CRÍTICAs O lendário quarteto
TEST ressurge em uma imperdível gravação inédita feita em 1999...
Por Fabricio Vieira
O free jazz teve na década de 1990 um período de muito intensa
atividade criativa. Alguns dos nomes centrais dessa música surgiram ou conseguiram
exatamente naquela década se estabelecer, como William Parker, David S. Ware,
Joe Morris, Matthew Shipp e Ken Vandermark. Esse também foi o período em que apareceu
um dos nomes mais cultuados do free da época: o quarteto TEST.
O TEST foi um grupo fortemente ligado ao underground. E não apenas pela
história de seu surgimento. Durante os anos em que durou, fez essencialmente apresentações em locais pequenos, estações de metrô e nas ruas, sempre nos
Estados Unidos, sendo que a maioria de seus (poucos) registros foi captada ao
vivo. Essa história ganha agora um epílogo com a edição de TEST and Roy
Campbell, registro inédito que traz uma apresentação que aconteceu em abril de
1999.
Formado pelo baterista Tom Bruno, os saxofonistas Daniel Carter e Sabir
Mateen e o baixista Matthew Heyner, o TEST começou a se apresentar lá para 95. E não tardou a se destacar na cena, com seu free jazz marcado por longas
improvisações coletivas, que iam do mais enérgico a possibilidades
contemplativas, normalmente desenvolvendo suas ideias por meio de longas peças.
O TEST esteve em atividade até o começo dos anos 2000, mas sua história está
intrinsecamente ligada à década de 1990. Não à toa, todos seus álbuns editados
são de registros feitos nos anos 90: Ahead! (98, Eremite/Father Yod), Test (99,
AUM Fidelity), Test (99, Ecstatic Peace), Live (2000, Eremite) e Always Coming
From The Love Side (2016, Eremite) – este último, captado originalmente em
novembro de 99. Por sorte nossa, o TEST acabou demarcando seu espaço e deixando
esses preciosos testemunhos (quantos com trajetória parecida não se perderam no
tempo e no espaço?).
A história do TEST não existiria sem Tom Bruno (1932-2012). Baterista
canadense de nascimento, que imigrou para os Estados Unidos na adolescência,
desembarcou em Nova York em 1972, atraído pela cena free que
borbulhava na cidade. Por lá criaria, em consonância com o espírito da época, o
“New York City Artists’ Collective” (N.Y.C.A.C.), coletivo que tinha a missão de
agitar encontros e concertos, viabilizar gravações e dar suporte para jovens
interessados em se aproximarem da free music. Por meio do N.Y.C.A.C. Records, gestada em paralelo, Bruno editou seu primeiro trabalho, "The Sounds of LIfe", em
76. Mas os duros anos 80, era Regan, que apertaram ainda mais a situação dos
músicos free, fizeram com que o projeto de Bruno se dissolvesse; cada vez mais
encontrando dificuldades para desenvolver sua música e por meio dela sobreviver,
o baterista viu uma oportunidade em meados da década de 1980 em um programa da
prefeitura de NY, o “Music Under New York”, que selecionava artistas que tinham
interesse em se apresentar nas estações do metrô. Uma vez aceito, o baterista
fez das plataformas do metrô seu mais importante e regular palco até os anos
90.
Curiosamente, seria no subsolo que o instrumentista encontraria o rumo
para seu renascimento. Foi por lá, nas estações de metrô, que travou amizade
com dois saxofonistas que se tornaram grandes parceiros e com quem montaria o TEST:
Daniel Carter e Sabir Mateen. Os dois saxofonistas, veteranos que tocavam
desde os anos 70 como Bruno, também enfrentavam dificuldades para desenvolver
sua arte à época, tendo nas plataformas do metrô e nas ruas uma forma de fazer
algum dinheiro. Mateen, nascido na Filadélfia, fez parte da Pan-Afrikan People
Arkestra, de Horace Tapscott, no fim dos anos 70. Mas desde que chegou a Nova
York, em meados dos anos 80, as coisas não estavam fáceis:
“When I came to the city, I had nowhere to live, so basically, my first
night in New York, I slept on the ground, right by the Port Authority. Then I
eased my way and I was sleeping in, I was basically homeless for a long time.
It was difficult to find work because when I came to New York, I was in my,
maybe, close to late thirties, so it was difficult to find work here and there.
I came to New York, I worked with a world music, reggae band. I was doing
things here and there. But I was playing on the street, which I started in LA.
I played the street for eight years in Philly, so I had that going and
basically my survival was playing on the street. Before I actually started
working steadily, basically, I didn't really start working steady until 93 or
94”, contou Mateen ao jornalista Fred Jung.
As gigs no metrô, onde se encontravam com regularidade, deram a
Bruno e Mateen a ideia de fazer um registro. Em 28 de fevereiro de
1995, foram a Grand Central Station e levaram microfone e um gravador DAT. Eram
12h48. Os 45 minutos de improvisação livre que se seguiram acabariam virando um
disco, “Getting Away With Murder”, editado pelo selo Eremite em 98. Antes dessa marcante experiência, Bruno e Carter, que também tocava pelas estações, planejaram montar um grupo. Antes de sua formação definitiva, lá para 93, Bruno, Carter e o baixista Dan O'Brian criaram o que seria o embrião do TEST. Levou um tempo para Mateen se juntar a eles, em quarteto, e alguns baixistas passaram rapidamente pelo grupo (Poki Hudgins, Artie Simmons, Dave Colding) antes de o posto ser assumido definitivamente pelo então jovem Matthew Heyner, um aluno de
William Parker com seus vinte e poucos anos. Com ele, o quarteto estava pronto. É difícil imaginar o que teria
sido a carreira desses artistas se o TEST não tivesse sido formado e alcançado
a repercussão que teve. Em 1995, quando o projeto está estruturado e pronto para acontecer,
Bruno já tinha adentrado os 60 anos de idade; Carter estava com 50 anos; e Mateen, com 44 anos.
Não que eles tenham ganhado “fama e dinheiro” com o TEST, mas o grupo, com sua
aura de mito underground, foi fundamental para (re)colocar seus nomes no mapa
da free music. Nos anos 2000, especialmente Carter e Mateen, se envolveram com
uma série de projetos e parcerias, gravando dezenas de álbuns. O TEST se reuniu
esporadicamente nos anos 2000, sendo a última vez em 2012, poucos meses antes
de Bruno, que sofria de Mal de Parkinson, falecer.
(TEST, Live - 1998)
Os registros que existem do TEST permitem ouvirmos o grupo em ação em um período não muito longo, que vai de 96 a 99. Do ano de 1999, quando fizeram sua última mais extensa turnê pelos Estados Unidos, há o registro editado em “Always Coming From The Love Side”, feito no Velvet Lounge, Chicago, no dia 13 de novembro, e agora este TEST and Roy Campbell, que traz a apresentação de 16 de abril de 99 que aconteceu no The Hinthouse, no Harlem (NYC). Este novo registro aconteceu em meio a um evento beneficente organizado por Lee Ranaldo e John Fahey para arrecadar recursos para arrumar a van quebrada da banda No-Neck Blues. O TEST encerrou a noite e recebeu um convidado especial: o trompetista Roy Campbell Jr (1952-2014). Amigo especialmente de Carter, com quem manteve o grupo Other Dimensions In Music, Campbell adicionou nova configuração ao grupo, que sempre tocou (ao menos é o que mostram os registros que temos) apenas em quarteto.
"Roy and Test were ungrounded. They broke the glass ceiling on
every hit, enriching the creative music community with manifest forward motion.
On this album, we hear what the spirit of ‘the music’ is, was, and forever will
be”, diz no release Matt Mottell, que gravou os shows daquela noite.
O novo álbum é formado apenas por uma extensa peça de 47 minutos. A
música começa com todo o quinteto em ação, improvisação coletiva direta, que não
dá tempo nem de os ouvidos esquentarem, chega com tudo. Campbell logo está no
centro; lá pelos dois minutos já adentra um solo acompanhado apenas por bateria
e baixo. Após alguns minutos, vem um breve solo de sax tenor e adentramos um
campo de alta energia, com o quinteto todo em ação novamente, que tem seu pico lá pelos
15 minutos da faixa. As faíscas baixam entre os 28 e 35 minutos, com clarinete,
flauta e trompete quase sussurrando, em um intermezzo para os novamente
explosivos 10 minutos finais. As grandes variações que a música do TEST oferece
têm no fato de Carter e Mateen serem multi-instrumentistas um ponto importante.
As variantes atmosferas apresentadas enquanto a peça se desenvolve vão
mudando com a alternância dos instrumentos: Carter toca saxes alto e tenor,
trompete e flauta; Mateen toca também alto e tenor, clarinete e flauta. Com a
adição de Campell neste registro, a música consegue ser ainda mais aberta e com
explorações harmônicas mais amplas, em um resultado de alta potência e
inventividade múltipla. Poder ouvir algo ainda inédito do TEST é poder provar,
com prazer renovado, um pouco do que de melhor o free jazz apresentou na década
de 1990.
TEST and Roy Campbell vai ser lançado oficialmente em CD no dia 4 de setembro de 2020, em edição limitadíssima de 100 exemplares, pelo selo 577 Records.
TEST and Roy Campbell *****
577 Records
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*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e
Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos;
foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com
publicações como Entre Livros, Zumbido e Jazz.pt. Atualmente escreve sobre
música e literatura para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os
álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of the
Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live in Nuremberg”, de Perelman e
Matthew Shipp (SMP Records)