CRÍTICAs Dois títulos do grande baterista Rashied Ali, captados nos anos 60 e 70, acabam de ser editados em vinil, iniciando um importante projeto de resgate da obra do artista...
Por Fabricio Vieira
Morto há pouco mais de uma década, Rashied Ali (1935-2009) foi um dos
nomes fundamentais da bateria free jazzística. Sua carreira, que começou a
ganhar destaque quando passou a tocar com John Coltrane no fim de 1965, foi
marcada por atividade ininterrupta até sua morte, deixando pelo caminho
parcerias com nomes vitais como Alice Coltrane, Marion Brown, Leroy Jenkins,
William Parker, Arthur Rhames, Charles Gayle, Peter Brötzmann e tantos mais. O
percussionista também liderou e participou de diferentes grupos e projetos em
sua trajetória, a destacar seu “Quintet” (em diferentes versões), o “Phalanx”,
com George Adams, nos anos 80, e o “Prima Materia”, na década de 90. Além de
uma carreira produtiva como baterista – deixou mais de cem álbuns com sua
participação pelo caminho –, Rashied abriu na década de 1970 seu loft-jazz club,
o Ali’s Alley, que, antes de fechar em 79, foi um dos pontos de fervura do
som radical do período. Ele fundou também um selo à época, o Survival Records,
para editar sua obra.
Quem acompanha a discografia de Ali terá agora a oportunidade de
descobrir gravações inéditas. A Survival Records acaba de (re)lançar dois
álbuns, trazendo material nunca antes editado. Em LP duplo, os títulos mostram
Ali no período em que foi começando a estruturar sua própria obra, após a morte
de Coltrane. O primeiro título (re)editado é o disco mais celebrado de Ali: Duo
Exchange. Registrado em 1972 no Watts Studios (NYC), este duo realizado ao lado
do saxofonista Frank Lowe (1943-2003) foi publicado no ano seguinte, marcando a
estreia do Survival Records. Hoje uma raridade, este vinil original chega a
custar mais de US$ 300. Fora de catálogo por muito tempo, Duo Exchange só
apareceria em CD em 1999, pelo selo Knit Classics. A versão original do álbum
não era muito extensa, contando com duas longas improvisações que somavam menos
de 30 minutos. A música é intensa e vibrante, sendo este um dos registros seminais dos duos de sax e bateria, que são um capítulo à parte no universo do free
jazz. Esta nova edição de Duo Exchange tem vários atrativos, trazendo muito
mais da sessão que aconteceu em 72. O LP que sai agora é duplo. O primeiro
vinil traz as duas peças que conhecemos das edições anteriores, “Exchance Part
1/ Part2”, acrescentadas de mais um alternate take de 4 minutos, além de
podermos ouvir Rashied Ali dando instruções sobre o que esperava da sessão e
conversando com Marzette Watts, engenheiro de som (conhecido também como
saxofonista) responsável pela sessão. No segundo disco, temos apenas material
inédito. Há, além de conversas de estúdio, fragmentos e takes incompletos, três
novas peças completas, com 12, 9 e 7 minutos. Para quem ouve este disco incrível
há anos (ou mesmo décadas), é sensacional poder ter acesso às sobras da sessão
e mais: os novos temas permitem que ampliemos o prazer que é escutar esse
diálogo vital entre dois nomes maiores da free music.
O outro título lançado agora é First Time Out: Live at Slugs. Captada
na primavera de 1967, esta gravação marca a primeira formação do Quintet de
Ali, que teria diferentes encarnações até sua morte. Rashied havia marcado duas
apresentações no Slugs na época final de sua parceria com Coltrane, em uma
iniciativa que pontuava o início do desenvolvimento de sua própria obra.
Para
estes dois shows, o percussionista convocou jovens instrumentistas: Dewey Johnson (trompete), Ramon Morris (sax tenor), Stanley Cowell (piano) e Reggie Johnson
(baixo), músicos talvez não tão lembrados, mas que fizeram parte da história do
free e do jazz: Cowell e Reggie Johnson, por exemplo, ainda vivos, tocaram e
gravaram com artistas como Marion Brown, Max Roach, Bobby Hutcherson, Archie
Shepp, Kenny Burrell, Charles Tolliver, só para citar alguns. E Dewey Johnson
(1939-2018) é uma dessas promessas que acabam tendo sua voz silenciada: tendo
gravado com ícones como Coltrane (em “Ascension“) e Paul Bley (“Barrage”)
quando ainda tinha 20 e poucos anos, acabaria progressivamente sendo menos
visto e ouvido; nos anos 70, circulou pela cena loft, tocando com William
Parker e Billy Bang, mas também foi nesta década que acabou ficando sem opções,
indo parar nas ruas, vivendo como sem teto (algo que se repetiria na década
seguinte). Há ainda algum registro de Johnson nos anos 80, ao lado do baterista
Paul Murphy e de Jimmy Lyons, antes dele desaparecer de vez, até surgir a
notícia de seu falecimento no ano passado... Voltemos a First Time Out: Live at
Slugs. No mesmo esquema que a nova edição de Duo Exchange, o álbum sai em vinil
duplo. Aqui estão quatro temas gravados no clube Slugs, todos com mais de 20
minutos e cada um ocupando uma face de um LP. A música ouvida aqui, mesmo
criada na efervescência da cena free jazzística de então, não renega traços
pós-bop, podendo ser até bastante melódica, como no tema “Ballade”, que está no
lado B. Sem mergulhar propriamente na energy music, mais palpável em Duo
Exchange, o concerto tem momentos de intensidade maior, como no saboroso solo
de trompete de Johnson em “Study for As-Salaam Alikum” (lado C), com seu sopro direto
e econômico escorrendo sobre a irresistível percussão multidirecional de Ali. A
música ouvida aqui remete a títulos que Ali lançaria nos anos 70 e funciona como um primeiro
capítulo do que encontraríamos em álbuns como “New Directions In Modern Music”
(73) e “Moon Flight” (76).
Os dois títulos marcam o início de um projeto de relançamento da obra
de Rashied Ali, conduzido por sua viúva, Patricia, com foco nos títulos da
Survival Records. Ao lado de Patricia estão no projeto o engenheiro Joe Lizzi,
responsável pela remasterização, o pesquisador Ben Young e o baterista George
Schuller. “This team has exhaustively catalogued Ali’s voluminous recording
library and will brig forward further treasures in coming years”, diz o
release. Que venham os próximos capítulos!
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*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e
Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos;
foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com
publicações como Entre Livros, Zumbido e Jazz.pt. Atualmente escreve sobre
música e literatura para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os
álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of the
Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live in Nuremberg”, de Perelman e
Matthew Shipp (SMP Records)