LANÇAMENTOs Novos álbuns de diferentes artistas da intensa cena free impro/jazzística de Portugal. Experiências variadas, possibilidades múltiplas. Ouça, divulgue,
compre os discos...
Por Fabricio Vieira
Solo Sessions IIII ****
João Almeida
Independente
Portugal conta com dois dos mais potentes e inventivos trompetistas da
atualidade - Susana Santos Silva e Luís Vicente – e é especialmente
interessante vermos surgir novas vozes vindas do país. Com seus 20 e poucos
anos, João Almeida faz sua estreia com este desafiador disco solo. Licenciado
em Jazz na Escola Superior de Música de Lisboa, Almeida, que é aluno de Peter
Evans, mostra que já tem uma direção bem estruturada e focada para desenvolver
a música que propõe. Solo Sessions IIII é realmente um álbum que pode ser
chamado de pessoal: provável fruto da quarentena imposta pela pandemia, o disco
foi todo executado, gravado e mixado pelo próprio artista em março deste ano,
no Bairro das Colónias, Lisboa (como informa o release). O álbum traz oito
temas em que temos a oportunidade de apreciar amplamente a técnica do
trompetista. As faixas são de duração variável, indo de 1m46 a 9m28, com os
tempos oscilando de acordo com as necessidades encontradas pelo músico para
desenvolver suas ideias. Se as técnicas estendidas fazem parte da estética de
Almeida, ele também se mostra interessado em desenvolver ideias nas quais certo
melodismo marca presença, como na tocante "Alternate", verdadeiro
contraponto à asfixiante "Points", com seus toques sussurrados que
vem e vão deixando os ouvidos meio sem saber para onde estão sendo levados. Já
"Train" provavelmente seja a melhor peça para descobrir o trabalho
desse jovem artista; com seus mais de nove minutos, não apenas dá um tempo mais
alargado para o ouvirmos sem interrupção, mas é onde ele melhor parece
apresentar as amplas possibilidades que pode oferecer com seu trompete.
akasa ****
João Sousa/ José Lancastre/ Jorge Nuno/ Hernâni Faustino
Partículo Records
Esse é mais um registro dos tempos atuais, reflexo da quarentena que
nos confinou em nossas casas, tanto lá quanto do lado de cá do Oceano. A ideia
partiu do percussionista João Sousa, que convidou, em março, José Lancastre
(saxes alto e tenor), Jorge Nuno (guitarra acústica) e Hernâni Faustino (baixo
e violoncelo) para a empreitada. Cada um em sua morada, os quatro músicos realizaram
esta sessão de improvisação livre aproveitando as facilidades e possibilidades
da tecnologia. Todos são músicos experientes da cena portuguesa e, só de ver o
nome deles reunidos, já se cria a expectativa de algo forte vindo. Para quem
conhece Lencastre, Nuno e Faustino de tantos variados projetos ligados à free
music, o resultado de akasa surpreende. Há, sim, algum tema com linhas mais
diretas e enérgicas, como "Quarto Crescente", com o sax tenor de
Lencastre faiscando. Mas a maioria dos momentos exibidos nas 11 peças que
compõem o álbum nos leva a mergulhar em outros universos, onde certo spiritual jazz
dos anos 60/70 marca presença. Não conheço bem o trabalho de Sousa, mas talvez
essa seja sua mão no quarteto pesando: além da ideia da gig virtual ter sido
dele, Sousa toca sitar, bansuri, feng gong, alimentando a atmosfera oriental
que marca, de um modo geral, o belo registro. Explica o release: "este
quarteto nasce em quarentena, desafiado a gravar os seus instrumentos com os
seus telefones ou dispositivos de gravação, para criar peças improvisadas como
um hino ao que parece ser aleatório, mas que se mostra como verdadeira
conexão".
In Igma ****(*)
Pedro Melo Alves
Clean Feed
Fazia algum tempo que não tinha notícias do baterista e compositor Pedro
Melo Alves, ao menos desde o lançamento de seu premiado "Omniae
Ensemble", de 2017. E eis que Melo Alves reaparece, e com um novo
ambicioso projeto: In Igma. Este é um trabalho que foi desenvolvido no verão de
2019, em meio a apresentações em diferentes palcos, partindo de uma encomenda
da Fundação Serralves para o festival Jazz no Parque. O compositor partiu de
uma pesquisa que passa pelo erudito contemporâneo e tem nas vias da
improvisação um importante canal. Para tanto, reuniu um fantástico grupo que
conta com Eve Risser (piano), Mark Dresser (baixo), Abdul Moimême (guitarra) e
as vozes de Aubrey Johnson, Beatriz Nunes e Mariana Dionísio, além de Alves na
bateria e percussão. Ou seja, temos basicamente, entre contrastes e interações,
duas sessões, a de vozes e a de cordas e percussão. Aqui o melhor é não
falarmos em faixas, mas em partes (cinco) nas quais se dividem a obra. Não sei
se Alves a concebeu assim, uma obra para ser ouvida de forma ininterrupta, mas
é dessa forma que soa. Parece um erro ouvir apenas um ou outro tema: In Igma é
uma composição para ser degustada sem
interrupções em seus quase 40 minutos de duração, percorrendo cada parte com
ouvidos focados, para não perder cada detalhe que faz o encanto do álbum. As
vozes têm papel de grande importância, muitas vezes trabalhando no núcleo dos
sons, em uma esfera fonética, além das palavras, em uma exploração poética que
nos abre universos encantatórios e oníricos. O piano de Risser é outro ponto
central. A artista francesa tem feito de seu instrumento um campo de exploração
sem limites e isso se encaixa com perfeição à proposta de In Igma. É tocante
vê-la protagonizando o final de "Organum", com um breve belo solo que
serve de transição a "In Igma II - On Meaning", que abre com delicadas
investidas ao teclado acompanhadas pela percussão. Pedro Melo Alves reafirma
aqui a poderosa impressão deixada antes em "Omniae", mostrando que
realmente é um compositor de refinadas ideias.
The Book of Spirals ****
Pedro Carneiro/ Ernesto Rodrigues/ G. Rodrigues / R. Pinheiro/ H. Faustino
Creative Sources
Pedro Carneiro, destacado percussionista ligado às vias eruditas, se
une aqui a quatro dos principais nomes da cena free impro portuguesa: Ernesto
Rodrigues (viola), Guilherme Rodrigues (violoncelo), Rodrigo Pinheiro (piano) e
Hernâni Faustino (baixo acústico). Carneiro esteve no Brasil em algumas
oportunidades, sendo a mais recente no ano passado, quando se apresentou com a
Orquestra Sinfônica Brasileira (RJ). Essa sua bagagem musical ajuda a fazer com
que novos horizontes sonoros se abram nesta gravação realizada em dezembro de
2019 em Algés, onde fica a sede da Orquestra de Câmara Portuguesa, idealizada e
comandada por ele. Munido apenas de marimba, Carneiro mostra nas três longas peças
(que vão de 13 a 22 minutos) que compõem o álbum também ser um fino
improvisador, em um rico diálogo de ideias que faz com que o quinteto exale a
precisão de um conjunto de câmara que há muito toca junto. A desafiadora música
elaborada pelo quinteto exige uma atenção de quem vai a uma sala de concerto:
os detalhes pinçados em cada instrumento, a construção lenta das peças, de rumos nem
sempre explícitos, a intromissão ora de uma corda, ora de uma tecla, surgindo e
desaparecendo no ar, o silêncio atuante como sexto elemento. É música para se ouvir com tempo e foco. E se
encantar.
The Darkness Of The Unknown
***(*)
Miguel Moreira
Carimbo Porta-Jazz
O guitarrista do Porto Miguel Moreira participou no ano passado de uma
residência artística promovida por Porta-Jazz e Guimarães Jazz. Foi nesse
contexto, que rendeu uma semana de trabalho ao lado de Rui Rodrigues
(percussão), Mário Costa (bateria) e do suíço Lucien Dubuis (clarinete baixo),
além do bailarino Valter Fernandes (do qual só sabemos da existência pelo texto de apresentação), que surgiu este álbum. The Darkness Of The Unknown,
captado em novembro passado, traz nove temas que apresentam, apesar da coesão,
propostas um tanto quanto variadas. Enquanto "How Do You Rehearse The
Unknown?" abre o disco de forma mais abstrata, com sons fantasmagóricos
indo e vindo, em modo mais climático, "The Monster II" apresenta algo
grooveado, com uma pitada fusion no tema desenvolvido pela guitarra. Já o
melhor fica com "Future Loops From The Past", peça na qual clarinete
baixo e guitarra conseguem travar seus diálogos mais intensos, com ataques e
respostas de grande versatilidade. Uma interessante amostra de outras
possibilidades que vêm sendo desenvolvidas na cena free impro portuguesa.
At ZDB, Lisboa 2006 ****
Carlos Zíngaro/ Vitor Joaquim
Independente
Somente agora este encontro de muitos anos entre os dois artistas portugueses
é editado. Carlos Zíngaro e Vitor Joaquim são dois veteranos da cena
experimental portuguesa e essa associação não poderia ser menos excitante.
Zíngaro é um dos pioneiros do free impro em Portugal, tendo iniciado suas
aventuras sonoras ao violino ainda no fim dos anos 60, com o grupo Plexus.
Joaquim, nome central da cena de Setúbal, é um multi-artista que trabalha com
eletrônica, filme, dança, instalações, em projetos de arte visual e sonora de
amplo alcance. Neste encontro do duo que aconteceu há 14 anos no espaço ZDB, em Lisboa,
temos cerca de 40 minutos de apresentação, divididos em quatro temas, de música livre que teve
como condutor um processo no qual Zíngaro ia improvisando com seu violino
enquanto Joaquim absorvia eletronicamente os sons com seu laptop, os desconstruía
e relançava o resultado no espaço, dialogando com os novos sons que as cordas ia
criando. Atmosférica e inebriante, a música gestada leva os ouvintes a uma
viagem sem linhas diretas ou melódicas para se apoiar, se perdendo em um
labirinto auditivo. O trabalho faz parte da "Live Series +" que
Joaquim tem editado a partir de arquivos de apresentações suas nunca antes
lançadas.
Recognition ****(*)
Sara Serpa
Biophilia Records
A vocalista e compositora Sara Serpa, natural de Lisboa e radicada há
mais de uma década em Nova York, apresenta este seu novo desafiador projeto, Recognition.
Para a empreitada, na qual se propõe a mergulhar na longa e impactante (em
múltiplos sentidos) presença de Portugal na África, com seus desdobramentos e
reflexos perversos que se estendem até hoje, montou um singular grupo como
Zeena Parkins (harpa), David Virelles (piano) e Mark Turner (sax tenor).
Partindo de arquivos Super 8 de sua família, especialmente de imagens de Angola
na década de 1960, quando o país ainda vivia sob o jugo colonialista
português, Serpa compôs um filme mudo, auxiliada pelo diretor Bruno Soares, e
depois criou o que seria sua contraparte musical, que é o que podemos ouvir
agora. Utilizando palavras e textos de diferentes nomes importantes ligados à guerra
colonial, como Amílcar Cabral, símbolo da resistência em Guiné-Bissau e Cabo Verde,
e o escritor angolano José Luandino Vieira, Serpa ora recita, ora narra, ora canta,
criando as linhas que vão conduzindo o ouvinte pela obra. "The
Multi-Racialism Myth", "Control and Oppression" e "Unity and
Struggle" são alguns dos temas que compõem o álbum, com os títulos
indicando o que a artista quis trazer para a mesa, revolvendo esse sombrio
capítulo da história portuguesa.
Maré *****
Luís Vicente
Cipsela Records
Este é um registro captado ao vivo originalmente algum tempo atrás.
Em seu primeiro disco solo, o genial trompetista Luís Vicente mostra toda a
amplitude estética da potente linguagem que tem construído e aprofundado
especialmente na última década. Maré se origina de uma apresentação na
"Anozero - Bienal de Arte Contemporânea de Coimbra", em novembro de
2017. O disco foi captado no Mosteiro de Santa Clara a Nova (curioso o par que
forma com outro lançamento da Cipsela, de 2015, um solo de Carlos Zíngaro
gravado no Mosteiro de Santa Clara a Velha, também em Coimbra). O espaço ganha inegável importância no resultado do registro,
com os ecos e reverberações que oferece fazendo com que a música alcance seus
contornos e brilhos finais. É como se Vicente travasse um diálogo consigo mesmo, ou
melhor, com os rastros que a música que vai sendo criada deixa pelo caminho.
São três os temas apresentados, em um total de quase 40 minutos, de uma música
que podemos ouvir repetidamente sempre encontrando detalhes novos. "Lage
Fria" abre o registro de forma mais letárgica, surgindo aos poucos,
aclimatando os ouvidos. "Rampa", na sequência, vem com uma proposta
mais melódica, de tom melancólico e nostálgico. Assim chegamos ao núcleo do
álbum, "Quebra Mar". Com seus 23 minutos, é onde Vicente apresenta
toda a potencialidade de sua encantatória sonoridade, soando profunda, tocante e de
inventividade sem amarras; mais do que nunca, as reverberações assumem papel destacado, fazendo com que nossos sentidos se percam, mergulhem em um universo
muito particular. E o poema de Fernando Pessoa que acompanha o release nos
remete a outras paragens: Tudo que vemos é outra cousa./ A maré vasta, a maré
ansiosa/ E o eco de outra maré que está/ Onde é real o mundo que há.
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*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e
Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos;
foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com
publicações como Entre Livros, Zumbido e Jazz.pt. Atualmente escreve sobre
música e literatura para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os
álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of the
Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live in Nuremberg”, de Perelman e
Matthew Shipp (SMP Records)