação livre nas últimas cinco décadas. Captado ao vivo no Lesbian Bar, em Recife, no dia 2 de novembro de 2019, o álbum traz cinco temas, peças improvisadas que vão de um a doze minutos, nas quais piano e sax adentram variedades diversas de diálogo, indo de trechos pontilhistas a grandes camadas com maior energia destilada (como em "Insânia"). No mundo do free impro, muitas das parcerias são momentâneas, de ocasião, com os músicos se encontrando no palco ou no estúdio apenas em um momento específico. Não sei se é o caso deste duo, mas esperamos que novos títulos surjam; a união das vozes de Cristovam e Feire resultou em uma química realmente potente.

 

 

Tabi Ni Yande

Al Sand/ André de Castro

ASREC

O Rio Grande do Sul tem sido um agitado pólo para o free impro e o experimental na última década, com discos lançados, projetos novos sempre a surgir e selos distribuindo isso tudo para quem mora em outras regiões (SP, no nosso caso). De Porto Alegre chega este novo registro do duo formado por Al Sand (guitarra e percussão) e André de Castro (sopros). Al Sand, responsável pelo selo ASREC, atua no experimental há vários anos, em várias frentes, com muita coisa interessante registrada (seu selo já alcançou os 90 títulos editados desde a estreia em 2015). O duo ao lado de Castro já havia rendido outros trabalhos, como "Improvável" (2017). E é bom vê-los em ação buscando novas possibilidades. Este registro traz o duo em quatro temas, no que poderia ser uma introdução, duas faixas de desenvolvimento mais extenso e uma conclusão. A arte da capa – "Rosto de um Velho Mestre", de Katsushika Hokusai (1760-1849) – não é mera ilustração, sendo que certas linhas orientais podem ser sentidas no decorrer do álbum, como sinaliza logo no primeiro tema a flauta tocada por Castro, remetendo a um diálogo entre a antiguidade e a contemporaneidade. Interessante registro que mostra possibilidades diferentes para o free impro.

  


Todos os Santos Estão Surdos

Rômulo Alexis/ Uru Pereira/ Heitor Dantas

Brava/Menasnota

O trompetista paulistano Rômulo Alexis (Radio Diaspora) foi a Salvador em fevereiro deste ano e por lá se reuniu aos músicos locais Heitor Dantas (guitarra preparada) e Uru Pereira (fagote). Do encontro, saiu essa sessão de improvisação livre agora editada. Todos os Santos Estão Surdos traz quatro temas, em um total de cerca de 50 minutos. Um dos nomes centrais do free impro brasileiro contemporâneo, Alexis sabe quando incendiar ou inebriar com seu sopro, sendo sempre empolgante ouvi-lo em um novo projeto, adentrando novos rumos. Já a voz de Pereira, até pelos poucos fagotistas presentes no universo do free impro, se mostra especialmente chamativa no álbum. Com ampla experiência em diversos gêneros, do popular ao free, sendo ainda membro da Orquestra Sinfônica de Sergipe, Pereira é fundamental para o desenvolvimento das particulares atmosferas deste registro. O álbum abre com a faixa-título, em um ambiente que vai aclimatando os ouvintes, com o fagote destilando uma linha quebradiça entrecortada pelo profundo trompete de Alexis e toques sutis à guitarra. O sufocante segundo tema, "Uru é um Palíndromo", talvez seja o melhor, mais intenso produto do trio; seus cinco primeiros minutos são cortantes, com o trompete rasgando o denso espaço preenchido gradualmente por guitarra e fagote. Fica a expectativa de este não ter sido apenas um encontro pontual.


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*quem assina:

Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com publicações como Entre Livros, Zumbido e Jazz.pt. Atualmente escreve sobre música e literatura para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live in Nuremberg”, de Perelman e Matthew Shipp (SMP Records)