CRÍTICAs Dois registros de 1964
do saxofonista Albert Ayler retornam ao mercado em nova edição: Spirits To Ghosts Revisited...
Por Fabricio Vieira
Há 49 anos, no dia 25 de novembro de 1970, Albert Ayler foi encontrado
morto boiando nas águas do East River, em Nova York. As circunstâncias da morte
de Ayler nunca foram devidamente esclarecidas, havendo diferentes
versões: suicídio, homicídio (haveria marca de tiro no seu corpo), acidente
(chapado, caíra no rio)... Na certidão de óbito, foi registrado: “Asfixia por
imersão – Morte por afogamento”. Foram o pianista Call Cobbs (que tocou em
diferentes oportunidades com Ayler) e o pai do saxofonista, Mr. Edward, que
fizeram o reconhecimento do corpo. O saxofonista estava desaparecido há umas
três semanas. Depois de uma briga com Mary Maria Parks, sua companheira nos
três anos anteriores, deixou a casa onde viviam. Passados muitos dias sem
notícia, ela procurou a polícia; pouco depois, seria avisada de que um homem
com as características dele fora encontrado. Morto.
Albert Ayler viveu apenas 34 anos, com uma história musical de menos de uma
década, iniciada com um registro feito em outubro de 1962 em Estocolmo, “First
Recordings”. Ayler lançou álbuns até o fim da vida, mas sua discografia cresceu
mesmo após sua morte, com edições várias de registros ao vivo e radiofônicos,
além de sobras de estúdio. O auge disso foi a edição do box “Holy Ghost”, em
2004, com 10 CDs de raridades, muita coisa realmente nunca ouvida antes. Mas o
que chama atenção em sua discografia é o número de reedições – curiosamente,
muitas vezes o mesmo disco com outro nome. Assim, o ouvinte desatento pode acabar
comprando discos que já tem. Exemplos de edições com nomes/capas diferentes e
mesmo conteúdo: “Spirits”, também editado como “Witches & Devils”; “First
Recordings”, que já apareceu como “Something Different!!!”; “Ghosts”, também lançado
como “Vibrations”; “Swing Low Sweet Spiritual”, que é o mesmo registro chamado
de “Goin’ Home”; e “1970 - Live”, que traz o show que também está em “Live On
The Riviera”.
Agora vemos chegar ao mercado uma nova reedição. Com o capricho dos
projetos ligados à gravadora suíça Hat Hut, sai Spirits To Ghosts Revisited. O
disco, lançado pelo novo subselo da Hat Hut, o ezz-thetics, dedicado a
reedições, traz dois registros feitos em 1964: Spirits e Ghosts. Em um único
CD, esses dois instigantes álbuns reunidos dão acesso a um documento importante
dessa etapa da obra de Ayler, que marca a entrada definitiva no universo do
free jazz. Quem já tem os discos não vai encontrar nada de novo aqui. Já quem
não tem, conta com uma boa oportunidade para completar sua coleção ayleriana. Spirits
e Ghosts foram gravados com poucos meses de diferença, com grupos distintos, e,
se são da mesma época, mostram trabalhos com sonoridades bastante particulares (vale notar: os discos foram realizados um antes e um depois da sessão que
gestou o seminal “Spiritual Unity”, em julho de 64).
Spirits, o mais antigo, traz um registro captado em 24 de fevereiro de
1964, no Atlantic Studios (NYC). Ao lado do sax tenor de Ayler estavam: Norman
Howard (trompete), Henry Grimes, Earle Henderson (baixos) e Sunny Murray
(bateria). A sessão rendeu quatro temas, conhecidos por quem acompanha a
obra de Ayler: “Spirits”, “Holy, Holy”, “Witches & Devils” e “Prophecy” (que
em algumas outras edições aparece como Saints). Os temas representam bem o free
jazz que Ayler desenvolvia no período, tendo no cortante trompete de Howard (um
dos nomes mais injustamente underrated da época) um elemento de muita potência expressiva,
que brilha especialmente na climática “Witches & Devils”. Ayler demonstra toda
sua inventividade na composição dos temas e em solos potentes, como o presente
em “Holy, Holy”, e exibe, em seu conjunto, uma música já muito característica e
com uma linguagem única, isso tendo ele à época apenas 27 anos.
Após a gravação do clássico “Spiritual Unity”, que foi feito em trio,
Ayler iniciou uma associação importatíssima no período, com o pioneiro trompetista/cornetista Don Cherry. Essa parceria se desenvolveu durante o segundo semestre
de 1964. Ao trio de “Spiritual Unity”, que contava com o baixista Gary Peacock e
Sunny Murray nas baquetas, se juntou Cherry – e foi o quarteto excursionar pela
Europa. Desse período saíram os álbuns ao vivo “The Hilversun Session” e “The
Copenhagen Tapes”, além deste Ghosts. Captado em 14 de setembro de 64 em
Copenhague (a contracapa registra erroneamente Nova York como o local da sessão),
Ghosts é um exemplar de grande vitalidade e força expressiva. Simbolicamente,
junta a primeira geração do free jazz (Cherry) à segunda onda representada por
Ayler. Com cinco conhecidos temas (Ghosts, Mothers, Vibrations, Holy Spirit e
Children), traz uma música madura e profunda, com picos energéticos e passagens
contemplativas, traços que marcavam a música de Ayler então. A parceria com
Cherry seria pontual, mas fundamental no desenvolvimento da estética ayleriana;
o passo seguinte foi a criação do incrível quinteto com seu irmão, Don Ayler. Ouvir
este grupo é obrigatório para sentir um pouco do melhor que o free jazz gestava
à época e entender alguns dos rumos que esta música tomou em seus tempos primeiros.
2020 marcará os 50 anos de morte de Albert Ayler. Mito maior do free
jazz, Ayler deve ter sua obra celebrada e revisitada sempre que possível. Reencontrar
(ou descobrir) estes registros é sempre um momento de vibração maior.
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*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e
Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos;
foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com
publicações como Entre Livros, Zumbido e Jazz.pt. Atualmente
escreve sobre livros e jazz para o Valor Econômico. É autor de liner notes para
os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of
the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live in Nuremberg”, de Perelman
e Matthew Shipp (SMP Records)