LANÇAMENTOs Novos
álbuns de diferentes partes do mundo. Experiências variadas, possibilidades
múltiplas. Ouça, divulgue, compre os discos...
Por Fabricio Vieira
Amalgam ****
Ivo Perelman / Matthew Shipp
Mahakala Music
Quando colocamos hoje para tocar "Bendito of Santa Cruz", o
primeiro registro em duo realizado por Ivo Perelman e Matthew Shipp no longínquo 1996,
vemos o quanto a música feita por um artista pode se modificar. Com a mesma
formação (apenas sax tenor e piano) e sob
o mesmo guarda-chuva do free jazz, Perelman e Shipp pensam e vivem a
música de outra forma e, consequentemente, nos oferecem mundos sonoros
distintos. Lá atrás, havia temas e o cancioneiro popular pairando o trabalho
que desenvolviam. Agora, apenas a máxima liberdade, um diálogo construído no
momento, a arte da improvisação em sua melhor roupagem. Projeto constante e
muito frutífero, o duo Perelman-Shipp tem um punhado de belos discos editados – é necessário parar para contar, se quisermos enumerar os frutos da parceria.
Amalgam, nova gravação de estúdio da dupla, dá continuidade a essa discografia
que já forma um corpo próprio dentro da discografia de cada um deles. Mantendo
a característica de outros registros de estúdio do duo, é dividido em
diferentes pequenas peças, em um total de 12 temas, que vão de três a
cinco minutos (bem diferente dos discos ao vivo, que costumam ser desenvolvidos em uma única longa peça contínua). Pode soar repetitivo
dizer que a interação entre os dois atinge níveis telepáticos, como só acontece
com certas parcerias, e que as duas vozes trabalham de forma incrivelmente
conectadas, amalgamadas, marcas que são detectáveis desde ao menos "Callas" (2015), um dos
registros mais importantes do duo. Para quem tem acompanhado o trabalho deles, aqui temos mais um capítulo para avaliar seu desenvolvimento e transformação. Para os que ainda não
adentraram esse universo, está aí uma boa apresentação.
An Evening in Houston ****
Patty Waters
Clean Feed
Patty Waters é uma das figuras mais icônicas do free jazz quando se fala em canto. Ela surgiu na década de 1960 em um rompante, lançando dois discos impactantes pelo ESP-Disk em 1966 ("Sings" e "College Tour"), logo colocando seu nome dentre as maiores novidades do gênero então. Com uma proposta inovadora de canto, criou algumas das linhas vocais free jazzísticas que serviriam de referência para essa música no futuro. Mas já na década seguinte acabou por deixar de lado a carreira de cantora, que retomaria esporadicamente a partir da década de 90. Em anos recentes, tem feito apresentações e editado algum material. É empolgante vê-la trazendo um novo registro, por um destacado selo, acompanhada de antigos importantes parceiros. An Evening in Houston, captado em abril de 2018, traz Waters ao lado de Burton Greene (piano), Mario Pavove (baixo) e Barry Altschul (bateria), interpretando temas clássicos do repertório jazzístico ("Nature Boy", "Strange Fruit", "Lover Man"), free ("Lonely Woman") e um tema seu ("Moon, Don't Come Up Tonight"). Patty Waters está com 74 anos e, claro, sua voz não é capaz das proezas que a notabilizaram cinco décadas atrás. Mas ela encontrou uma via interessante para seguir cantando, com maior profundidade e emoção latente, conseguindo dar atraente roupagem a temas já tão gravados. Um disco em certo sentido soturno, de uma beleza noturna e bastante tocante.
Survival Situation ****
Sabir Mateen/ Patrick Holmes/ Federico Ughi
577 Records
O veterano saxofonista Sabir Mateen se une aqui aos mais jovens Patrick
Holmes (clarinete) e Federico Ughi (bateria) para criar uma música de
interessantes aberturas sonoras. Mateen toca sax, flauta e clarinete, como
sempre o vimos fazer, mas exibe também sua voz e experimenta teclados (farfisa
matador). É na primeira das quatro faixas que compõem o relativamente breve
álbum (sai apenas em vinil, colorido, em edição limitada) que Mateen explora
essas novas possibilidades. "Freedom of Souls", a mais extensa, com
seus 14 minutos, traz uma atmosfera afrofuturista, na qual o teclado tem grande
relevância climática. A peça abre com um melancólico tema ao clarinete, que
logo recebe, mais ao fundo, o acompanhamento de notas alongadas vindas do
farfisa, que vão crescendo aos poucos junto com a percussão, até chegarmos ao
clímax lá pelo meio da faixa, com os sons se elevando e a voz de Mateen entrando
em cena. Os outros temas são mais normais, digamos assim, com a improvisação
livre se desenvolvendo a partir dos dois sopros e da bateria (os teclados
voltam muito pontualmente), com bons momentos, como o diálogo de clarinete e
sax em "Carifying", seguido do melhor solo de Mateen no álbum, que
foi gravado no ano passado em Pisa, Itália, onde o músico tem vivido. A
versão digital do disco oferece uma faixa bônus.
Revoada! ****(*)
Radio Diaspora
Independente
Pouco tempo após o brilhante "Cachaça!", o duo Radio Diaspora
já está aí com título novo (afora este, foi editado neste ano ainda
"Caos!", com o baixista João Ciriaco, do Otis Trio). Revoada! tem um
ponto de apelo extra: aqui estão apenas Romulo Alexis (trompete) e Wagner Ramos
(bateria) em ação, após as diferentes parcerias que têm marcado o empolgante trabalho desta dupla. Oitavo título de estúdio, Revoada! mantém a linha
exploratória que marca a força estética do Radio Diaspora: a sopro e percussão,
são adicionados efeitos e samplers, que ampliam os significados e processos
expressivo-imagéticos criados pelos instrumentistas. Tudo isso para desenvolver
uma música "enquanto arma, campo de força e núcleo pesado de
representações e sentidos da luta contra violências físicas e simbólicas que a
população negra enfrenta secularmente". O disco já começa com uma porrada,
"MLK", em que a potência do duo está em suas voltagens mais elevadas.
Gravado em julho de 2019 no C4 Estúdio (São Paulo), o álbum traz 12 faixas.
Dessas, 6 são um tipo de intermezzo, com pouco mais de 1 minuto cada (exceção
de "Revoada 4"), sempre potentes, que funcionam como um chamamento ao
tema mais extenso que vem em seguida. Vemos esse esquema funcionar
perfeitamente logo na transição entre o primeiro tema e o terceiro, "Elza
Passos", que começa com um sampler da voz da cantora Rosa Passos. Mais um grande
trabalho deste que é um dos projetos mais inventivos e expressivos da cena
brasileira.
Crystalline ***(*)
Lisa Ullén / Johan Arrias / Angharad Davies
Ausculto Fonogram
A pianista sul-coreana radicada na Suécia, Lisa Ullén, começou a
trabalhar em trio com o saxofonista
Johan Arrias (um antigo parceiro seu) e a violinista britânica Angharad Davies
em 2014, projeto que culminou com um concerto no Cafe Oto (Londres) à época.
Depois se encontraram um pouco à frente, em 2017, e desde então passaram a trabalhar a ideia de gravar um disco. A culminação deste projeto vemos agora com
o lançamento deste Crystalline. Captado em setembro de 2018, em Estocolmo, o álbum
traz seis temas, com as autorias das composições se alternando entre os
instrumentistas. O trio funciona de maneira bastante integrada, com o coletivo
se sobrepondo aos virtuosismos individuais (é uma música mais dependente da
conversa entre eles do que de solos ou brilhos pessoais).
"Undercurrent" abre o álbum dando o tom do que virá, uma música feita
de detalhes, em que o (quase) silêncio como elemento expressivo tem importância
inegável. A potência até sobe um pouco aqui e ali, como em "Rituals",
mas nada que altere substancialmente a atmosfera.
Morph *****
Whit Dickey
ESP-Disk
O baterista Whit Dickey tem lançado discos com uma frequência maior nos últimos tempos – ele, que gravou pela primeira vez em disco em 1991, lançou
até hoje apenas cerca de uma dúzia de álbuns em seu nome. Após o brilhante "Tao Quartets" (AUM
Fidelity, 2019), sai agora Morph,
sua primeira gravação pelo ESP-Disk. Álbum duplo, traz Dickey em duo no
primeiro CD, ao lado do piano de Matthew Shipp, e em trio no segundo disco, com
a adição do trompetista Nate Wooley. Os discos, gravados em março e junho do
ano passado, podem ser ouvidos como complementares, parte 1 e 2 de um projeto
expandido. Os trabalhos abrem com uma peça, "Blue Threads", de sabor
mais jazzístico, swingante até. Mas, na sequência, "Reckoning" (que
peça incrível!) apresenta um ar mais abstrato, sombrio, indicando que percorrer o
disco poderá trazer diferentes surpresas. Em "Dice", o piano
hipnótico de Shipp, em toques ligeiros e pontilhistas, tem seu som abraçado pela
percussão detalhista de Dickey, em uma conexão absoluta, que mantém a tensão,
sem forçar, elevada até seu minuto final, quando as notas vão rareando até
desaparecer. O segundo disco tem a entrada de Wooley para ampliar as possibilidades já
inicialmente exploradas por Shipp e Dickey. E em trio, eles mantêm a força força
expressiva e inventiva, em temas que podem ser mais contemplativos (como a
encantatória "Noir 2") ou mais intensos, como "Pulse
Morph". Mais um inspirado disco que comprova a grande fase que Dickey
atravessa. O CD está programado para ser lançado no dia 29 de maio.
Purple Dark Opal ****(*)
Kuzu
Aerophonic Records
O novo registro do trio Kuzu, que reúne o saxofonista Dave Rempis
(barítono, tenor e alto), Tashi Dorji (guitarra) e Tyler Damon (bateria),
mantém a elevada potência que tem exibido desde seu concerto de estreia, que
aconteceu em setembro de 2017. Tendo aparecido em 2018 com um dos melhores discos daquele ano ("Hilljaisuus"),
o Kuzu apresenta improvisação livre de altíssima potência e inventividade
exploratória. Aqui ouvimos o trio em registro captado ao vivo em outubro de
2018, no Sugar Maple (Milwaukee), apenas uma extensa faixa de 55 minutos na
qual os três músicos alternam momentos de improvisação coletiva e destaques
individuais. A bateria aceleradíssima de Damon serve de catapulta ideal para os
diálogos de complexas linhas de Rempis e Dorji (ouça o que acontece lá pelos 36
minutos), que podem se revelar altamente intensos. Rempis é um dos grandes do
sax nesses tempos e merece ser acompanhado com atenção redobrada.
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*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e
Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos;
foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com
publicações como Entre Livros, Zumbido e Jazz.pt. Atualmente escreve sobre
música e literatura para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os
álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of the
Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live in Nuremberg”, de Perelman e
Matthew Shipp (SMP Records)