Há exatos oito anos, acontecia em São Paulo, na mesma noite,
praticamente ao mesmo tempo, três apresentações imperdíveis da free music...
Por Fabricio Vieira
O ano de 2012 foi um dos mais agitados na seara free jazz/free impro em
nossos palcos. Naquele ano, essa música ganhava crescente força na agenda de Sesc
e CCSP (Centro Cultural São Paulo), com artistas de diferentes lugares (muitos
pela primeira vez) vindo ao Brasil. Em 2012, tocaram no país Matana Roberts, Ken
Vandermark, John Zorn, ICP Orchestra, Roger Turner, David Torn/Tim Berne, Sun
Ra Arkestra e alguns mais. E no meio disso tudo ocorreu até algo inusitado e
inimaginável: Peter Brötzmann, Wadada Leo Smith e John Butcher tocando na mesma
noite! Sim, inacreditavelmente houve três shows simultâneos imperdíveis de free
music, mas tinha um problema: cada um deles tocou em um lugar diferente da
cidade de São Paulo naquela noite, o que obrigou os entusiastas dessa seara
musical a fazer uma difícil escolha: o que ver? Era 28 de julho, um sábado. A configuração
dos concertos foi essa:
*28 de julho de 2012 - São Paulo*
*No CCSP, às 20h, se apresentaram os britânicos John Butcher (sax) e Eddie
Prévost (bateria);
*No Sesc Belenzinho, às 21h, tocaram o saxofonista alemão Peter Brötzmann
e os britânicos John Edwards (baixo) e Steve Noble (bateria);
*No Sesc Vila Mariana, também às 21h, se apresentou o trompetista norte-americano
Wadada Leo Smith com o Golden Quintet (Susie Ibarra, John Lindberg, Anthony
Davis, Pheeroan akLaaf);
Quem conhece São Paulo sabe que seria muito complicado ver o concerto
de John Butcher e Eddie Prévost, que começava primeiro, e depois correr para
tentar assistir Brötzmann ou Wadada – nada é perto na cidade. Assim, não havia muito
o que fazer a não ser escolher um deles para ouvir naquela fria noite de julho
de oito anos atrás.
Olhando a agenda daquele fim de semana de forma mais ampla,
existia algumas alternativas para o público. Isso porque se o show de Butcher e
Prévost foi único, só aconteceu no dia 28/7, Brötzmann e Wadada tocaram também
na sexta, dia 27, e no domingo, 29. Em tese, então, era possível ver Brötzmann
ou Wadada na sexta, Butcher no sábado e Brötzmann ou Wadada no domingo,
considerando que a pessoa em questão tivesse tempo e dinheiro para ir nos shows
três dias seguidos. Mas mesmo quem tinha disponibilidade para isso não escapava
de ter de fazer uma escolha dura: Wadada Leo Smith trazia ao país sua nova obra, Ten
Freedom Summers; composta por mais de quatro horas de música, foi dividida em
três partes, sendo executada cada uma delas em um dia (sexta, sábado e
domingo). Ou seja, para apreciar a obra máxima de Wadada em sua totalidade era
necessário sacrificar o resto da agenda e reservar sexta, sábado e domingo
apenas para isso.
O contexto daquela época também deve ser lembrado. Brötzmann tinha
vindo ao Brasil apenas uma vez, em 2008, com o Full Blast (voltaria com esse
mesmo grupo em 2016 e 2018). Seu retorno era amplamente aguardado. Wadada nunca
tinha tocado no país (retornaria em 2014, coliderando um projeto com HPrizm). John
Butcher e Eddie Prévost nunca tinham vindo e não voltaram a tocar aqui. Como
ninguém sabia qual deles retornaria e quando, deve ter pesado muito nas
escolhas daquele fim de semana também a importância que a obra deste ou daquele
artista tinha para cada pessoa. Conheço quem optou por ver Brötzmann sexta,
sábado e domingo, por exemplo, deixando as outras opções de lado – eu, sob o
risco de ser convocado para um plantão no domingo, decidi ver Brötzmann na
sexta e Wadada no sábado; no fim, o plantão caiu e vi novamente Brötzmann no
domingo. E isso acabou sendo particularmente especial: no domingo, cheguei cedo
no Sesc Belenzinho, ainda tinha sol (o show começava às 18h), e encontrei Brötzmann,
sozinho, fumando um charuto encostado na grade, olhando as piscinas lá embaixo;
sempre receptivo, conversou amigável e atenciosamente, em um desses momentos memoráveis
reservados pelo acaso (sobre o concerto daquela sexta-feira, há esta resenha escrita
à época)...
A vinda de Brötzmann e Wadada se deu como parte de um festival, o Mostra
Sesc de Artes, que ocorreu entre os dias 19 e 29 de julho de 2012 em diferentes
unidades do espaço sócio-cultural. Talvez fosse um problema de agenda dos
próprios artistas, mas, se não, a curadoria vacilou ao colocar Brötzmann e
Wadada tocando no mesmo fim de semana. Afinal, o concerto especial trazido pelo
trompetista exigia que o público assistisse às três apresentações para ter
acesso à sua totalidade. E quem estava interessado no projeto de Wadada também
não ia querer perder os concertos do saxofonista alemão. As apresentações do
Ten Freedom Summers realmente foram um evento único: toda a potencialidade do
projeto foi levada ao palco do Sesc Vila Mariana, com um grupo de câmara se
unindo ao Golden Quintet, além do fino trabalho visual conduzido pelo videoartista Jesse Gilbert. O Ten Freedom Summers excursionou à época, em sintonia
com o lançamento do disco, mas é aquilo: quem viu, viu, muito difícil isso
voltar para os palcos e inimaginável acontecer por aqui de novo. Quem foi a ao
menos algum dos três concertos dele, vivenciou uma experiência estética
singular e pôde apertar a mão e trocar algumas palavras com o genial Wadada Leo
Smith, que fez questão de, terminada a apresentação, ficar na beira no palco recebendo
quem quisesse se aproximar. Sobre o concerto de John Butcher e Eddie Prévost,
infelizmente nada posso dizer. Apenas lamentar que aquela tenha sido a única
vez que eles estiveram ao país. De qualquer forma, aquele fim de semana de oito
anos atrás foi realmente marcante, especialmente se pensarmos que concertos de
free jazz estavam apenas começando a não ser algo muito raro na programação
artística local.
E você, que apresentação assistiu no dia 28 de julho de 2012?
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*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e
Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos;
foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com
publicações como Entre Livros, Zumbido e Jazz.pt. Atualmente escreve sobre
música e literatura para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os
álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of the
Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live in Nuremberg”, de Perelman e
Matthew Shipp (SMP Records)