Ivo Perelman: no palco e no estúdio







LANÇAMENTOs  O saxofonista Ivo Perelman, sempre acompanhado do pianista Matthew Shipp, acaba de editar três novos álbuns, em duo e quarteto...







Por Fabricio Vieira


Alguns anos atrás, em conversa com Ivo Perelman, disse a ele que me chamava atenção a falta de álbuns gravados ao vivo em sua extensa discografia. Durante muito tempo, mesmo com seus lançamentos se ampliando rapidamente, víamos quase que como isolado o disco “Live”, antigo registro em trio ao lado de William Parker e Rashied Ali, feito no Knitting Factory (NYC) e lançado em 1997. Somente em anos recentes, no contexto da prolífica parceria com o pianista Matthew Shipp, os álbuns ao vivo começaram a demarcar um espaço mais palpável na discografia do saxofonista: em 2017, por exemplo, foram editados o duplo “Live in Brussels”, em duo, e “Live in Baltimore”, em que o baterista Jeff Cosgrove se juntou a Perelman e Shipp. Agora, dois novos títulos vêm preencher essa lacuna: Live in New York e Live in Nuremberg.

(Foto: Edson Kumasaka)
Em julho passado, o público brasileiro teve a oportunidade de poder assistir o duo formado por Perelman e Shipp no Teatro do Sesc Pompeia (SP), em duas noites (11 e 12/7). As apresentações finalizaram uma turnê que passou, desde o ano anterior, por Alemanha, Áustria, Bélgica, Holanda, Israel, Itália, Inglaterra, Rússia e Estados Unidos. É dessa turnê que saíram os dois novos títulos. Assim, quem viu os concertos no Brasil e ouvir os dois novos álbuns terá uma amostra interessante do percurso e dessa etapa expressiva do duo Perelman-Shipp. A música de Perelman ao vivo costuma se desenvolver de forma ininterrupta, uma grande sessão de improvisação livre com muitas nuances e variações. E não apenas nesse projeto com Shipp: o disco “Live”, de 97, também traz um único extenso tema, de 47 minutos; “Live in Baltimore” traz apenas uma peça de 51 minutos.

O fato de o palco resultar em músicas mais longas é uma coisa curiosa. Acho que estar ali rodeado por outras pessoas cria uma certa tensão no ar e a gente não quer interromper a história que desenvolvemos, queremos falar tudo o que precisa, do começo ao fim, e uma interrupção nesse processo é como se abrisse um diálogo com a plateia, dá essa impressão abstrata... A gente meio que entra no palco preparado para dar o recado inteiro do começo ao fim, ao redor de uma hora, mais ou menos”, afirmou Perelman ao FreeForm, FreeJazz em sua última passagem pelo país.

Live in New York foi captado em 5 de julho de 2019 no Happylucky No. 1, no Brooklyn, e traz 59 minutos de improvisação livre. A gravação, feita por um fã e remixada pelo sempre competente Jim Clouse (Parkwest Studio), traz um som cristalino, apresentando mais um capítulo do free lírico da dupla, bem conhecido por quem tem acompanhado o trabalho que eles têm realizado nesses últimos anos. Editado pelo Leo Records, o disco parece mais íntimo, provavelmente pelo local onde rolou a gig, uma galeria na qual tem acontecido muitas apresentações de free impro, sendo a que gerou esta gravação parte da The Stone Series. A música começa de forma bastante tocante, melancólica quase, com o sax desenvolvendo uma melodia de um lirismo dolorido, que arranha já alguns picos expressivos logo entre os três e quatro minutos, antes de embarcarem em passagens mais abstratas, que têm no solo de Shipp, lá pelos 11 minutos, importante momento.   


Live in Nuremberg (disco para o qual tive a honra de assinar as liner notes) traz um registro realizado duas semanas antes, em 26 de junho de 2019, no Kulturwerkstatt Auf AEG, durante o festival “The Art of Improvisation”. Sai pelo selo alemão SMP Records. Tem somente uma longa improvisação de 55 minutos (mais um pequeno bis), em que podemos sentir todas as nuances do diálogo da dupla, com sax e piano nos conduzindo por caminhos ondulantes repletos de surpresas, com momentos de lirismo entrecortados por arroubos dolorosamente expressivos (algo que pode ser sentido em sons como os que brotam lá pelos 16 minutos), podendo desembocar em tocante ponto melódico (como nos 18 minutos) e se desdobrar em passagens de maior vigor enérgico (como no pico atingido aos 26 minutos, com o sax rugindo logo após ligeiro solo de piano).
As diferenças dos dois álbuns são sensíveis e nenhuma descrição faz frente ao processo de ouvi-los sequencialmente, sentindo como que de uma noite a outra saxofonista e pianista desenvolvem rumos desafiadores aos quais ainda não foram expostos (nem eles, nem os ouvintes). As possibilidades oferecidas pelos grandes encontros de improvisação livre são assim mesmo: a cada vez, uma expectativa de assombro, a cada encontro, uma chance nova de investigar as linguagens abertas pelos instrumentos em meio à carga artístico-sonora que cada um deles carrega. Perelman e Shipp fazem desses encontros momentos de uma conversação precisa e profunda que pode oscilar entre passagens de maior melodismo, de conflitos narrativos que os levam a múltiplos campos expressivos e de picos enérgicos certeiros, que nunca chegam a saturar a escuta, baixando os ataques depois de seu efeito de estimulação estética ter sido alcançado. Quem quiser imergir nesse universo já dispõe de um extenso catálogo de duos, em sessões tanto ao vivo quanto em estúdio.



Ao lado desses dois álbuns ao vivo, que serão oficialmente editados agora em novembro, chega às prateleiras um terceiro título com Perelman e Shipp. Desta vez em quarteto, Ineffable Joy traz um grupo que conta ainda com William Parker (baixo) e Bobby Kapp (bateria), o mesmo grupo que gravou “Heptagon” (2017). Ineffable Joy sai pelo lendário selo ESP-Disk, pelo qual Perelman ainda não tinha gravado. Curiosamente, cinco décadas atrás um então jovem Bobby Kapp empunhou as baquetas no disco “In Search of the Mistery” (1967), estreia de outro grande saxofonista latino-americano pelo ESP-Disk, Gato Barbieri. Com oito faixas, Ineffable Joy foi captado em abril de 2018, no Parkwest Studio. O disco começa exatamente com piano e sax em primeiro plano, acompanhados por Parker, como se fizesse uma ponte para os ouvintes entre os discos em duo e este; “Ecstasy” abre o trabalho com linhas realmente bonitas trazidas por piano e sax tenor em seu início. O grupo mostra amplas possibilidades expressivas, alcançando pontos mais potentes e vibrantes, como em “Bliss” (que traz o melhor solo de Shipp do álbum) e na faixa-título, provavelmente com as passagens mais potentes do sax. Há ainda espaço para algo mais jazzístico, swingante até, como a atmosfera de “Jubilation” em seus dois minutos iniciais. Um quarteto refinado e de grande potencialidade expressiva.








Live in New York  ****(*)
Ivo Perelman/ Matthew Shipp
Leo Records


Live in Nuremberg  ****(*)
Ivo Perelman/ Matthew Shipp
SMP Records


Ineffable Joy  ****
Perelman/ Shipp/ Parker/ Kapp
ESP-Disk











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*quem assina:

Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com publicações como Entre Livros, Zumbido e Jazz.pt. Atualmente escreve sobre livros e jazz para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e Live in Nuremberg, de Perelman e Matthew Shipp (SMP Records)