R.I.P. O grande baixista norte-americano Gary Peacock, que
protagonizou alguns dos momentos mais expressivos do jazz mais inventivo, estava com 85 anos...
Por Fabricio Vieira
Em um ano de tantas mortes no universo jazzístico, agora chegou a vez
de lamentarmos a passagem de Gary Peacock. O baixista nascido em 12 de maio de 1935 em Burley, Idaho
(EUA), teve uma história longa e altamente produtiva no mundo do jazz mais
criativo. Interessante que ele, um dos grandes nomes do baixo acústico de sua
geração, tenha iniciado sua vida como músico ao piano (só mudou para o baixo de
vez em 1956). Depois de tocar com diversos músicos de diferentes perspectivas
jazzísticas – a destacar suas atuações ao lado do saxofonista Bud Shank no fim
dos anos 50 –, sua vida mudou quando desembarcou em Nova York em 1962, ao lado
de Paul Bley, com quem vinha tocando há algum tempo. A busca por uma maior
liberdade sonora o levou a tocar com Gil Evans e Prince Lasha (participa do
álbum "The Cry"). Não tardaria a se aproximar de Albert Ayler, com
quem gravaria o clássico "Spiritual Unity" em julho de 1964. Essa
parceria com o saxofonista renderia ainda grandes outros álbuns, como "Spirits
Rejoice", "Ghosts" e a participação no marco underground
"New York Eye and Ear Control" (ESP-Disk, 1966), trilha sonora para filme
experimental de mesmo nome que contaria com um time incrível com Ayler, Don
Cherry, Roswell Rudd, John Tchicai, Sunny Murray e Peacock.
Após essa explosão free, Peacock buscou novos ares, o que acabou o
levando ao Japão em 1969, onde passou três anos sabáticos, estudando budismo e
encontrando novos rumos para sua sonoridade. É nesse período que começa
a desenvolver sua música mais pessoal, registrada nas décadas seguintes em diversos
discos tendo ele como líder. "Voices", registrado em abril de 1971 em
Tóquio, é um marco no início dessa nova etapa, mergulhando em um jazz que, se
se mantém altamente livre, também busca rumos com certa perspectiva meditativa,
espiritual, que emana de seu dedilhado e preenche suas composições e improvisos. A década de 1980 seria marcada por uma
longa e produtiva parceria com Keith Jarrett, em lendário trio que contava ainda
com o baterista Jack DeJohnette, e que deixou muitos registros fundamentais
desde então. Peacock também comandava na última década seu próprio trio, ao
lado de Marc Copland (piano) e Joey Baron (bateria), com quem esteve no Brasil
em agosto de 2015 durante o festival Jazz na Fábrica, em dois marcantes
concertos no Teatro do Sesc Pompeia (SP). Antes disso, Peacock esteve no país em
1993, durante o Heineken Concerts. Com a morte de Gary Peacock, o baixo mais
inventivo perde uma de suas vozes pioneiras.
*GARY PEACOCK em 5 discos*
Voices (1971)
CBS
Gary Peacock estava em seu sabático no Japão quando gravou este
belíssimo álbum ao lado de músicos locais. A sessão ocorreu no dia 5 de abril de
1971 no Mohri Studio, em Tóquio. Foram gravados seis temas do baixista, com um
quarteto que contava com Masabumi Kikuchi (piano), Hiroshi Muramaki (bateria) e
o lendário Masahiko Togashi na percussão. Um disco profundo, tocante e com
solos de baixo arrepiantes. O disco foi oficialmente lançado (e depois reeditado em
CD) apenas no Japão.
December Poems (1979)
ECM
Este é um álbum solista gravado em dezembro de 1977 no Talent Studio,
em Oslo. Editado pelo selo ECM, com quem Gary Peacock trabalhou em diferentes
oportunidades até seus últimos registros, traz seis novos temas do baixista. Em
duas faixas, o saxofonista Jan Garbarek se junta a ele, mas sem quebrar o clima
intimista que marca o registro. Melancólico, reflexivo, lírico, o baixo
solitário de Peacock ecoa na mente muito depois de o disco ter parado de tocar.
Voice From The Past - Paradigm (1982)
ECM
Registrado no mesmo Talent Studio, em Oslo, onde foi feito December
Poems, este disco foi captado em agosto de 1981. O quarteto trazia ao lado de
Peacock o sax de Jan Garbarek, o trompete de Tomasz Stanko e Jack DeJohnette na bateria. Com mais seis temas do baixista
(parecia este um número mágico para ele), o álbum mostra um grupo afiado, em
que os sopros interagem de forma profunda com baixo e bateria.
Anette (1992)
hatOLOGY
Gary Peacock se une aqui a seu velho amigo Paul Bley (piano) e ao
trompetista austríaco Franz Koglmann em registro realizado em abril de 1992 na
Radio Bremen, Alemanha. O título é uma homenagem à pianista e cantora Annette Peacock,
com quem o baixista foi casado nos anos 60. O disco é focado em composições de
Annette, com exceção da faixa "Annette", criada pelo trio. Um registro
de profunda beleza ímpar.
Now This (2015)
ECM
O último importante projeto comandado por Gary Peacock foi seu trio ao
lado de Marc Copland (piano) e Joey
Baron (bateria), com quem esteve em São Paulo em 2015. Este disco de estreia do
grupo, captado em julho de 2014 no Rainbow Studio, em Oslo, mostra o trio em 12
temas (a maioria do baixista), em um registro intimista e de marcante
sonoridade – que tivemos o privilégio de degustar ao vivo na cidade. Esse título
foi seguido pelo também excelente "Tangents", de 2017.
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*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e
Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos;
foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com
publicações como Entre Livros, Zumbido e Jazz.pt. Atualmente escreve sobre
música e literatura para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns
“Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of the Star”,
de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live in Nuremberg”, de Perelman e
Matthew Shipp (SMP Records)