LANÇAMENTOs Novos álbuns de
diferentes partes do mundo. Experiências variadas, possibilidades múltiplas.
Ouça, divulgue, compre os discos...
Por Fabricio Vieira
Unnavigable Tributaries ****
Luís Vicente/ Olie Brice/ Mark Sanders
Spontaneous Music Tribune/Multikulti Project
Em maio de 2019, o trio formado pelo português Luís Vicente (trompete)
e os britânicos Olie Brice (baixo acústico) e Mark Sanders (bateria) fez uma
turnê por Portugal que passou por cidades como Coimbra, Vila Real, Caldas da
Rainha e Lisboa. Foi nesta última parada que o trio decidiu gravar o álbum agora
editado. Unnavigable Tributaries traz seis temas, em cerca de 45 minutos de
música. O registro começa com uma peça com ar de introdução, "Côa",
com os músicos aclimatando os ouvintes, Sanders testando a percussão de forma
morosa enquanto o trompete vai destilando um tema que parece ainda meio que
buscando seu rumo, sem pressa, crescendo para adentrar, já de forma mais
impetuosa, "Tua", que vem na sequência. Aqui não tarda para que a música
esteja mais quente, com Vicente lá pelos dois minutos nos conduzindo com um potente
solo. Após a mais climática "Sabor", passamos por "Corgo"
para alcançar a extensa "Tavora", onde a precisão do trio tem seu
espaço mais dilatado para ser exibida. Com seus 14 minutos, a faixa permite que
Vicente, Brice e Sanders improvisem coletivamente e também mostrem a
singularidade de suas vozes. O disco fecha com a explosiva "Paiva",
deixando no ar a vontade de poder vê-los atuando ao vivo. “I’m writing these
liner notes during the madness of Covid 19, in social isolation and probably a
few weeks before the height of the virus with what seems like a now inevitable
huge loss of life. (...) at this point in time it’s hard not to despair, to
keep pushing forward artistically… Listening to our recording is helping me
look both back and forwards to happier times. So here’s to human interaction,
to social collaboration, to things getting better and to a future when we can
do what we do – come together to make music, to listen to music and to share in
the joy of being alive”, escreve Brice no encarte, resumindo o sentimento de
muitos neste momento.
Dental Kafka ****
Akira Sakata/ Jim O'Rourke/ Di
Domenico/ Yamamoto
Trost Records
Aos 75 anos, o saxofonista japonês Akira Sakata pode ser chamado sem
exageros de lenda. O músico nascido em Hiroshima em fevereiro de 1945, poucos
meses antes de os Estados Unidos cometerem em sua cidade uma das maiores
atrocidades da história, iniciou sua carreira no free jazz no fim dos anos 1960
e nunca parou desde então. Com dezenas de discos em sua discografia, Sakata se
mantém excursionando pelo mundo e se envolvendo com novos projetos. Neste novo
álbum o vemos com o quarteto Bonjintan, ao lado dos mais jovens Jim O'Rourke,
Tatsuhisa Yamamoto (bateria) e do pianista italiano Giovanni Di Domenico. A
presença de O'Rourke pode gerar uma expectativa um tanto quanto errada em
relação ao que se vai ouvir aqui. Isso porque O'Rourke, muito ligado a
eletrônicos, guitarra e ruídos que bem tem explorado no rock e no free impro,
aparece desta vez munido de um baixo acústico. Após abrir com tema mais abstrato,
construído de forma não linear, o álbum nos lança em seu melhor, a potente
faixa-título, que se revela por meio de sonoridade bem free jazzística. Até
certa herança propriamente jazzística emerge do piano de Domenico, com um toque
algo swingante aparecendo no caminho, enquanto Sakata sola ariscamente, mas sem
deixar de soltar algumas pitadas melódicas em alguns pontos, lembrando sua
sonoridade com seus trios na virada dos anos 70/80. Sakata surge com o
clarinete no terceiro tema, "Koro Koro Donguri", que retoma um corpo
mais free impro, sendo menos direta em sua construção, mais divagante, com os
instrumentistas experimentando rumos para encontrar uma voz coletiva. Com
Dental Kafka, o saxofonista japonês mostra que segue afiadíssimo.
Open Form For Society Live ****(*)
Christian Lillinger
PLAIST (EDEL)
Após a elogiada estreia em 2019 do projeto Open Form For Society, o baterista
alemão Christian Lillinger retorna com um novo disco. Desta vez ao vivo, Open
Form For Society Live foi captado na turnê do álbum de estúdio, em novembro de
2019, no Jazzfest Berlin. A banda, com dez instrumentistas ao lado das baquetas
de Lillinger, sofreu alterações pontuais em relação ao grupo que gravou o disco
em estúdio, contando aqui com Kaja Draksler, Cory Smythe, Ron Stabinsky,
Antonis Anissegos, Elias Stemeseder (pianos e sintetizadores), Christopher
Dell, Roland Neffe (vibrafones, marimba), Lucy Railton (violoncelo), Petter
Eldh e Robert Landfermann (baixos). O grupo com integrantes de diferentes
países (Alemanha, Eslovênia, Suécia, EUA, Áustria, Grécia e Reino Unido) amplia
as possibilidades oferecidas pelas composições de Lillinger. “It was important
to me to keep room for variation and improvisation, and thereby advance the
musical ideas”, diz Lillinger no release. E é isso o que vemos aqui. A música
se mostra mais enérgica e com improvisações mais intensas que o registro de
estúdio, totalizando cerca de 52 minutos. O disco inicia com "OFFS",
peça que tem a proeza de confundir nossos sentidos por entre múltiplas linhas
conduzidas pelos vários pianos em uma textura envolvente. As teclas voltam a
ser essenciais em "Sisyphos", que quase dobra de tamanho, indo
dos três minutos originais para cinco nesta versão, um bom exemplo de como as
composições se transformam do estúdio para o palco. Em "Laktat", outro
destaque do conjunto, os vibrafones, junto com os pianos e a batida fraturada
de Lillinger, criam um sedutor estranhamento, em viradas desconcertantes e
vozes que se abrem a pontos múltiplos, fazendo a escuta ter que caçar no ar os
elementos que compõem a música em sua roupagem final. Para quem gostou do
trabalho de estreia do Open Form For Society, este ao vivo é obrigatório, com
potencialidade para agradar ainda mais. O disco está sendo lançado em CD e
vinil duplo.
Live at Scholes St. Studio ****
Ras Moshe Burnett & Music Now!
Nengo Dango Records
O saxofonista do Brooklyn (NYC) Ras Moshe Burnett começou a organizar o
projeto Music Now ainda no fim dos anos 90. Sob essa etiqueta, tem organizado
periodicamente gigs e feito alguns registros, reunindo diferentes músicos em
sessões de improvisação livre. Esta gravação realizada três anos atrás, em 2 de
agosto de 2017, no Scholes St. Studio, marca o encontro do saxofonista com os
argentinos Paula Shocron (piano) e Pablo Díaz (bateria), que estavam então em
NY. Junto a Moshe (sax, flauta, vibrafone) também estavam os locais Matt
Lavalle (flugelhorn), Anais Maviel (voz) e Lee Odom (sax alto). O álbum traz
dois temas, mas o núcleo está em “First Part”, com cerca de uma hora de
duração; a outra peça, “Final Part”, com seis minutos, funciona mais como um
bis. A apresentação começa de forma lenta, abrindo com voz e piano, alguns
toques percussivos aqui e ali, tudo chegando aos poucos, se desenvolvendo de
acordo com que as ideias vão, gradativamente, surgindo. Com vagar, sentimos o
piano assumir algum destaque maior, lá pelos seis minutos, com linhas atmosféricas
que nos conduzem a um ponto de energia maior. O solo de tenor que daí advém, percorridos
uns dez minutos, se desdobra em excitante diálogo dos dois saxes, quando a
música atinge outro nível de força. Entre elevações e recuos, a improvisação
coletiva que se arma nessa hora de música tem momentos excitantes, outros mais
relaxados, compondo um painel de cores variadas em um vibrante encontro.
Broken Shadows - Live ****
Tim Berne/ Chris Speed/ Reid
Anderson/ Dave King
Screwgun Records
Quando vemos o nome do saxofonista Tim Berne e o de Ornette Coleman em
um mesmo release, inevitável não vir à mente o iconoclasta projeto Spy vs. Spy,
do qual ele participou, ao lado de John Zorn, no fim dos anos 80. Mas Broken
Shadows tem uma proposta um pouco diversa. Esse quarteto, que conta com
Berne, Chris Speed (sax), Reid Anderson
(baixo) e Dave King (bateria) – os dois últimos, do trio The Bad Plus – investiga temas de Coleman em uma roupagem free jazzística que, se atualiza sua
estética, não busca desconstruí-la como o Spy vs. Spy fazia. O Broken Shadows,
que estreou no ano passado em disco, retorna agora com uma gravação ao vivo, na
qual revisita temas de Coleman de diferentes períodos, como "Humpty
Dumpty", originalmente registrada em "This Is Our Music" (1960);
"Ecars", de On Tenor (62); "Toy Dance", de New York Is Now
(68); e a faixa-título, já dos anos 70. Essa música é desenvolvida dentro de
uma expressão free jazzística contemporânea, não se trata de improvisação livre
ou algo assim. Dessa forma, os temas são desenvolvidos em sintonia com suas
ideias originais, mas, claro, se abrindo a improvisações sintonizadas com a
forma de cada um tocar. Afora as peças de Coleman, que centram o projeto e a
apresentação, há alguns outros temas, como a surpreendente versão de
"Dogon A.D.", de Julius Hemphill.
EarthSeed *****
Nicole Mitchell / Lisa E. Harris
FPE
A obra da escritora Octavia Butler mais uma vez serve de inspiração
para Nicole Mitchell. Desta vez em parceria com a compositora e vocalista Lisa
E. Harris, Mitchell lança a terceira parte de uma trilogia que tem em livros de
Butler sua motivação primeira (os dois discos anteriores são "Xenogenesis
Suite" e "Intergalactic Beings"). A flautista e compositora
ligada à AACM mostra mais uma vez um trabalho de grande inventividade
composicional, amparada pelo grupo Black Earth Ensemble, que aqui traz Tomeka
Reid (violoncelo), Ben LaMarGay (trompete), Zara Zaharieva (violino), Julian
Otis (voz) e Avreeayl Ra (percussão). A peculiar instrumentação, que tem ainda
a flauta de Mitchell e Harris no theremin e eletrônicos, ajuda a criar um clima
onírico, traçando uma sintonia com o universo afrofuturista/science fiction
caro a Butler. As envolventes linhas criadas por Reid, com destaque a temas
como "Yes and Know" e "Elemental Crux", com as vozes declamando e a flauta rasgando o
espaço, trazem alguns dos momentos mais sedutores da obra. Os textos de Butler,
ora recitados, ora cantados, são essenciais para o desenvolvimento da música:
poder acompanhar as palavras eleva as possibilidades de apreciação da
desafiadora obra. Nicole Mitchell e Lisa E. Harris se encontraram no New
Quorum Composers Residency, em New
Orleans, e foi daí que surgiu a ideia de
trabalharem juntas, resultando neste instigante projeto. Primeiramente
apresentado ao vivo no Art Institute de Chicago, em junho de 2017, essa
importante criação agora pode ser degustada por todos.
Koneko ****
Gato Libre
Libra Records
O grupo japonês Gato Libre apresenta seu novo inusitado registro.
Criado pelo trompetista Natsuki Tamura no começo dos anos 2000, o Gato Libre foi
obrigado a se reinventar para seguir em atividade. Primeiramente um quarteto,
trazia Tamura, a pianista Satoko Fujii (que neste projeto toca só acordeom), o
baixista Norikatsu Koreyasu (1954-2011) e o guitarrista Kazuhiko Tsumura (morto
em 2015). Com a perda da metade de seus integrantes, o Gato Libre se recriou como
trio, com a adição do trombonista Yasuko Kaneko. E é com essa formação de
trompete, acordeom e trombone que o trio apresenta este novo título. Koneko, o
oitavo álbum do grupo, foi gravado em 5 de dezembro de 2019 no UEN Studio, em
Tóquio, e traz oito temas, todos compostos por Tamura. Se a música segue a
linha originalmente pensada por Tamura, com um núcleo free jazzístico permeado
por elementos folk e improvisação coletiva, é claro que a sonoridade mudou
bastante com troca de baixo e guitarra por trombone. Com a formação anterior ou
com a atual, a sonoridade do Gato Libre é muito particular, trazendo inevitável
estranhamento para quem se depara pela primeira vez com o projeto. Se o nome do
grupo e as capas de seus discos sempre remetem ao universo felino, essa marca
se acentua ainda mais aqui. O título do álbum, Koneko, significa algo como
“gatinho”. E as faixas seguem com “Noraneko” (gato de rua), “Yamaneko” (gato
selvagem), “Ieneko” (gato doméstico) e assim por diante. O clima das faixas
busca acompanhar o título delas, soando ora mais divagante, ora mais arisca, ora
mais aconchegante. Noraneko, por exemplo, tem certo ar noir, com os dois sopros
atravessando o ar de modo letárgico. Já Yamaneko, em que o arcordeom ganha maior
destaque, tem um clima mais ríspido, indomável. Destaque para Bakeneko,
com os momentos mais fortes do trompete e seu solo mais potente, quebrado
com agudeza por intromissões diretas do acordeom.
Aura *****
Camila Nebbia
ears & eyes
Aura é o novo instigante trabalho da saxofonista argentina Camila
Nebbia. Potente voz da nova geração que faz da cena do país vizinho uma das
mais excitantes da atualidade, Nebbia (sax tenor e composição) reuniu para este
projeto um grande grupo que conta com Ingrid Feniger (sax alto e clarinete
baixo), Violeta García (violoncelo), Valentin Garvie (trompete), Daniel Iván
Bruno (trombone), Juan Bayón (baixo), Mariano Sarra (piano), Damián Bolotín (violino), Axel Filip e Omar Menendez
(baterias). Com esta formação, apresenta cinco composições em que complexas
harmonias, interações improvisativas coletivas e texturas marcadas por tensões
constroem um conjunto sonoro altamente inventivo. A composição nuclear do
trabalho provavelmente seja "Algunos rastros de la memoria". Com seus
18 minutos, mostra toda a criatividade composicional de Nebbia, com a peça
sendo marcada por uma linha melódica que aparece em diferentes momentos, se desenvolvendo
cada vez de uma forma um tanto quanto distinta. A orquestração aqui é explorada
em maior complexidade, com as cordas tocando um marcante melancólico tema antes
de sermos despertos por ataques potentes da banda. Mais surpresas: no meio da
peça surgem vozes a recitar versos de Federico García Lorca, antes de
mergulharmos em sua segunda parte, rumo ao potente desfecho. Outra faixa de
forte impacto é “La Desintegración”, em que o diálogo coletivo fraturado que
abre a peça, antes de nos levar ao tocante solo de sax tenor, é desconcertante;
este tema utiliza algumas técnicas de regência criadas por Butch Morris, que
ditam as paradas e ataques que elevam sua tensão. Camila Nebbia está em seu
ponto máximo e este é sem dúvida seu mais importante trabalho até o momento; espero
que tenha oportunidade de levá-lo aos palcos (e ouvidos) mundo afora.
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*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e
Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos;
foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com
publicações como Entre Livros, Zumbido e Jazz.pt. Atualmente escreve sobre
música e literatura para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os
álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of the
Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live in Nuremberg”, de Perelman e
Matthew Shipp (SMP Records)