LANÇAMENTOs Novos álbuns de diferentes partes do mundo.
Experiências variadas, possibilidades múltiplas. Ouça, divulgue, compre os
discos...
Por Fabricio Vieira
More Music For a Free World ****(*)
Dave Sewelson
Mahakala Music
O saxofonista barítono Dave Sewelson é o que se pode chamar de um
músico underground – e isso dentro do universo já underground da free music. Em
atividade dede meados dos anos 70, o saxofonista vindo da Califórnia trabalhou
com músicos como Wayne Horvitz e Saheb Sarbib, além da Little Huey Creative
Music Orchestra, de William Parker. E Parker é exatamente um dos convocados
para este álbum que, em quarteto, conta ainda com o trombonista Steve Swell e o
percussionista Marvin B. Smith. More Music For a Free World é um segundo
capítulo do disco lançado, com o mesmo grupo, em 2018. Fruto de uma sessão
captada em 17 de dezembro de 2018, no Park West Studio, no Brooklyn (NY), More
Music For a Free World traz três extensas faixas, improvisação livre que
se desenvolve com muita energia e precisão. “Memories”,
que abre o álbum, é intensamente marcada especialmente pelos contrastes e
diálogos entre o barítono e o trombone, com Sewelson ofertando um solo de
grande vivacidade lá pelos sete minutos. Já ”Dreams”, a mais longa com seus 27
minutos, é um pouco mais relaxada, com pontos menos enérgicos, tendo em Swell
seus melhores momentos. More Music For a Free World é um forte trabalho a
engrandecer a ainda tímida discografia de Sewelson.
1983 ****(*)
Company
Honest Jon's Records
Projeto desenvolvido pelo guitarrista Derek Bailey (1930-2005) a partir
do ano de 1976, o Company buscava reunir anualmente, durante cinco dias, improvisadores de diferentes lugares, dando ênfase a encontros inéditos, para criar música nova e
compartilhar ideias. As Company Weeks tiveram atividades entre 1976 e 1994,
deixando pelo caminho encontros memoráveis e diferentes álbuns registrando as
experiências (parte editada, especialmente nos anos 70, pelo Incus). Neste
vinil duplo publicado pelo selo britânico Honest Jon's Records, temos resgatado
os encontros do Company em 1983. Participaram daquela semana de gigs nomes
então já centrais na free music dentre outros que iniciavam sua jornada: ao
lado de Bailey estavam Peter Brötzmann, Evan Parker, uma ainda jovem Joëlle Léandre, J.D. Parran , o
violoncelista Ernst Reijseger, o percussionista Jamie Muir, Hugh Davies
(eletrônicos), John Corbett (trompete) e o trombonista e compositor francês de
ascendência eslovena Vinko Globokar, nome referencial da música contemporânea. Os
dois vinis trazem um total de sete temas, sempre longas improvisações, entre 11
e 13 minutos, nas quais vemos a free improvisation de marca europeia em grandes
momentos. Importante documento histórico que vai interessar muito quem tem
gravações de outros anos feitas sob a marca Company.
Collective Calls (revisited) (jubilee) ****
Evan Parker / Paul Lytton
Intakt Records
Em 2019, o saxofonista Evan Parker e o percussionista Paul Lytton comemoraram 50 anos de amizade. Foi um pouco depois de se conhecerem, em 1972, que apareceu o primeiro registro em duo dos instrumentistas britânicos, “Collective Calls (Urban) (Two Microphones). Após cinco décadas de muitos projetos juntos, a dupla lança agora, pela Intakt Records, o disco Collective Calls (revisited) (jubilee), gravação que dialoga com/e homenageia aquele álbum do início dos anos 70. Captado em 29 de março de 2019 no Experimental Sound Studio, em Chicago, este novo álbum traz Parker (sax tenor) e Lytton (bateria) executando 11 temas. Aos 75 e 72 anos de idade – Parker e Lytton, respectivamente –, os dois instrumentistas confundem sua história com a da free improvisation europeia, estando envolvidos, ininterruptamente nessas décadas, com muitos dos projetos e artistas mais importantes de tal universo musical. A genialidade de ambos pode ser conferida em algumas centenas de álbuns, obra que tem uma síntese precisa e justa neste novo disco.
Incurso ****(*)
Entrevero Instrumental
Independente
O quinteto catarinense Entrevero Instrumental chega a seu
aguardado quarto álbum, Incurso. Fruto de uma residência artística no
Musibéria, em Serpa (Portugal), iniciada em setembro de 2018, o álbum traz dez
temas, nos quais ouvimos a intrigante e desafiadora música do quinteto, onde o
instrumental brasileiro dialoga com a música contemporânea e elementos do jazz
mais livre. Essa música, ao mesmo tempo complexa e envolvente, leva o ouvinte a
diferentes territórios sonoros, mas sempre por um caminho que se revela bem focado.
“As harmonias e melodias voltam a buscar possibilidades em ciclos de acordes
tonais, passando pelo polimodalismo até serem abandonadas em prol da composição
textural. As sínteses eletrônicas, que surgem a partir de timbres acústicos
processados, principalmente da caixa da bateria, são controladas e pontuais”,
diz a apresentação do álbum. O quinteto teve uma mudança em sua formação, com
Vinícius Lole (acordeon) se juntando a Arthur Boscato (violão de sete cordas),
Jota P Barbosa (sax), Rodrigo Moreira (baixo) e Filipe Maliska (bateria). Por
essa inusitada instrumentação passam tanto elementos regionais (do sul do país)
quanto avant-garde, em uma combinação de grande vivacidade, resultando em peças
geniais como “Entrevero de Adaga e 3D Printed Gun” e “Extropiado”.
From The Basement / Oréade ****
heArt Ensemble
Small Scale Music
O veterano percussionista Guy Thouin está ligado à cena avant jazz
canadense desde seus primórdios, ainda em meados dos anos 60, quando participou
da fundação do Quatour de Jazz Libre du Québec. Mais recentemente, ressuscitou
seu grupo dos anos 80, o heArt Ensemble, como um duo ao lado do saxofonista
Félix-Antoine Hamel. Agora temos a oportunidade de ouvir este projeto em ação em
dois discos editados pelo selo de Montreal Small Scale Music. O primeiro destes
registros, From The Basement, reúne diferentes gravações feitas entre 2015 e
2018, espécie de melhores momentos do duo, mostrando uma música de vigor e
energia, free jazz herdeiro dos melhores clássicos do gênero – basta ouvir
alguns instantes de “Black Hole”, que abre o álbum, para isso ficar claro (“Gravity”
é outro tema marcado pela energy music, desses que aquecem os ouvidos). Já o
segundo disco editado, Oréade, amplia as possibilidades sonoras com a harpista Marilou Lyonnais-Archambault se juntando a Thouin e Hamel. Aqui a música fica mais lírica, algo
melódica, com um ar jazzístico mais presente, como na peça “Ostinato”, que abre
o disco. O trio gera interessantes passagens como as de “Day Dream”, em que o sax
desenvolve arisco solo enquanto a harpa flutua em seu entorno. Há peças mais
enérgicas também, como “Industrial Jazz”.
O trabalho do heArt Ensemble mostra que há muita coisa interessante
rolando no Canadá que pouco chega até nós.
Bernardo Pacheco/ Thiago Barata ***(*)
Trem
Fábrica de Sonhos
Duos de guitarra e bateria costumam prometer música de grande
intensidade. E quando se vê os nomes que assinam este Trem, tal expectativa só
aumenta. O guitarrista Bernardo Pacheco (Elma, Dentaduro) e o baterista Thiago
Barata (Test) são nomes conhecidos da cena nacional, da improvisação ao rock
mais inventivo e potente. Aqui eles passeiam pelos campos de um free impro
mergulhado na ruidosidade, ofertando quatro peças de alta ruidosidade. Trem foi
registrado em dezembro de 2019 e, em formato físico, poderia ser um EP, com
seus cerca de 27 minutos. A divisão desse tempo é interessante, oferendo
uma oscilação na escuta para quem ouvir os temas sequencialmente: há dois temas
(“Harmonia” e “Recreio”) com 1 minuto e poucos, que funcionam como
abertura/intermezzo, seguidos de duas peças nas quais as ideias se desenvolvem de
forma mais ampla, “Túnel”, com quase 9 minutos, e “Fita”, o núcleo do disco.
Com mais de 15 minutos, Fita vai se desdobrando com vagar, atingindo já um pico
explosivo lá pelos seus 4 minutos, com a guitarra em sons circundantes que tomam
o espaço, impulsionada pela percussão de grande robustez, com riffs pesados e
repetitivos surgindo no caminho. Túnel traz outra proposta, com sons mínimos em
grande parte da peça, e intensidade maior apenas em seu desfecho.
Listo Listo Listo ****(*)
Violeta García/ Chris Pitsiokos/ Quebrada/ Lleras
TVL Rec
O saxofonista de Nova York Chris Pitsiokos, destacada nova voz do cenário free impro, esteve na América do Sul no
ano passado (infelizmente não passou pelo Brasil) e deixou alguns frutos pelo
caminho. De sua passagem pela Argentina saiu esta gravação agora editada.
Captada em abril de 2019 no Ideomusic (Buenos Aires), a sessão une o sax alto
de Pitsiokos ao violoncelo de Violeta García, uma das jovens vozes mais
interessantes da cena portenha. Completando o quarteto estão Carlos Quebrada
(baixo) e Juan Manuel Lleras (bateria). Em seis temas relativamente curtos, o
grupo apresenta um free impro de muita ruidosidade, com energia concentrada. O
breve álbum (cerca de 20 minutos) começa já com a intensa “EE” e não demora
para atingir o pico de potência em “AA”; aqui, a ruidosidade alcança níveis
bastante elevados, especialmente se pensarmos que o quarteto está centrado em
instrumentos acústicos. A turbulência segue em “YY” que, após uma pequena
abertura mais tateante, explode logo em seu primeiro minuto em picos de elevada
tensão sonora, que encontrarão seu ponto máximo em “KK”.
Fe *****
Duot
Repetidor
Em atividade há mais de uma década, o duo espanhol de sax (Albert
Cirera) e bateria (Ramon Prats) Duot apresenta seu novo registro. Fe traz seis
temas (todos chamados “Cúpula”); de sua capa ao título, indica haver certa
religiosidade/espiritualidade a rondar o trabalho. Mas, se há de fato isso por
trás da obra, trata-se de uma fé atormentada, que se perdeu e tenta-se
reencontrar. Tal clima emana da própria foto (feita por Prats) que ilustra a
capa, com o close da imagem da santa de olhos baixos e perdidos. Fe começa de
forma mais climática, sussurrante, deixando os ouvidos atentos à espera do que
virá – e não tardamos em mergulhar em vias de intensidade e urgência crescentes
(já centrais no segundo tema). Em "Cúpula 3", a atmosfera se torna
sombria, com climas quase de filme de terror, com percussão e sopro como que
nos sufocando em desesperante paisagem repleta de uivos e sombras. Assim,
somos arrastados até "Cúpula 4", o clímax, a faixa mais explosiva do
conjunto. Para fechar o álbum, "Cúpula 6" adentra novamente um espaço
soturno, de ares noturnos, em que a imagem da capa parece nos olhar por dentro.
Um álbum para ser ouvido no escuro e em silêncio religioso.
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*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e
Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos;
foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com
publicações como Entre Livros, Zumbido e Jazz.pt. Atualmente escreve sobre
música e literatura para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os
álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of the
Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live in Nuremberg”, de Perelman e
Matthew Shipp (SMP Records)