LANÇAMENTOs Novos
álbuns de músicos vindos do Canadá. Experiências variadas, possibilidades múltiplas.
Ouça, divulgue, compre os discos...
Por Fabricio Vieira
Apesar de quem acompanha a free music poder citar um punhado de artistas
vindos do Canadá, me parece estranha a sensação de que conhecemos mais as cenas
escandinava ou japonesa, por exemplo, do que a canadense. Músicos canadenses são
conhecidos desde o início do free jazz, mas devido principalmente àqueles que
foram para outros países, como Paul Bley (1932-2016), no caso os EUA, e Kenny
Wheeler (1930-2014), na Inglaterra. Alguns se lembrarão também de Michael Snow,
multi-artista que trabalha com música, cinema, fotografia e instalação, tendo
dirigido o famoso "New York Eye and Ear Control" (64), filme que
recebeu trilha sonora de um incrível sexteto que contava com Don Cherry, Albert
Ayler e Sunny Murray. Snow é um nome seminal na cena canadense, tendo sido um
dos fundadores do CCMC (Canadian Creative Music Collective), grupo pioneiro da
free improvisation no país que contava também com os saxofonistas Nobuo Kubota
e Bill Smith e que deixou, a partir de 1974, diferentes registros.
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Lina Allemano, Andrew Downing, Nick Fraser, Brodie West |
Antes disso,
ainda na década de 1960, houve o Artists' Jazz Band (AJB). Formado por artistas
ligados ao expressionismo abstrato, músicos não profissionais, o AJB teria
apresentado seu pioneiro free jazz em público pela primeira vez em 1962 (há
registro discográfico do AJB feito no começo dos anos 70, com a participação de
Snow e Kubota). De pioneiros podemos citar ainda o Le Quatour de Jazz Libre du
Québec, do baterista Guy Thouin e do saxofonista Jean Préfontaine, que lançou
seu disco de estreia em 1969, e o The London Experimental Jazz Quartet, do
saxofonista Eric Stach (London aqui se refere a uma cidade de Ontário). Isso
sem falar no free noise do Nihilist Spasm Band. Ou seja, o free está presente
no Canadá desde os tempos iniciais do gênero e nunca deixou de produzir importantes
artistas. Na cena atual, chama atenção o número de destacadas mulheres
instrumentistas vindas do país, como as pianistas Kris Davis, Tania Gill e Marilyn
Lerner, as saxofonistas Karen Ng e Anna Webber, a trombonista Heather Saumer, a
violoncelista Peggy Lee e as trompetistas Lina Allemano e Rebecca Hennessy. Enfim,
a cena canadense está aí ativa há décadas, com nomes de peso no cenário da free
music contemporânea, e merece ser ouvida com atenção. Abaixo, uma seleção de lançamentos
que trazem artistas canadenses, tanto os que ainda vivem no seu país quanto
aqueles que partiram para o exterior. Boas audições.
Lift Off ****(*)
Mark Segger Sextet
18th Note Records
Formado em 2008 pelo baterista Mark Segger para tocar peças suas, este
sexteto baseado em Toronto tem feito música de grande potência e inventividade.
Junto a Segger nesta empreitada estão Tania Gill (piano), Heather Saumer
(trombone), Jim Lewis (trompete), Peter Lutek (sax e clarinete) e Rob Clutton
(baixo). As desafiadoras harmonias das faixas exploradas pelo sexteto são uma
das marcas fortes da música aqui apresentada (que já eram bem presentes em seu
disco de estreia, "The Beginning", de 2011). Lift Off é um trabalho
verdadeiramente de conjunto, com a música pensada para o grupo, quer seja em
sua estruturação, quer seja nos solos e improvisações coletivas. Isso fica
claro tanto em peças mais baladas, como "Cluttertone News", quanto
nas mais intensas, a destacar a forte faixa-título, uma das melhores compostas por Segger.
Counsel of Primaries ****
Rob Clutton Trio
SnailBongBong Records
O baixista Rob Clutton está na estrada desde a década de 90 e mantém em
atividade alguns interessantes projetos, como um duo com o saxofonista Tony
Malaby e o quarteto de Cluttertones. Seu mais novo trabalho aparece agora com este trio,
no qual é acompanhado pela saxofonista Karen Ng e pelo baterista Nick Fraser. Com
nomes bem ativos na cena de Toronto, o trio mostra uma apurada integração,
mesmo esta sendo sua estreia em disco. Counsel of Primaries traz 10 composições
assinadas por Clutton, que mostram uma música que não se furta de ser melódica,
elaborada antes de se abrir a improvisos mais livres. Um bom exemplo disso é a
faixa "Festival", que tem o sax em destaque, conduzindo primeiramente
um tema quase assobiável, acompanhado pelo baixo, antes de adentar um espaço
solista mais aberto. Mas há também material com mais tempero free impro, como a
faixa-título, em que os músicos parecem livres para explorar. "Thing
One", que dá bastante espaço para Karen Ng mostrar a que veio, é a melhor
do conjunto.
Resist ****(*)
Gordon Grdina Septet
Irabbagast Records
Gordon Grdina desenvolve uma música muito particular em Vancouver. O
artista, que toca guitarra e oud, desenvolve um free impro camerístico com o
qual gosta de trabalhar sonoridades da música árabe. Este seu septeto tem uma
especial formação, contando com o sax de Jon Irabagon ao lado dos canadenses
Peggy Lee (violoncelo), Jesse Zubot (violino), Tommy Babin (baixo), Eyvind Kang
(viola) e Kenton Loewen (bateria). Ou seja, é praticamente um quarteto de
cordas com sax e bateria trabalhando suas particulares composições. As cinco faixas do álbum compõem uma suíte,
sendo que ter tempo para ouvir o disco todo de uma vez é o cenário ideal.
"Resist" abre o disco com seus 23 minutos, em que somos levados por
uma viagem de complexas mudanças sonoras, iniciando com as cordas, que se mantêm
protagonistas durante quase cinco minutos, quando, após um ataque da guitarra,
adentramos um ponto mais free jazzístico, com sax e bateria trazendo nova
potência (clima que vai atravessar toda a faixa "Varscona", a mais
intensa do álbum), antes de nova virada. Já certa atmosfera oriental marcará
presença mais detectável no último tema, "Ever Onward".
Intention ****
Marilyn Lerner/ Ken Filiano/ Lou Grassi
Not Two Records
A experiente pianista Marilyn Lerner, de Montreal, tem construído uma
sólida discografia desde o início dos anos 90, na qual mostra seus múltiplos
interesses, indo do free impro ao jazz e passando pela música judaica. Com o
trio que montou há cerca de uma década ao lado de Ken Filiano (baixo) e Lou
Grassi (bateria) apresenta este novo registro. Intention, editado no fim do
ano passado, mantém a envolvente precisão sonora do álbum anterior do trio,
"Live at Edgesfest" (2016). São seis temas, gravados em novembro de
2018 no Michiko Studios (NYC). O disco abre com a faixa-título, a mais breve do
conjunto, na qual os ouvintes são convidados a adentrar o universo sonoro do
trio, já bem lapidado após todos esses anos juntos, que pode trazer momentos mais
melódicos entre outros mais ousados, com os músicos podendo recorrer a técnicas
expandidas no processo. "Eric's House", com seus 15 minutos, traz uma
boa exibição do talento de cada instrumentista, com momentos solistas dedicados
a cada um deles.
Bog Standards ***(*)
See Through 4
All-Set!
O See Through é um grupo comandado pelo baixista Pete Johnston. Criado há
alguns anos em Toronto, com artistas locais, tem formações variáveis, de duo a
quinteto. Aqui o vemos em formato de quarteto, com Johnston, Jake Oelrichs
(bateria), Rebecca Hennessy (trompete) e Karen Ng (sax) – estas, duas
instrumentistas envolvidas com diferentes projetos que merecem ser conhecidos. A
música apresentada é mais devedora de certa via free jazzística do que da
improvisação livre. "The Answer Is Slow" abre o disco com uma
atmosfera até algo bop. Na sequência somos encaminhados para um dos pontos
fortes do quarteto, o diálogo entre sax e trompete, muito bem representado na
faixa "Slim Margins". Já "A Little To The Left" foi feita
para os instrumentistas mostrarem um pouco do que podem melhor em momentos solistas.
Inland Empire ****(*)
Kris Davis/ Fredrik Ljungkvist/ Vagan/ Skarbo
Clean Feed
A pianista Kris Davis provavelmente seja hoje a mais celebrada artista do
Canadá dentro da free music. Nascida em 1980 em Vancouver, Davis já sedimentou
seu nome na cena com muitos projetos e parcerias de grande destaque. Neste novo
registro, a pianista aparece ao lado dos músicos escandinavos Fredrik
Ljungkvist (sax), Ole Morten Vagan (baixo) e Oyvind Skarbo (bateria). O disco
recém-editado foi registrado já há algum tempo, em setembro de 2016, na
Noruega. Com seis faixas, apresenta uma atmosfera free jazzística um tanto
quanto gélida às vezes, com a música começando quase que tímida com a breve
faixa-título, mas alcançando logo seu melhor ao surgir o tema "Truffle
Pigs and Katmandu Stray Dogs". Nesta peça, com solos justos de sax, Davis
tem generoso espaço para mostrar a amplitude de sua arte pianística. Já a mais
potente "Fighter" traz o seu melhor solo, com linhas realmente
envolventes extraídas do piano.
Fortunes ****
Ways
Lorna Records
Ways é um duo de Toronto formado por Brodie West (sax alto) e Evan
Cartwright (bateria). Para este Fortunes, registrado no Village Studio, em
Copenhague, receberam como convidado o pianista dinamarquês Simon Toldam. Fortunes
escapa da ideia convencional que costumamos ter ao falar em duo de sax e
bateria, pensando logo em energy music – não é este o caso. A música
desenvolvida por West e Cartwright traz
uma marca de free impro europeu, com o duo explorando sonoridades como a tatear
rumos sem ignorar a importância dos silêncios (a faixa "Luck" é
exemplar desse processo) e dando atenção à espacialidade. A participação de Toldam
não poderia ser mais precisa. Com suas técnicas expandidas, o piano (que por
vezes parece preparado, mas isso não é indicado) se integra perfeitamente à
proposta do duo. É uma música que gera estranhamento, mas que chama o ouvinte,
o leva a percorrer o disco todo sem interrupção. Há temas relativamente breves,
com seus dois minutos (como a sequência "Money I, II, III"), que
acabam antes de compreendermos totalmente o que aconteceu, para onde estávamos
indo. Então, talvez o melhor seja começar ouvindo "Health", com seus
13 minutos: se não for pego aqui, não há motivo para seguir em frente.
My Magic Dreams Have Lost Their Spell
****
Nick Storring
Orange Milk
Nick Storring é um artista de Toronto que tem no violoncelo seu
instrumento principal. Mas ele está aberto a investigações sonoras diversas,
como mostra este seu novo álbum, apresentado como uma homenagem à cantora
Roberta Flack – apesar de a música não remeter em nada ao trabalho dela, salvo
trechos de letras que inspiram os títulos das peças. O disco traz seis composições,
tocadas e gravadas em seu home studio entre 2014 e 2018, usando uma variedade
de instrumentos acústicos e eletromecânicos, com um muito discreto
processamento eletrônico (dentre os instrumentos estão violoncelo acústico e
elétrico, baixo, fender rhodes, um Yamaha CP60M Stage Piano, sinos, melodica,
percussão e por aí vai). Difícil o trabalho de identificar em cada peça os
instrumentos utilizados (e talvez essa não seja a ideia por trás do projeto),
mas é interessante saber, por exemplo, que "Tonight There Will Be No
Distance Between Us" foi criada primeiramente apenas no violoncelo
elétrico, explorado por meio de diversas técnicas. A música experimental apresentada
por Storring é bastante climática (vale notar que não se trata de free impro ou
free jazz), se desenvolvendo por entre paisagens sonoras e ambientações,
ruidagens sutis e uma atmosfera por vezes psicodélica.
Japan Suite ***(*)
François Carrier/ Masayo Koketsu/ Daisuke Fuwa/ Takashi Itani
NoBusiness Records
Provavelmente François Carrier seja o artista canadense que mais
apareceu no FreeForm, FreeJazz. Conheci o trabalho do saxofonista lá para 2012,
quando ele enviou alguns álbuns seus. Desde então, boa parte de seus
lançamentos foram resenhados aqui. Carrier, até onde sei, ainda mora em Montreal,
mas tem excursionado, tocado e gravado com gente de fora sempre que pode, como
mostra este novo disco. Fruto de uma excursão pelo Japão em dezembro de 2019, o
álbum traz Carrier (sax alto) ao lado dos locais Masayo Koketsu (sax), Takashi
Itani (bateria) e do experimentado baixista Daisuke Fuwa (da incrível
Shibusashirazu Orchestra). O registro, feito ao vivo no Yamaneko-ken, Saitama,
traz seis temas, improvisação livre que se desenvolve sem rompantes, com a
música surgindo no seu tempo. Um pouco do melhor alcançado pelo quarteto está
na faixa "Kacho-fugetsu", com boa interação grupal e solos (e
diálogos) mais ariscos dos saxes.
Rats and Mice ****(*)
Lina Allemano's Ohrenschmaus
Lumo Records
Trio formado em 2017 pela trompetista canadense Lina Allemano ao lado
do norueguês Dan Peter Sundland (baixo elétrico) e do baterista alemão Michael
Griener, o Ohrenschmaus apresenta seu disco de estreia. O álbum traz sete
composições de Allemano, que divide seus dias entre Toronto e Berlim, escritas
especialmente para o trio. "Year of The Eye", marcada pela batida
fraturada da percussão, abre o álbum de forma precisa, com Allemano atacando
solos justos, como fará durante todo o álbum, estando sempre presente, mas
nunca além do que a música demanda. Essa forte presença, sem ser invasiva, de
Allemano marca fortemente o trabalho. "Ostsee", com seu baixo cadenciado
e linhas envolventes do trompete, traz alguns dos mais saborosos momentos do
disco. "Hooray Norway" fecha o álbum com uma atmosfera sufocante, com
o trompete, agora com surdina, trazendo outras propostas. Um trio bastante
sólido, potente sem ser propriamente energy music, com muito a dizer.
Glimmer Glammer ****
Lina Allemano
Lumo Records
Este outro título lançado há pouco por Lina Allemano mostra diversas possibilidades expressivas da trompetista. Registro para trompete solo, Glimmer
Glammer é um veículo onde podemos ver a maturidade de sua arte. Discos
solistas, especialmente para instrumentos de sopro, exigem do artistas um
domínio elevado e profundo – dificilmente um instrumentista, com suas técnicas
e ideias, fica mais exposto do que em uma situação desse tipo. Com sólida
formação, tendo estudado trompete clássico e jazzístico, Allemano mostra-se
segura tanto criando linhas mais melódicas quanto explorando técnicas
expandidas. O ouvinte vai conhecendo seu universo por meio de diferentes rumos
sonoros. Se a primeira faixa, "Portrait of Sticks (for Nick)", se
desenvolve com vagar, com um tema repetitivo por entre o qual ela vai solando
sem pressa, à sequência tudo muda: "Clamour" é um labirinto de ruídos
alimentado por técnicas muito particulares exploradas por ela.
"Shimmer" é quase dolorida em suas reflexivas linhas (clima que
retorna no final do disco, com "One Man Down"). No meio do álbum,
está a faixa-título, a mais exploratória do conjunto, onde entendemos o
"trumpet, mutes & materials" que consta no encarte.
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*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e
Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos;
foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com
publicações como Entre Livros, Zumbido e Jazz.pt. Atualmente escreve sobre
música e literatura para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns
“Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of the Star”,
de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live in Nuremberg”, de Perelman e
Matthew Shipp (SMP Records)