Omaggio a Gary Peacock (1935-2020)






R.I.P. O grande baixista norte-americano Gary Peacock, que protagonizou alguns dos momentos mais expressivos do jazz mais inventivo, estava com 85 anos...





Por Fabricio Vieira


Em um ano de tantas mortes no universo jazzístico, agora chegou a vez de lamentarmos a passagem de Gary Peacock. O baixista nascido em 12 de maio de 1935 em Burley, Idaho (EUA), teve uma história longa e altamente produtiva no mundo do jazz mais criativo. Interessante que ele, um dos grandes nomes do baixo acústico de sua geração, tenha iniciado sua vida como músico ao piano (só mudou para o baixo de vez em 1956). Depois de tocar com diversos músicos de diferentes perspectivas jazzísticas – a destacar suas atuações ao lado do saxofonista Bud Shank no fim dos anos 50 –, sua vida mudou quando desembarcou em Nova York em 1962, ao lado de Paul Bley, com quem vinha tocando há algum tempo. A busca por uma maior liberdade sonora o levou a tocar com Gil Evans e Prince Lasha (participa do álbum "The Cry"). Não tardaria a se aproximar de Albert Ayler, com quem gravaria o clássico "Spiritual Unity" em julho de 1964. Essa parceria com o saxofonista renderia ainda grandes outros álbuns, como "Spirits Rejoice", "Ghosts" e a participação no marco underground "New York Eye and Ear Control" (ESP-Disk, 1966), trilha sonora para filme experimental de mesmo nome que contaria com um time incrível com Ayler, Don Cherry, Roswell Rudd, John Tchicai, Sunny Murray e Peacock.

Após essa explosão free, Peacock buscou novos ares, o que acabou o levando ao Japão em 1969, onde passou três anos sabáticos, estudando budismo e encontrando novos rumos para sua sonoridade. É nesse período que começa a desenvolver sua música mais pessoal, registrada nas décadas seguintes em diversos discos tendo ele como líder. "Voices", registrado em abril de 1971 em Tóquio, é um marco no início dessa nova etapa, mergulhando em um jazz que, se se mantém altamente livre, também busca rumos com certa perspectiva meditativa, espiritual, que emana de seu dedilhado e preenche suas composições e improvisos. A década de 1980 seria marcada por uma longa e produtiva parceria com Keith Jarrett, em lendário trio que contava ainda com o baterista Jack DeJohnette, e que deixou muitos registros fundamentais desde então. Peacock também comandava na última década seu próprio trio, ao lado de Marc Copland (piano) e Joey Baron (bateria), com quem esteve no Brasil em agosto de 2015 durante o festival Jazz na Fábrica, em dois marcantes concertos no Teatro do Sesc Pompeia (SP). Antes disso, Peacock esteve no país em 1993, durante o Heineken Concerts. Com a morte de Gary Peacock, o baixo mais inventivo perde uma de suas vozes pioneiras.



*GARY PEACOCK em 5 discos*



Voices (1971)
CBS 


Gary Peacock estava em seu sabático no Japão quando gravou este belíssimo álbum ao lado de músicos locais. A sessão ocorreu no dia 5 de abril de 1971 no Mohri Studio, em Tóquio. Foram gravados seis temas do baixista, com um quarteto que contava com Masabumi Kikuchi (piano), Hiroshi Muramaki (bateria) e o lendário Masahiko Togashi na percussão. Um disco profundo, tocante e com solos de baixo arrepiantes. O disco foi oficialmente lançado (e depois reeditado em CD) apenas no Japão.   




December Poems (1979)
ECM 


Este é um álbum solista gravado em dezembro de 1977 no Talent Studio, em Oslo. Editado pelo selo ECM, com quem Gary Peacock trabalhou em diferentes oportunidades até seus últimos registros, traz seis novos temas do baixista. Em duas faixas, o saxofonista Jan Garbarek se junta a ele, mas sem quebrar o clima intimista que marca o registro. Melancólico, reflexivo, lírico, o baixo solitário de Peacock ecoa na mente muito depois de o disco ter parado de tocar.





Voice From The Past - Paradigm (1982)
ECM


Registrado no mesmo Talent Studio, em Oslo, onde foi feito December Poems, este disco foi captado em agosto de 1981. O quarteto trazia ao lado de Peacock o sax de Jan Garbarek, o trompete de Tomasz Stanko e Jack DeJohnette  na bateria. Com mais seis temas do baixista (parecia este um número mágico para ele), o álbum mostra um grupo afiado, em que os sopros interagem de forma profunda com baixo e bateria.





Anette (1992)
hatOLOGY 


Gary Peacock se une aqui a seu velho amigo Paul Bley (piano) e ao trompetista austríaco Franz Koglmann em registro realizado em abril de 1992 na Radio Bremen, Alemanha. O título é uma homenagem à pianista e cantora Annette Peacock, com quem o baixista foi casado nos anos 60. O disco é focado em composições de Annette, com exceção da faixa "Annette", criada pelo trio. Um registro de profunda beleza ímpar.    





Now This (2015)
ECM 

O último importante projeto comandado por Gary Peacock foi seu trio ao lado de  Marc Copland (piano) e Joey Baron (bateria), com quem esteve em São Paulo em 2015. Este disco de estreia do grupo, captado em julho de 2014 no Rainbow Studio, em Oslo, mostra o trio em 12 temas (a maioria do baixista), em um registro intimista e de marcante sonoridade – que tivemos o privilégio de degustar ao vivo na cidade. Esse título foi seguido pelo também excelente "Tangents", de 2017.

   



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*quem assina:

Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com publicações como Entre Livros, Zumbido e Jazz.pt. Atualmente escreve sobre música e literatura para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live in Nuremberg”, de Perelman e Matthew Shipp (SMP Records)