LANÇAMENTOs Em destaque, discos
de artistas nacionais que exploram diferentes vias improvisativas e
jazzísticas. Ouça, divulgue, compre os discos...
Por Fabricio Vieira
Temas Para Tempos de Guerra ****
Conde Favela Sexteto
Independente
Vindo do ABC paulista, mais precisamente de Mauá, o sexteto Conde
Favela está na estrada desde 2009 e agora chega a seu disco de estreia. O
grupo, formado por alguns nomes bem ativos na cena paulistana, traz Alex Dias
(baixo), Diego Estevam (guitarra), Edson Ikê (trompete), Harlem Nascimento (sax
tenor), Mabu Reis (trombone) e Rafael Cab (bateria). O registro feito em
dezembro de 2019 no C4 Studio originou as cinco faixas que compõem este Temas
Para Tempos de Guerra, nome que não só ressoa a contemporaneidade do trabalho,
mas o liga aos combativos anos 60, do free jazz como voz de protesto. O free é
um dos elementos que fazem parte da expressividade sonora do sexteto, mas
podemos identificar outras vias de interesse do grupo, com linhas pós-bop
exercendo importante papel na apresentação das faixas, muitas delas focadas em
temas que se desenvolvem sem chegar a adentrar a esfera da improvisação livre – como "Zaíra", que inicia o
disco com um tema contagiante, quase cantarolável. "Cozinhando Galo"
também abre com um tema bem marcado, antes de mergulhar em passagens mais free,
energy, com sopros e guitarra em potente diálogo (Nascimento está especialmente
forte aqui). Em outro tom está a quase balada "Vira-lata Iluminado",
com profundo solo de trompete.
Formigaz Sessions - Vol. 01
***(*)
Naaxtro
Independente
Com uma formação que atua junto há cerca de uma década, o quinteto Naaxtro lança seu novo registro, Formigaz Sessions. Focado na criação espontânea
e coletiva, desenvolve sua sonoridade com perceptíveis elementos de jazz
contemporâneo (algo do melhor electric jazz setentista pode ser detectável
também), alguma experimentação ligada ao instrumental brasileiro e certa liberdade
free jazzística aqui e ali. Formado por Leandro Archela (teclados,
sintetizadores), Daniel Gralha (trompete), Cuca Ferreira (sax barítono), Iládio
Davanse (baixo elétrico) e Cacá Amaral (bateria), o quinteto registra temas de forte colorido,
sendo "Lamento das Rochas - Parte 1" o que traz os melhores
resultados do conjunto, com o sax mais furioso ao fundo, a bateria fraturada e
a linha do trompete atravessando o espaço (destaque para o belo solo de Gralha).
Outra faixa que merece maior atenção é "Atmosfera G4.8901b35 - Parte
1", bastante climática, com um melancólico tema no teclado a se repetir em
seus primeiros minutos enquanto o trompete alimenta um ar soturno. O Vol.
01 do título indica que novos capítulos estão por vir.
Gato Tosco ****(*)
J.-P. Caron / Bruno Trchmnn
Seminal Records
Quando ouvi este novo trabalho de J.-P. Caron e Bruno Trchmnn, dias atrás, coincidentemente andava escutando peças para cordas do romeno
Horatiu Radulescu. Sem muito pensar sobre, uma natural afinidade entre as peças me chamou atenção. Claro que lá (Radulescu) trata-se de obras
compostas, e aqui, de improvisação livre. Talvez seja a exploração
sônico-espacial, notável em ambos trabalhos, que criou essa ilusória ponte
possível (especialmente nos primeiros 18 minutos de "Gato"). Caron e
Trchmnn exploram apenas viola e violino amplificados, respectivamente, e
pedais. Mas levam o ouvinte a um espaço que parece por vezes tomado por outros instrumentos mais. A forma como as cordas reverberam, com sons ora alongados,
que parecem infinitos, ora centrados em repetições de notas que lentamente se
transformam, faz com que a experiência de escuta seja hipnótica e, por vezes,
mesmo física, com os sons parecendo prontos a atravessar o corpo. Gravado em
dezembro de 2018 em Campinas, este registro apenas agora vem a público,
deixando, até por sua breve duração (menos de 40 minutos), a vontade de ouvir
mais coisas do duo. Além da mais extensa "Gato", onde parecem estar
dadas todas as propostas do duo, há uma pequena conclusão, "Tosco".
Ela ****
Marco Scarassatti
Rata Sorda Rec
Quem conhece o trabalho do pesquisador e professor Marco Scarassatti
sempre fica curioso para saber que instrumentos irá explorar/criar quando surge
um novo disco seu. Scarassatti, incansável investigador de sons e desenvolvedor de
instrumentos, surge neste Ela de forma bastante centrada. A ficha técnica
indica que Scarassatti está sozinho e
munido apenas de um instrumento em cada peça. Mas nada é simples em sua música.
"Gbo", que abre o disco, traz o artista munido de viola de cocho
preparada e búzios (imagens da capa dão ideia do que se trata). A
viola de cocho, de origem portuguesa e que se tornou característica da região
mato-grossense, tem sido utilizada por Scarassatti em diferentes projetos,
tendo ele se tornado um especialista em tirar desse instrumento uma infinidade
de possibilidades sonoras. Trabalhando a viola de cocho de forma preparada e
com técnicas estendidas, em meio a explorações timbrísticas várias, oferece
sonoridades impensáveis quando vemos apenas a descrição da instrumentação do
disco. Na outra peça, "Odé", o músico vem com outra instrumentação:
pássaro-cocho e aguidavis. Trata-se de uma viola de cocho modificada, uma
criação do próprio Scarassatti, com a qual trabalha auxiliado por aguidavis
(varetas utilizadas em atabaques). As duas instrumentações até que não mudam
tanto à primeira vista, mas os resultados das duas peças são bastante
distintos. Lidando com a improvisação livre de uma forma bem particular,
Scarassatti tem criado um universo expressivo único.
---------
*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e
Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos;
foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com
publicações como Entre Livros, Zumbido e Jazz.pt. Atualmente escreve sobre
música e literatura para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os
álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of the
Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live in Nuremberg”, de Perelman e
Matthew Shipp (SMP Records)