CRÍTICAs Em novo disco para piano
solo, Matthew Shipp mostra o porquê de ser um dos artistas fundamentais da cena
contemporânea...
Por Fabricio Vieira
Matthew Shipp completa 60 anos de idade em dezembro de 2020. E não
poderia ser mais apropriado iniciar este ano com a edição de um novo álbum
solista. Com uma carreira iniciada em meados da década de 1980, Shipp desenvolveu uma
trajetória ininterrupta, cheia de parcerias memoráveis – com nomes como David
S. Ware, Ivo Perelman e William Parker, apenas para citar alguns fundamentais –,
projetos empolgantes e uma discografia com muitas dezenas de registros. Nesse
percurso, importante destacar dois formatos que tem explorado com maestria: o
trio de piano-baixo-bateria e o trabalho solista.
O pianista, nascido em Wilmington (Delaware, EUA) e radicado em Nova
York, lançou seus primeiros álbuns solistas, "Symbol Systems" e
"Before The World", em meados dos anos 90. Hoje, seus registros para
piano solo contam com cerca de uma dúzia de títulos, a destacar "One"
(2005), "4D" (2010), "Piano Sutras" (2013) e
"Zero" (2018). Esse corpus tem uma representatividade muito
particular dentro da discografia do músico, sendo fundamental explorá-lo para
compreender as transformações e a profundidade da arte de Shipp. O público
brasileiro teve uma única oportunidade de ver o pianista apresentando essa face
de seu trabalho. Tal evento ocorreu na noite de 19 de agosto de 2016, no palco
do Teatro do Sesc Pompeia (SP), quando Shipp nos ofereceu cerca de uma hora de
sua inebriante música cósmica, em apresentação editada em CD como "Ao Vivo
Jazz na Fábrica" (Selo Sesc, 2018) e reeditada na Europa como
"Invisible Light: Live São Paulo" (ezz-thetics, 2019). Quem escutar
esses discos para piano solo, desde seus primeiros exemplares de duas décadas e
meia atrás, verá uma linguagem em constante inovação, em busca de novos rumos e
possibilidades expressivas, mas mantendo uma coerência estética moldada em
elementos sonoros próprios, sempre a indicar que estamos diante de uma obra de
Matthew Shipp.
Neste percurso, o novo capítulo que nos chega, The Piano Equation, foi
oficialmente editado no dia 22 de maio, marcando a estreia do selo Tao Forms,
criado pelo baterista Whit Dickey para divulgar sua música e a de artistas
próximos a ele. Gravado no Park West Studios (Brooklyn, NYC) por Jim Clouse exatamente
um ano atrás, em 22 de maio de 2019, The Piano Equation apresenta 11 novos
temas para piano desacompanhado. Relativamente breves, entre 2 e 5 minutos – exceção
a "Radio Signals Equation", com 7m39 –, as peças recém-editadas
funcionam como um desdobramento de uma música que vem se desenvolvendo ao menos
desde "Piano Sutras", com Shipp concentrando suas ideias e oferecendo
soluções particulares para o instrumento, marcando as bases de uma arte que se revela
como um dos pilares da creative music de nossos tempos. The Piano Equation é um
álbum que muito bem explora as diferentes marcas da criação pianística de
Shipp. Tendo apenas peças suas, em improvisações criadas de forma contínua e
direta, em gravação em estúdio feita em uma tomada só, ilustra toda a
espontaneidade com que sua música nasce, a partir do que ele chama de comunicação com as ondas cósmicas – em uma execução um tanto quanto distinta do
concerto que vimos no Brasil, quando improvisou a partir de standards e temas
seus já conhecidos. Nesse processo, nos leva por vários rumos que marcam sua
música, podendo soar lírica, abstrata, melódica, agressiva, tecnicamente
apurada e livremente inventiva.
O álbum abre com a faixa-título, em roupagem mais introspectiva, sendo
uma entrada sem arestas, que aclimata e convida o ouvinte a seguir em frente
pelos quase 50 minutos que compõem o disco. Certa fragilidade vai emanar de
temas como "Piano in Hyperspace", a terceira do disco, mostrando uma de suas características vozes, representando verdadeira contraposição a
extremos potentes como o que surge no tema seguinte, "Vortex Factor",
faixa em que o dedilhado de Shipp parece estar em diferentes lugares do teclado
ao mesmo tempo, com acordes de alta tensão, duros, ecoando e atacando os
sentidos. À sequência, outra quebra, com "Land of the Secrets"
aparecendo mais reconfortante, de uma delicadeza fria que faz tudo silenciar no
entorno. É por meio desse jogo de ataque e afago que o álbum vai sendo construído.
Shipp não se furta de lidar também com elementos jazzísticos no
desenvolvimento de sua creative music, mesmo que não faça algo estritamente
enquadrável como jazz. Sua herança jazzística fica mais explícita aqui em
"Swing Note from Deep Space" e "Clown Pulse", temas nos quais
duas de suas sensíveis influências, Bud Powell e Monk, podem sem sentidas cá e
lá, em uma melodia que ameaça surgir ou em uma ritmicidade que adentra certas
passagens, com pontos quase swingantes. O álbum termina com uma peça chamada
Cosmic Juice. Trata-se de uma faixa em que o ouvinte é levado em ondulações para
cima e para baixo, com os acordes podendo crescer a ponto de marcar os picos
mais robustos do trabalho, quando os sons batem no peito (como ocorre lá pelo meio
da peça), adentrando logo depois uma atmosfera mais rarefeita, austera, de tensão
quase religiosa, com as notas esparsas ecoando repetidamente, explodindo uma
vez mais e recuando para encerrar em uma atmosfera mais contemplativa. "Eu
olho para qualquer criação do universo como ondas se unindo, e isto é o que
tento fazer na música, que seja um canal aberto para as ondas cósmicas, e tento
trazê-las para o piano. Pode soar pretencioso, mas é o que faço”, disse o
pianista em com conversa com o FreeForm, FreeJazz quando se apresentou no país.
Nada melhor que um novo disco de piano solo para adentrarmos uma vez mais a
arte cósmica de Matthew Shipp.
The Piano Equation ****(*)
Matthew Shipp
Tao Forms
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*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e
Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos;
foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com
publicações como Entre Livros, Zumbido e Jazz.pt. Atualmente escreve sobre
música e literatura para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os
álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of the
Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live in Nuremberg”, de Perelman e
Matthew Shipp (SMP Records)