LANÇAMENTOs Novos discos com gravações inéditas resgatadas e reedições de material fora de catálogo. Experiências variadas, possibilidades múltiplas. Ouça, divulgue, compre os discos...
Por Fabricio Vieira
A indústria musical, de tempos em tempos, lança material inédito de suas maiores estrelas, independentemente do gênero. Sobras de estúdio, transmissões radiofônicas, versões mono, vale revirar qualquer coisa nos arquivos para fazer o ouvinte comprar uma nova edição de um álbum do qual ele já tem várias outras. Mas afora fetiches de colecionador, as reedições e resgates de material antigo podem ser também uma notícia verdadeiramente empolgante para os fãs. Especialmente em uma seara como a da free music, onde muitos álbuns foram editados de forma limitada e se tornaram raridade ou gravações importantes ao vivo e em estúdio nunca tiveram a oportunidade de receber uma edição original bem feita. Dando uma busca em selos de diferentes locais do mundo, encontramos vários lançamentos que realmente merecem atenção. Selecionamos alguns álbuns editados recentemente que trazem gravações feitas entre os anos 60 e 90, discos que vão engrandecer a escuta e a coleção de quem vive a free music. Boas audições.
Om Shanti Om ****
Don Cherry
Black Sweat Records
Nos anos 1970, Don Cherry (1936-1995) adentrava uma nova etapa em sua
trajetória artística. Ampliando as perspectivas do free jazz, gênero do qual
foi um dos pioneiros, em uma abertura a sons de todo o mundo (algo que tinha
começado a fazer no fim da década anterior), foi desenvolvendo uma espécia de
free world music, que teve seus mais finos resultados alcançados com o trio
Codona (76-84). À época vivendo na Suécia, Cherry desenvolveu com sua
companheira, Moki, o projeto Organic Music. À liberdade do free impro, Cherry trazia
elementos sonoros de todos os cantos, Índia, Turquia, Bali, Américas, África,
em uma sonoridade que marcou discos seus como "Organic Music Society"
(73) e "Hear & Now" (77). Esse registro inédito realizado nesse
período traz Cherry (trompete pocket, flauta, kora) em um quarteto com Moki
(tambura), Gian Piero Pramaggiore (flauta e guitarra acústica) e o
percussionista brasileiro Naná Vasconcelos. Cânticos, viagens percussivas, uma
aura ritualística, a música de Om Shanti Om vem de uma gravação feita na Itália
pela RAI, em uma transmissão chamada à época, 1976, de "Incontro con Don
Cherry". Há momentos deliciosos como "Koye", com o cantar característico
de Naná, a hipnótica " Om Shanti Om" e o mágico berimbau em "Nana's
Solo". O registro tem um certo ar
nostálgico, de um tempo que ficou para trás, e deve agradar em cheio aos fãs
dessa fase de Cherry.
Ancestral Echoes - The Covina Sessions, 1976 ****(*)
Horace Tapscott
Dark Tree
Horace Tapscott (1934-1999) foi um nome central do free jazz em Los
Angeles. Dentre diferentes importantes projetos, destaca-se na obra do pianista
e compositor o trabalho desenvolvido com a Pan Afrikan Peoples Arkestra,
notadamente nos anos 70 e 80. Antes disso, no começo da década de 1960,
Tapscott ajudou a idealizar e fundar o coletivo UGMAA (Union of God's Musicians
and Artists Ascension), espécie da AACM da Costa Leste. E a Pan Afrikan Peoples
Arkestra, na qual muitos músicos menos incensados encontraram espaço para suas
vozes, foi o principal fruto da UGMAA. Dado como perdido e nunca editado, esse
registro realizado em janeiro de 1976, nos tempos iniciais da banda, chega
agora, para surpresa de muitos, ao mercado. A edição em CD traz quatro extensas
faixas, captadas no Audiotronics Recording Studio, em Covina, LA. O extenso
grupo, com mais de vinte artistas, muitos locais, tem dentre seus nomes mais
conhecidos o saxofonista Gary Bias, o baixista Marcus McLaurine e a pianista
Linda Hill. Com vários saxofones, sessão de metais, piano, percussão, dois
baixos e duas baterias, a Pan Afrikan Peoples Arkestra cria uma música que traz a herança das big bands jazzísticas, com uma enérgica pitada free,
especialmente nos solos (como o de sax tenor de Fuasi Abdul-Khaliq em "Eternal
Egypt Suite"), entre ritmos algo dançantes e as melodias fraturadas do
piano de Tapscott. Registro de importância histórica para compreender a
evolução da Pan Afrikan Peoples Arkestra e as ideias de Tapscott.
Live In Paris (1975) ****
Pharoah Sanders
Transversales Disques
Em 1975, Pharoah Sanders tinha encerrado seu contrato com a Impulse!, pela
qual havia editado, desde o fim da década de 1960, seus principais trabalhos,
que o estabeleceram como uma das vozes mais potentes da época. Adentrando uma
nova etapa, excursionou pela Europa com um quarteto formado por músicos de
pouca ligação com o free jazz: Danny Mixon (piano e órgão, que tocaria à época
também com Charles Mingus), Calvin Hill (baixo, mais conhecido por gravações
com Max Roach e McCoy Tyner) e Greg Bandy (bateria). O próprio Sanders começava
a destacar uma via mais jazzística em sua música, algo que marcaria seu
trabalho nos anos 80 e 90. Mas aqui o saxofonista, se menos explosivo, ainda trazia
a outra forte marca que o consagrou: a sonoridade espiritual, de atmosfera por
vezes onírica. Naquela noite de 17 de novembro de 75, no Grand Auditorium, em
Paris, Sanders e seu quarteto executaram os temas "Love is
Here" (em duas partes), "Love is Everywhere" (de álbum de mesmo
nome, então recém-saído), "I Want to Talk About You" (balada que
costuma ser lembrada pela versão de Coltrane), "Farrel Tune" e a
clássica "The Creator Has a Master Plan", que aqui aparece em versão
condensada, quase nove minutos, cerca de um terço da duração da versão original
de 69. "The Creator Has a Master Plan" traz o solo mais rasgante de
Sanders e uma curiosa adição de órgão, que dá uma roupagem cerimonial a esta
peça que é um verdadeiro hino da free music. São seis faixas, em pouco mais de
40 minutos, editadas em vinil, com resmaterização a partir das fitas originais.
Consequences Revisited ****(*)
New York Contemporary Five
ezz-thetics
O New York Contemporary Five foi um grupo de vida efêmera, mas de
grande importância, com seu núcleo de atividade no ano de 1963 trazendo a sua
formação "clássica" com Archie Shepp (tenor), Don Cherry (corneta),
John Tchicai (sax alto), Don Moore (baixo) e J.C. Moses (bateria). Suas poucas
gravações, ao vivo e em estúdio, receberam edições (nem todas originais) por
diferentes selos, muitas delas perdidas no tempo. A ezz-thetics, subselo da
HatHut que tem feito o resgate de importantes gravações, lança agora uma edição
à altura deste grupo fundamental na estruturação do free jazz dos primeiros
tempos. Consequences Revisited traz dois fundamentais registros que o New York
Contemporary Five realizou, remasterizados e editados com a merecida atenção. O
primeiro registro, que apareceu originalmente em disco pela
Fontana, em 1966, contempla seis faixas, com temas de Cherry, Tchicai, Shepp e
Dixon, além de uma releitura de "Crepuscule With Nellie" (Monk), com
as gravações tendo sido feitas em agosto de 63, em Nova York – exceção de um
tema, exatamente a faixa-título, captada em outubro do mesmo ano em Copenhague.
O restante do CD vem de um registro de março de 64, feito em New Jersey, que
apareceu originalmente em um álbum editado pela Savoy que trazia em seu lado A
o Bill Dixon 7-Tette. Essa segunda sessão, que apresenta três temas, ocorreu em
um período em que o New York Contemporary Five estava caminhando para seu fim,
com seus membros se envolvendo em outros projetos, e sofreu algumas alterações
fundamentais, com a substituição de Moses na bateria por Sunny Murray, a
entrada de Ronnie Boykins no baixo e a participação do cornetista Ted Curson. Brilhante
testemunho de um período em que o free jazz ainda buscava seus rumos e limites.
No Nothing - Alternate Takes ****
Peter Brötzmann
FMP
Três décadas depois de seu lançamento, a FMP resolveu fuçar o fundo do
baú para trazer seis Alternate Takes da
sessão que resultou no álbum No Nothing. Gravado entre os dias 14 e 15 de
dezembro de 1990, No Nothing é um disco solista de Peter Brötzmann que mostra o
artista alemão tocando (aqui) saxes tenor e alto, clarinete e clarinete baixo
(no disco original aparecia também ao sax baixo e ao tárogató). Os cerca de 54
minutos novos de música poderiam compor um CD extra em um nova edição do
título. Mas essa não foi a opção do selo. De qualquer forma, o disco deveria
ser escutado junto com o No Nothing original: afinal, o interessante aqui é
ouvir as faixas escolhidas para serem publicadas três décadas atrás e essas que
ficaram engavetadas. Dois pontos do disco merecem atenção em relação a seu
antecessor. Aqui temos uma faixa ao clarinete bastante extensa, 19 minutos, na
qual vemos Brötzmann desenvolver suas ideias com vagar, em uma peça marcada por
menos explosão e passagens por vezes comoventes. Há também dois temas focados no
sax tenor, totalizando uns 18 minutos, enquanto o instrumento aparecia por
apenas por 6 minutos, em uma solitária peça, no disco original.
That Time ****
London Jazz Composers Orchestra
Not Two Records
Nos 50 anos de sua criação, a London Jazz Composers Orchestra ressurge
em registro que resgata gravações, ao vivo e em estúdio, realizadas em 1972 e
1980. Com duas formações distintas, That Time traz quatro peças, duas captadas em cada um desses anos, em cerca de uma hora de música. De 72 vem "Watts Parker Beckett to me Mr. Riley?",
esta de apresentação que aconteceu no Berliner Jazztage, e "Statements
III", de concerto no Donaueschingen Musiktage. Nessas duas faixas, o grupo
liderado pelo baixista britânico Barry Guy traz uma banda com mais de 20
instrumentistas, a destacar Kenny Wheeler (trompete), Trevor Watts, Evan
Parker, Mike Osborne (saxes), Derek Bailey (guitarra), Tony Oxley e Paul Lytton
(baterias). Nos temas de 80, o grupo já havia sofrido mudanças, mas mantendo
aproximadamente o mesmo número de instrumentistas. Além da continuidade de
Wheeler, Watts, Parker e Oxley na big band, há a adição de nomes como Philipp
Wachsmann (violino), Peter Kowald (baixo), John Stevens (bateria), Paul
Rutherford (trombone) e Peter Brötzmann. "Quasimode III", captada em estúdio,
traz uma sonoridade bastante distinta da potência enérgica que marca as peças
de 72, com o tema se desenvolvendo de forma que parece mais controlada e com um
clima noir atravessando a atmosfera. "Appolysian", que fecha o disco,
é bastante abstrata em seus primeiros cinco minutos, permeados por ruídos
múltiplos, com as cordas dominando essa primeira parte. That Time é um
importante resgate de dois momentos distintos desse fundamental grupo da free
music europeia.
Im Podewil Berlin 1993 ***(*)
Johanson/ Christmann/ Gustafsson
SAJ
Em 1993, Mats Gustafsson não poderia imaginar o espaço central que
ocuparia na free music do século XXI. Hoje um dos principais artistas de sua
geração, àquela época Gustafsson era um jovem de 28 anos que pouco tinha
gravado e ainda ia tateando seu lugar na cena internacional. Em 10 e 11 de fevereiro
de 1993, Gustafsson se juntou aos já veteranos trombonista Günter Christmann e
baterista Sven-Ake Johansson para dois encontros de improvisação livre. A
música que gestaram no palco do Podewil, em Berlim, aparece apenas agora, em
dois volumes editados pelo selo de Johansson. São cerca de duas horas de música
que poucas pessoas devem ter ouvido até então, divididas em 13 faixas. Se o
núcleo do disco é construído pelos instrumentos principais de seus
participantes (trombone-sax-bateria), as divagações improvisativas levam os
artistas a ampliarem as possibilidades expressivas com Christmann também
tocando violoncelo em alguns momentos ("Zwei", do vol. II) e Johanson
testando acordeom ("Vier", "Sieben") e voz (em recitações
como em "Fünf" e "Drei"; ele também é poeta). Um detalhe:
os nomes das peças se repetem nos dois discos, mas são versões com
instrumentações diferentes. É interessante ouvir especialmente Gustafsson em um
momento em que estava um pouco longe ainda de levar aos ouvintes suas principais
criações. Free improvisation em sua roupagem clássica.
Complete Recordings *****
Modern Jazz Quintet Karlsruhe/Four Men Only
NoBusiness Records
O trompetista germânico Herbert Joos (1940-2019) é o nome de peso desta
importante edição. Complete Recordings reúne, em quatro CDs, discos de duas
bandas intrinsecamente ligadas ao nome de Joos nas décadas de 60 e 70: o Modern
Jazz Quintet Karlsruhe, que criou no fim dos anos 60 ao lado de Wilfried
Eichhorn (sax, clarinete baixo), Helmuth Zimmer (piano), Klaus Bühler (baixo) e
Rudi Theilmann (bateria); e o Four Men Only, um desdobramento do grupo após a
saída de Bühler. Este lançamento reúne os dois discos do Modern Jazz Quintet
Karlsruhe, "Tress" (68) e "Position 2000" (70), e dois do
Four Men Only, "Vol. I" (72) e "Eight Science Fiction
Stories" (73). O trabalho de ambos os projetos está mais associado a uma
seara free jazzística que propriamente ao free impro europeu que atingia seu
ápice exatamente na época registrada nos discos. As peças, mesmo em suas linhas
mais energy, são construídas, no geral, seguindo um rumo, uma rota na qual não
são raros o desenvolvimento de temas, em um processo no qual elementos composicionais
perceptíveis dividem espaço com improvisos por vezes bastante ariscos. A
música, de um álbum a outro, tem uma forte conexão, o que faz com que a decisão
de editá-la toda junta seja bastante acertada também do ponto de vista
estético. Com exceção de Joos, um pouco mais conhecido (apesar de bem menos que
outros de seus contemporâneos e conterrâneos), os outros músicos aqui presentes
deixaram raros registros e dificilmente são lembrados afora esses trabalhos. A
edição deste Complete Recordings, em limitadas 500 cópias, é uma excelente
notícia para os fãs de free jazz, já que esses títulos estavam fora de catálogo
há muito. Infelizmente só veio à luz agora, após a morte de Joos, ocorrida em
dezembro passado.
--------
*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e
Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos;
foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com
publicações como Entre Livros, Zumbido e Jazz.pt. Atualmente escreve sobre
música e literatura para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os
álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of the
Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live in Nuremberg”, de Perelman e
Matthew Shipp (SMP Records)