CHARLIE PARKER: 100 anos





No centenário do saxofonista Charlie Parker, indicamos, no mar sem fim que são suas gravações disponíveis no mercado, cinco registros imperdíveis para descobrir e redescobrir a genialidade de sua música...





Por Fabricio Vieira


Charlie Parker viveu apenas 34 anos. Se podemos afirmar que teve uma vida breve, ao menos artisticamente foi o suficiente para torná-lo um dos músicos mais icônicos do jazz. Charlie "Bird" Parker nasceu em Kansas City, no dia 29 de agosto de 1920. E nesses dias não faltarão tributos e homenagens aos 100 anos que estaria completando no próximo sábado. Impossível alguém com qualquer interesse no universo do jazz não conhecer Parker, não ter ouvido alguma gravação sua. O saxofonista teve sua vida profissional registrada principalmente entre 1945 e 1953. Mesmo assim, é um dos campeões de entradas na plataforma Discogs, que computa mais de 900 releases com seu nome. Claro que Parker não gravou tudo isso. A esmagadora maioria desses títulos são coletâneas, de todos os tipos e qualidades, em edições feitas mundo afora nos últimos 70 anos. Assim, adentrar o mundo de Parker é mais trabalhoso do que pode parecer. O excesso de títulos à disposição obriga, indiscutivelmente, o ouvinte interessado na obra do saxofonista a pesquisar e escutar muito até chegar ao que melhor sintetiza sua estética e revolução linguística.

O saxofone alto teve em Parker um de seus mais inventivos e inovadores representantes em toda a história do jazz. Infelizmente o vício em heroína e o alcoolismo cobraram rapidamente seu preço, e Parker morreu no dia 12 de março de 1955. Ficamos sem saber como ele responderia às novas trilhas que se abriam (e se abririam) no universo jazzístico. Adentraria o free, o fusion? Se tornaria um músico mais conservador, acomodado? Jamais saberemos. O que podemos fazer então é ouvir com admiração e grande prazer a música que nos deixou.
Parker começou a gravar em um período em que o conceito de álbum, como o conhecemos, não existia. Sua história oficialmente registrada está intimamente ligada a três selos/etapas: Savoy, Dial e Verve. Muitas de suas mais famosas sessões se resumem a quatro ou cinco temas, que era o que cabia em discos em meados da década de 1940. E isso acaba se tornando um problema para quem vai adentrar sua obra e se depara com infindáveis coletâneas com critérios frouxos (ou mesmo sem critério algum) e títulos que se pretendem chamativos, mas que não apontam para nada, como "The Immortal Charlie Parker", "The Art of Parker", "The Genius of Charlie Parker", "The Magnificent Parker", "The Bird Returns" ou "The Fabulous Bird". Há também muitas gravações (ao vivo, broadcastings, amadoras) com baixa qualidade de áudio. Não faltam nesse bolo registros que têm apenas importância histórica, para estudiosos e colecionadores, e até aqueles um tanto quanto duvidosos, como os álbuns com acompanhamento de cordas (que devem estar entre seus discos mais vendidos). Para quem tem dinheiro (pensando que ainda se compram discos) e/ou um interesse mais profundo, é claro que o caminho indicado é adquirir edições abrangentes de cada período, do tipo "The Complete Savoy Sessions", "On Dial: The Complete Sessions" ou "Bird: The Complete On Verve" (só esta caixa é composta por 10 CDs). Mas pensando que poucos farão isso, selecionamos 5 discos que trazem um panorama abrangente e altamente recomendado da música de Charlie "Bird" Parker. Boas audições.



*Charlie Parker: 5 registros imperdíveis*




STORY ON DIAL (Westcoast Days)


Este disco reúne quatro sessões realizadas em 1946 e 47, com algumas das primeiras gravações de Parker como líder (a primeira faixa, "Diggin' Diz", é um tipo de bônus, feita em fevereiro de 46 com Parker ao lado do Dizzy Gillespie Jazzmen). As faixas aqui reunidas marcam um ponto historicamente importante: Parker estava vivendo na Califórnia (chegou lá em uma turnê com Dizzy e acabou ficando), onde faria sua estreia no selo Dial. A primeira gravação, em septeto onde se destacam Miles Davis (trompete) e Dodo Marmarosa (piano), aconteceu em 28 de março de 46 e traz registros que se tornariam clássicos do bebop: "Ornithology" (para muitos, em sua versão definitiva), "Yardbird Suite", "Moose The Mooche" e "A Night In Tunisia". A polêmica sessão seguinte, de 29 de julho de 46, traz um quinteto com Howard McGhee no lugar de Miles. Tem uma versão matadora de "Bebop" e "Lover Man", que se tornou famosa por Parker estar completamente chapado (acabaria logo depois internado no Camarillo State Mental Hospital). "Lover Man" seria massacrada pela crítica, mas a peça é muito forte, soturna, dolorida. O último registro do álbum é de 26 de fevereiro de 47 e tem como destaque a belíssima "Relaxin' At Camarillo", que denota certo lado irônico de Parker após sair do hospital, limpo, depois de meses de internação.



BLUEBIRD: LEGENDARY SAVOY SESSIONS


Às vezes parece que a importância da presença de Miles Davis (1926-1991) nos registros de Charlie Parker fica em segundo plano. Mas eles tocaram juntos em muitas oportunidades na década de 1940. Este álbum é um importante testemunho das gravações que Parker realizou ao lado do trompetista para o selo Savoy. Os primeiros três temas que aparecem neste disco foram captados em 26 de novembro de 1945, quando Miles tinha apenas 19 anos; uma curiosidade nessas faixas: Dizzy Gillespie toca piano nelas. O disco agrupa seis sessões (as outras são de 47 e 48), sempre com Parker, Miles e Max Roach na bateria. No piano e baixo se revezam, respectivamente, Bud Powell e John Lewis, Curley Russell e Tommy Porter. No disco se ouvem clássicos como "Donna Lee", "Chasin' The Bird", com sua fuga hipnótica, "Blue Bird" e uma encantadora versão de "Parker's Mood". Curioso também escutar em suas primeiras versões "Milestones" e "Half Nelson", temas de Miles que estariam no seu repertório por muito tempo. E o trompete de Miles é muito diverso do de Gillespie ou de Howard McGhee – os outros dois com quem Parker mais tocou naquela década –, trazendo uma nova vibração a sua música. 



ONE NIGHT IN BIRDLAND


Charlie Parker teve no formato quinteto, acompanhado por um trompetista, provavelmente o seu preferido. E foi assim que registrou importantes capítulos de sua obra, majoritariamente com bons trompetistas ao lado. Com o grande Fats Navarro (1923-1950) se reuniu para algumas apresentações no clássico clube Birdland no início dos anos 50. É de onde vêm este intenso registro ao vivo. Parker e Navarro tocaram poucas vezes juntos; haviam se encontrado no contexto da Jazz At The Philharmonic, no palco do Carnegie Hall, no ano anterior. Para as gigs no Birdland, em maio de 1950, convocaram para completar o quinteto Bud Powell (piano), Curley Russel (baixo) e Art Blakey (bateria). Navarro, que morreu menos de dois meses depois desta gravação, aos 26 anos, consumido pela tuberculose e o vício em heroína, mostra-se um parceiro excelente para Parker, levando aqui a sonoridade de temas sempre presentes, como "Dizzy Atmosphere" e "Ornithology" (ambas com genias solos de sax), a outras possibilidades. A qualidade da gravação, que vem de uma transmissão radiofônica, não é excepcional, mas o concerto é muito vibrante. Um detalhe imperdível: essa é uma das raras vezes que você vai ouvir Parker tocando Round Midnight.    



BIRD AND DIZ


Este álbum planejado e lançado pela Verve não costuma ser considerado pelos críticos como um dos registros fundamentais de Parker (talvez até pela falta de "clássicos"), mas ele tem vários pontos que o tornam especialmente importante. Se a dupla Charlie Parker/Dizzy Gillespie é sinônimo de bebop, os registros que fizeram juntos não são tão numerosos quanto se pode imaginar. E boa parte deles não tem uma qualidade sonora maior. Esta gravação aconteceu em um estúdio em Nova York no dia 6 de junho de 1950. E em termos de qualidade de som é o melhor que deixaram. A Bird e Diz se juntam Curley Russel (baixo), Buddy Rich (bateria) e nada menos que Thelonious Monk no piano. Os músicos fizeram uma escolha interessante: deixar de lado os temas tradicionais do bebop normalmente associados a seus nomes e tocar novas peças. Assim, o que temos aqui são faixas que, de nome, podem não ser imediatamente identificadas com eles. O disco começa saborosamente com sax e trompete dialogando: "Bloomdido", um tema de Parker, que tem, infelizmente, solos breves demais de sax, trompete e piano (os ouvidos pedem mais e mais...). O entrosamento perfeito segue na mais balada "My Melancholy Baby", com a tensão voltando a crescer em "Leap Frog", com os sopros aceleradíssimos duelando de forma certeira. Se não bastasse ser um disco bastante inspirado, essa acabou sendo a única sessão em que Parker, Gillespie e Monk gravaram juntos. Precisa de mais?



THE QUINTET: JAZZ AT MASSEY HALL


Registrado ao vivo em 15 de maio de 1953, este disco é considerado um dos maiores clássicos do jazz. O quinteto reunido naquela noite no Massey Hall, em Toronto, agrupou nada menos que Dizzy Gillespie, Charles Mingus, Bud Powell, Max Roach e Parker (que apareceu no disco como Charlie "Chan" por razões contratuais). O dream team se focou em clássicos do bebop ("Salt Peanuts", "Hot House", "A Night In Tunisia") e levou à perfeição a execução de um estilo que ia ficando para trás no jazz, já com o cool/west coast em destaque e em breve sendo dominado pelo hard bop. A qualidade da gravação não é excepcional, tendo sido feita de forma semi-profissional por Mingus, que a lançou pelo Debut, selo que criou com Roach na época. O disco abre (ao menos na versão que tenho, há edições com sequências diferentes das faixas) com uma saborosa releitura de "Perdido", peça imortalizada pela big band de Duke Ellington. E é impossível não seguir ouvindo, ininterruptamente, encantando-se a cada peça que surge. Gillespie está especialmente vibrante no registro e Parker, tocando um saxofone de plástico, mostra seu melhor no solo de "Hot House". Este álbum é uma síntese de uma era e, em certo sentido, a sua conclusão.





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*quem assina:

Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com publicações como Entre Livros, Zumbido e Jazz.pt. Atualmente escreve sobre música e literatura para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live in Nuremberg”, de Perelman e Matthew Shipp (SMP Records)