SUN RA ARKESTRA: mantendo o legado vivo







CRÍTICAs Em duas noites empolgantes, a Sun Ra Arkestra abriu o Sesc Jazz com ingressos esgotados e público arrebatado...






Por Fabricio Vieira

Mesmo sendo um projeto que começou sua história ainda na década de 1950 e tendo se mantido ativo desde então, a Sun Ra Arkestra apenas desembarcou no Brasil nos anos 2000. A primeira vez foi em 2004, no Chivas Jazz Festival; a segunda, em 2012, no Nublu Jazz; e agora tivemos a oportunidade de vê-los em ação pela terceira vez, em duas apresentações esgotadas rapidamente (terça e quarta) no Sesc Pompeia e uma última hoje (dia 10) no Sesc Jundiaí, sempre como parte do evento Sesc Jazz 2019.

Quando falamos em Sun Ra Arkestra falamos em legado, celebração, história, em manter a memória artística e cultural de Sun Ra (1914-1993) viva. A banda idealizada pelo pianista, tecladista e compositor Sun Ra para desenvolver suas ideias artísticas nos anos 1950 teve muitas variações de nomes em seu percurso: Solar Arkestra, Astro-Infinity Arkestra, Intergalactic Arkestra, Solar Myth Arkestra, Myth Science Arkestra, Outer Space Arkestra... A constante é o Arkestra, nome que faz referência a Noah’s Ark (arca de Noé): a função primordial da Arkestra era abrigar os espécimes escolhidos por Sun Ra para fazerem a travessia a seu universo. Ou seja, uma simbologia maior do que a de uma simples orquestra feita para tocar sua música. Antecipando certo espírito sessentista, foi concebida desde seu início como uma comunidade para o desenvolvimento de um projeto artístico, com todos vivendo e criando juntos, ideário que sobrevive até hoje, mais de seis décadas depois.

E o timoneiro desta arca nos últimos tempos é o saxofonista Marshall Allen, de 95 anos. Ele está no comando da Arkestra desde 1995, quando seu parceiro John Gilmore (1931-1995), que havia assumido a liderança da big band após a partida de Sun Ra, também morreu. O motivo central de Allen prosseguir com a Arkestra ativa é: manter a obra de Sun Ra acesa, se comunicando com novas gerações que não puderam ver o mestre em ação. Allen poderia apenas se manter como um saxofonista ícone do free jazz, um free improviser a quem não faltam oportunidades para tocar e gravar – algo que também faz; vale conferir recentes álbuns que lançou fora da Arkestra, como “Ceremonial Healing”, ao lado de músicos mais jovens como Jamie Saft e Balázs Pandi (RareNoise Records, 2019), ou “Night Logic”, trio com Joe Morris e Matthew Shipp (Rogue Art, 2010).
Mas Allen abraçou a missão de preservar a Sun Ra Arkestra viva. E vê-los em ação mostra o quanto a decisão é importante para essa música seguir pulsando. Allen começou a tocar com Sun Ra ainda em meados da década de 1950. Vemos seu nome em discos pioneiros como “Jazz in Silhouette” e “The Nubians of Plutonia” (1959): são seis décadas de história que fazem de Allen a voz mais autorizada a conduzir o legado de Sun Ra. E as apresentações da Arkestra procuram fazer esta conexão histórica, tocando também temas antigos que nos remetem ao melhor da criação de Sun Ra.

O público que lotou a Comedoria do Sesc Pompeia na noite de quarta-feira estava eufórico à espera do início do concerto, com muita gente reunida próxima ao palco antes de a apresentação começar. E a entrada dos músicos (mais de uma dúzia, enchendo cada espaço do palco, dispostos em duas fileiras mais a percussão ao fundo) mostrou que a empolgação era grande. Diferentemente de um show de rock/pop stars, o roteiro aqui é mais tortuoso, não apenas pelos espaços de improvisação, mas pela variedade temática que a Sun Ra Arkestra tem demonstrado a cada show nesta “Allen’s 95th Birthday Tour”, que começou em janeiro e já passou por EUA, Reino Unido, Polônia, Áustria, Hungria, Bélgica, Alemanha, Espanha, Suécia, França, Holanda, República Tcheca, Noruega, Finlândia, Dinamarca, Japão e agora Brasil. É claro que quem conhece a obra de Sun Ra fica à espera de temas mais conhecidos como “Space is the Place” e “Angels and Demons at Play”, mas um show desses está além de “hits”: sua magia vem do espetáculo em si, do todo que acontece no palco. E que espetáculo: quase 2 horas de música!

Poder ver Allen ainda tão vigoroso e intenso é surpreendente. Ele, que se mantém de pé durante quase todo o concerto, não só é o dono do toque mais cortante e marcante, como ainda comanda a big band, interagindo com os instrumentistas o tempo todo, fazendo a música crescer ou baixar em intensidade, convocando este ou aquele músico para solar, sinalizando para o outro silenciar e assim por diante. Seus solos são diretos e certeiros, mas Allen ainda tem fôlego para atravessar o espaço todo com seu sopro, centralizando as atenções nele. Allen não é o único veterano da banda, pelo contrário. Há sim uma nova geração, como a cantora Tara Middleton. Mas há também a velha guarda, com destaque para o saxofonista e percussionista Danny Ray Thompson, 72, na Arkestra desde meados dos anos 60, e o também saxofonista Knoel Scott, 63, que entrou no grupo no fim dos anos 70. A big band, formada por vários sopros (a trompa encanta o público que não está acostumado com esse instrumento mais ligado ao universo do clássico), pode soar swingante em um momento, atmosférica em outro ou adentrar picos de energy music. E o público responde com empolgação, dançando, cantando junto algum trecho que reconheça, vibrando (ou, alguns, mantendo desrespeitosas conversas paralelas, alheios ao momento histórico, como se estivessem em um bar com uma banda cover no palco, mas aí já é outra história...). Houve espaço para “Watch The Sunshine”, belíssima composição de Allen que faz parte do disco “A Song for The Sun” (99), que manteve o público na mão, mostrando que a Arkestra não precisa se fechar completamente nos temas criados por Sun Ra, podendo dialogar trazendo material novo (o que, aliás, poderiam fazer mais). Houve também comoção geral com a vibrante “Rocket Number Nine Take off for the Planet Venus”, vinda de seis décadas atrás para arrebatar o público com seu cântico repetitivo: Rocket Number Nine Take off for the Planet/ Venus/ Venus!/ Zoom/ Zoom! Mas o momento mais forte veio com mais ou menos passada uma hora de show: Astro Black. Um dos grandes temas de Sun Ra menos celebrados, Astro Black não costuma aparecer muito nos shows e conseguiu deixar o público em total silêncio, absorto, com o palco tomado por uma luz azul que ajudou a criar um ambiente único na noite de ontem.
Pode ser apenas uma impressão de momento, mas este concerto me pareceu muito maior, mais vibrante e intenso que o de 2012, que aconteceu no mesmo espaço do Sesc Pompeia. A Sun Ra Arkestra mostrou que permanece viva e relevante no universo free jazzístico e vê-los no palco é uma experiência realmente obrigatória. O Sesc Jazz 2019 abriu da melhor forma possível. Quem não viu, tem hoje a última oportunidade, no Sesc Jundiaí.


(Fotos: Taba Benedicto/Sesc)






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*quem assina:

Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com publicações como Entre Livros, Zumbido e Jazz.pt. Atualmente escreve sobre livros e jazz para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), e “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records)