Revisitando Anthony Braxton






CRÍTICAs  O incrível trio Thumbscrew revisita o universo composicional do gênio Anthony Braxton em seu novo trabalho...  






Por Fabricio Vieira


O Thumbscrew, um dos grupos mais excitantes da contemporaneidade, decidiu prestar uma homenagem à lenda Anthony Braxton em seus 75 anos de idade, completados um mês atrás. O  trio formado por Mary Halvorson (guitarra), Michael Formaneck (baixo acústico) e Tomas Fujiwara (bateria e vibrafone) se reuniu entre os dias 8 e 11 de setembro de 2019, no Mr. Smalls Studio, em Pittsburgh, para gravar este The Anthony Braxton Project. Para a empreitada  o quinto álbum do trio formado há quase uma década , selecionaram 9 peças compostas por Braxton em diferentes períodos de seu percurso, indo de "Composition No. 14" (escrita em 1970) a "Composition No. 274" (de 2000).
The idea was for us to choose compositions of Anthony’s, mostly early compositions, which hadn’t been previously recorded (or, in a couple cases, recorded only once or twice)”, diz Mary Halvorson no release de lançamento. “We chose pieces that captured our imagination and that we thought would work well for the instrumentation of guitar, bass, and drums or vibraphone. Our choices included graphic scores, complex notated pieces, and everything in between.


Todos os três instrumentistas têm uma ligação direta com Braxton em sua trajetória, tendo tocado, estudado ou estando envolvido em projetos dele. Halvorson, por exemplo, na única vez em que esteve no Brasil, em agosto de 2014, foi exatamente como integrante do "Diamond Curtain Wall Quartet" de Braxton. Com isso, o trio está mais do que pronto a não apenas visitar o universo braxtoniano, mas extrair o máximo que essas peças potencialmente oferecem. E o interessante é que temos a oportunidade de ver como cada um se porta individualmente diante desse cosmo sonoro. Isso é possível graças a "Composition No. 14". Escrita originalmente para instrumentista solista sem especificação, a peça é revisitada aqui pelos três artistas, cada um a executando uma vez. E a abordagem é bastante distinta, levando inclusive à variação temporal de interpretação (se os três tocassem juntos, teriam que rearranjá-la para chegar a uma forma de integrar as três leituras da composição): a versão da guitarra, a primeira a aparecer, tem 2m25; a da bateria, 3m32; e a do baixo, 3m04.
A lista de composições revisitadas pelo trio neste álbum, pela sua ordem de criação e formações originais, é:

*14- solo (1970)
*35- sintetizador e 2 instrumentos (1974)
*52- quarteto (1976)
*61- duo, piano e instrumento de sopro (1976)
*68- três instrumentos (1978)
*79- quarteto, piano e sopros (1978)
*150- creative ensemble (1990)
*157- duo, instrumento de sopro e baixo (1991)
*274- instrumentação livre (2000)

Curioso notar que nenhuma das peças foi composta para um conjunto de "guitarra-baixo-bateria". Todas as peças, assim, foram recriadas, repensadas, reorganizadas para as interpretações que formam este disco. Interessante ver como o trio buscou alternativas expressivas para adentrar e explorar o catálogo de Braxton. Para a releitura de "Composition No. 35", por exemplo, o sintetizador pedido no original foi substituído por um vibrafone. Esta peça forma junto com as composições 34 e 36 um conjunto chamado "Three Compositions", para as quais primeiramente era previsto piano, instrumento de sopro e tuba, mas que ganhou a indicação "sintetizador e dois instrumentos" após performance ao vivo neste formato.


Como Halvorson destaca em sua apresentação, a opção do trio foi por peças pouco ou nunca gravadas. Isso dificulta ou impede uma comparação entre as versões do grupo e alguma anterior que possa ter se atentado à formação instrumental pensada por Braxton quando desenvolveu as peças. "Composition No. 61" é uma que aparece como unrecord. Essa peça tem um tema bem marcado à guitarra, desses que vêm à memória depois com facilidade, abrindo as comportas para fulminantes intromissões de Halvorson e Fujiwara em um minuto final matador. Por outro lado, há temas bem gravados pelo próprio Braxton, como "Composition 52", que aparece nos álbuns "Six Compositions Quartet", "Quartet (London) 1985" e "Quartet (Santa Cruz) 1993", estes dois últimos registros com seu incrível quarteto que contava com Marilyn Crispell, Mark Dresser e Gerry Hemingway.

No caso da "157", apareceu em disco no álbum "Duets Hamburg 1991", com Braxton e o baixista Peter Niklas Wilson, com duas versões, variando entre 7 e 8 minutos. A versão nova do Thumbscrew é bastante enxuta, com apenas 2m20, sem muito espaço para improvisações, como ocorre na versão gravada originalmente por Braxton.  
Fujiwara usa vibrafone em outra peça, a "Composition No. 79", música em que concentra as atenções nos dois primeiros minutos, fazendo par com o baixo, antes de a guitarra ascender a primeiro plano no minuto final. Já "Composition No. 150" é a mais abstrata da série, com silêncios e certo pontilhismo marcando a evolução da peça, com o baixo em arco enquanto percussão e guitarra soltam sons aqui e ali. O caldeirão oferecido pelo trio, que apresenta o Braxton compositor representativo de três décadas, talvez alcance seu momento mais desafiador em "Composition No. 274". Essa peça faz parte da série "Second Species" do catálogo reunido sob a rubrica Ghost Trance Music (GTM), que ocupa mais de uma década de seu trabalho, entre 1995 e 2006. A Ghost Trance Music ganhou seu principal registro com o lançamento, em 2017, de "GTM (Syntax)", com nada menos que doze discos abordando esse seguimento da obra braxtoniana (mas, infelizmente, sem a 274 ser então executada). Em The Anthony Braxton Project, a "Composition  No. 274" é uma das que ganham as mais extensas explorações do trio. Com 6m11, apesar da integração coesa do trio, acaba deixando os ouvintes presos aos passos da guitarra, com Halvorson destilando uma repetitiva sequência, alternando escalas e velocidades, criando uma inebriante e hipnótica atmosfera, enquanto a bateria fraturada de Fujiwara dá corpo à peça. 
O Thumbscrew mostra aqui que o melhor da creative music não se faz apenas com energia e liberdade expressiva: domínio técnico e inventividade improvisativa são fundamentais para se alcançar o máximo que peças complexas, como essas de Braxton, têm a oferecer. The Anthony Braxton Project será editado em CD e em formato digital com lançamento internacional previsto para o dia 24 de julho.




The Anthony Braxton Project  *****
Thumbscrew
Cuneiform Records















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*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com publicações como Entre Livros, Zumbido e Jazz.pt. Atualmente escreve sobre música e literatura para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live in Nuremberg”, de Perelman e Matthew Shipp (SMP Records)