CRÍTICAs A trompetista
portuguesa Susana Santos Silva começa o ano com um novo belo disco do quinteto Impermanence...
Por Fabricio Vieira
Artista fundamental da free music contemporânea, a trompetista
portuguesa Susana Santos Silva tem desenvolvido uma sólida trajetória na última
década. Tendo iniciado sua discografia como “Devil’s Dress” (2011), conta hoje com
mais de 20 títulos editados, entre trabalhos como líder e colíder. A
multiplicidade dos projetos com os quais está envolvida permite que ouçamos
suas ideias navegando por vias variadas, do jazz livre à improvisação mais
abstrata, sempre com alta inventividade e apuro técnico.
Natural do Porto e
hoje residente em Estocolmo (Suécia), Santos Silva se iniciou no instrumento ainda
na infância, estudando depois trompete clássico e jazz na Escola Superior de
Música (ESMAE) e fazendo mestrado em Jazz Performance, em Roterdã. A
trompetista tem feito de tudo nesses anos, apresentando-se em todos formatos, do trabalho solista à participação em big bands, como a Fire! Orchestra, sempre gerando grande
interesse. “[O trabalho solista] Interessa-me, de facto, como uma oportunidade
de me desafiar, de correr riscos que me podem levar a sítios ainda por
explorar. Encontra-se o máximo de liberdade possível quando se toca a solo e
isso é muito interessante, até porque a liberdade total levanta outras
questões, nem sempre fáceis de resolver. Mas, na realidade, prefiro a
interacção com outros músicos. Para mim, improvisar passa, em grande parte, por
essa conversa com o outro, passa por descobrir o outro músico em cima de um
palco e, juntos, criarmos algo completamente novo, que não poderia soar igual
com mais ninguém”, disse Susana em entrevista ao FreeForm, FreeJazz em 2016.
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Photo: Joana Linda |
Para quem estava ansioso por novidades de Susana Santos Silva, boa
notícia é a chegada de um novo álbum, The Ocean Inside a Stone. O disco foi
registrado com o quinteto Impermanence, um de seus grupos em atividade atualmente.
O quinteto surgiu há alguns anos a partir de um convite feito pela Porta-Jazz
em parceria com o Guimarães Jazz Festival. A ideia era que Susana comandasse um
grupo com artistas portugueses e um convidado estrangeiro, além de compor peças
para o projeto – o estrangeiro em questão é o baixista sueco Torbjörn
Zetterberg, parceiro de Susana em vários outros projetos. O Impermanence
estrearia em disco em 2015, em álbum homônimo, para chegar apenas agora ao esperado
segundo título. Para esta nova empreitada, Santos Silva convocou os mesmos
músicos: João Pedro Brandão (sax alto, flauta, piccolo), Hugo Raro (piano,
sintetizador), Torbjörn Zetterberg (baixo elétrico, qraqeb) e Marcos Cavaleiro
(bateria). Se os instrumentistas são os mesmos, a exploração sonora se revela ainda
mais ampla; vale destacar que há uma instrumentação mais aberta em jogo (a
própria Susana toca, além do trompete, o tin whistle, uma pequena flauta de
metal), o que expande as possibilidades expressivas apresentadas e exploradas. O
registro foi realizado nos dias 22 e 23 de julho de 2019, no Groove-Wood
Studios (Porto). O resultado são quase 50 minutos de música, repartidos em sete
composições da trompetista.
O disco abre com “Expanded Life”. Com seus mais de 11 minutos, leva o
ouvinte a mergulhar no particular universo apresentado pelo álbum. De atmosfera
irresistível, a faixa abre com vigorosa bateria, acompanhada por baixo e
sintetizador, criando linhas de ar psicodélico sobre as quais o trompete
desliza, logo acompanhado pelo sax, em um tema cortante que se abre a um solo
do sax; essa primeira parte é rompida lá pelos cinco minutos, com um tema
minimalista dos sopros, que vai crescendo, acelerando e se desdobrando,
dominando a escuta daí adiante (sempre com a robusta bateria por trás), até o
desfecho, com o trompete e o sintetizador nos encaminhando com vagar rumo à
continuidade do álbum, fazendo dos últimos minutos algo bem climático.
“Wanderhopes” surge com vagar, como que dando continuidade ao encerramento
sereno do primeiro tema. Piano, trompete e flauta vão jogando fagulhas no ar,
indo e vindo, destilando uma embriagante atmosfera, subindo o tom
gradativamente, com piano e trompete ganhando algum protagonismo. Uma peça
encantatória. A faixa-título inicia com
uma abordagem mais ruidosa, com sons como que duelando, tentando encontrar um
rumo que, surpreendentemente, se abre a uma lírica e suave melodia, que se
estende até o meio da peça, quando nos deparamos com um tema quase circense,
nos remetendo a uma atmosfera de cabaré, algo bailante no ar, com um solo de
flauta contagiante. “Sweet Delusion” traz o vigor de volta, abrindo com uma
linha de baixo robusta, e os sopros em circular tema, que se desenvolve por
meio de cortes e retornos, por entre sons que vêm e vão, que ficam ecoando na
mente e nos ouvidos tempos depois. Após um breve intermezzo ao piano, “The
Drums Are Chanting, Or Is It the Trees” chega com pulso percussivo bem marcado,
com a flauta solando vigorosamente, nos levando a um ambiente distinto. Mais
uma virada nos aguarda na última peça, desnudando novos horizontes. “The
Healer” abre com um clima melancólico, de desfecho, de despedida, crescendo progressivamente
até explodir em seu meio, para depois ir desaparecendo, baixando nossa escuta e
nos levando ao fim do álbum. The Ocean Inside a Stone é um trabalho de grande
força expressiva, amplitude estética e maturidade criativa, que bem ilustra a
relevância da voz de Susana Santos Silva para o frescor da cena free
contemporânea. O álbum sai em versão digital e CD no
dia 8 de fevereiro.
“The Past Yet To Come is here now. Impermanent.
Feeding us of Sweet Delusions. Pregnant of ideas.
Pregnant of Wanderhopes. We are here now.
Hoping for the Expanded Life The Drums Are Singing.
Or Is It The Trees? Or is it the Ocean?
The Ocean, Says The Healer. The Ocean Inside a Stone.”
Feeding us of Sweet Delusions. Pregnant of ideas.
Pregnant of Wanderhopes. We are here now.
Hoping for the Expanded Life The Drums Are Singing.
Or Is It The Trees? Or is it the Ocean?
The Ocean, Says The Healer. The Ocean Inside a Stone.”
The Ocean Inside a Stone *****
Susana Santos Silva - Impermanence
Carimbo Porta-Jazz
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*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e
Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos;
foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com
publicações como Entre Livros, Zumbido e Jazz.pt. Atualmente escreve sobre
música e literatura para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os
álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of the
Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live in Nuremberg”, de Perelman e
Matthew Shipp (SMP Records)