Play it again... (América Latina)






LANÇAMENTOs  Em destaque, álbuns editados nos últimos tempos por artistas latino-americanos, com trabalhos vindos de Argentina, Uruguai, Peru, Colômbia e Brasil...
Ouça, divulgue, compre os discos...









Por Fabricio Vieira



Sallu  ****
Cecilia Quinteros/ Hernán Samá
Independente

Este duo argentino de violoncelo (Cecilia Quinteros) e sax tenor (Hernán Samá) traz dois dos nomes mais estimulantes da cena vizinha. Quinteros e Samá tem atuado nos últimos anos em diferentes interessantes projetos e é gratificante vê-los trabalhando em dupla. Gravado em abril de 2018 no Estudios Libres, Buenos Aires, Sallu traz 14 faixas, sendo o último tema, “Chhallcha” dividido em cinco partes. Com peças curtas, na média em torno de três minutos, o álbum mostra a força concentrada do duo, que explora de forma muito viva esse excitante formato que já rendeu parcerias memoráveis no mundo da free music, como Julius Hemphill/Abdul Wadud, Rob Brown/Daniel Levin e Brötzmann/Fred Lonberg-Holm. “Tinku” abre o registro de forma lenta, com os sons chegando aos poucos, aclimatando os ouvidos. “Allwi”, na sequência, vem mais impetuosa, com o violoncelo rascante cortando o ar. “Thaka” mostra algo mais melódico, com Quinteros alternando o arco pelo pizzicato em sua primeira metade (esquema que vemos de novo em “Yana”). O arco volta em potência máxima, com o sax o acompanhando de perto, na suíte “Chhallcha”, que já abre de forma fulminante, se revelando um potente desfecho.







Río Interior  ***(*)
Ramiro Zayas Grupo
Club del Disco

O pianista argentino Ramiro Zayas apresenta neste seu disco de estreia oito peças originais que, segundo o artista, retratam uma busca musical de vários anos. Acompanhado de um grupo sólido formado por Pablo Passini (guitarra), Hernán Cassibba (baixo), Omar Menendez (bateria) e a vibrante saxofonista Camila Nebbia, Zayas apresenta uma música que, partindo de elementos jazzísticos, se estrutura a partir de diferentes vias, influenciada por “cores impressionistas, Messiaen, o universo da canção argentina e a improvisação livre”. O resultado é de grande sutileza, uma música que se desenvolve sem rompantes ou gestos bruscos, lírica e por vezes tocante – destaques: em um extremo, “Lembrança”, onde podemos ouvir, sozinho, o melhor do piano de Zayas; na outra ponta, “Coral”, com o vivo solo de sax de Nebbia. Ao quinteto se unem em alguns temas o trompete de Sebastián Saenz, como em “Febrero”, e a doce voz de Lucía Boffo (“Shoro”).






New Improvised Music from Buenos Aires  ****(*)
Various Artists
ESP-Disk

Há tempos falamos da relevância da cena free jazzística argentina. E é gratificante ver que lá fora estão começando a ficar atentos a isso, especialmente um selo histórico como o ESP-Disk. Este New Improvised Music from Buenos Aires apresenta diferentes nomes da cena argentina contemporânea, sendo uma importante introdução a esse cenário que tem artistas com trabalhos tão estimulantes. Em 14 faixas, estão reunidos registros de músicos que quem acompanha o FreeForm, FreeJazz já teve a oportunidade de conhecer: os trompetistas Enrique Norris e Leonel Kaplan, as pianistas Paula Shocron e Fabiana Galante, os saxofonistas Pablo Ledesma e Luis Conde, o baixista Mono Hurtado e o baterista Pablo Díaz. Eles não tocam todos juntos; as faixas apresentadas foram captadas em diferentes contextos, trazendo duos (como Galante-Conde e Norris-Shocron), trios, peças solistas e o quinteto de Díaz. Inevitável não pensar em “Argentine Adventures”, coletânea em dois volumes organizada nos anos 90 pelo saxofonista britânico George Haslam para apresentar a música improvisada argentina, que trazia outra geração de artistas (dos que estão aqui, Hurtado, Ledesma e Norris apareceram lá também). New Improvised Music from Buenos Aires traz ainda um extenso encarte de 16 páginas, com liner notes assinadas por Jason Weiss. Uma crítica ao álbum: ao invés de repetir, com mais de uma faixa, alguns dos músicos, poderiam ter deixado um tema para cada e apresentado outros importantes instrumentistas da cena que ficaram de fora. De qualquer forma, uma boa apresentação do que está acontecendo no país vizinho.






Aglomerado de Seres Verticais   ****
Marco Scarassatti/ Marcos Campello
PMC

Este álbum marca o encontro de dois conhecidos nomes da música experimental brasileira, Marco Scarassatti e Marcos Campello. Artista sonoro, compositor e professor da UFMG, Scarassatti tem desenvolvido pesquisas com novos instrumentos e sonoridades, que já levaram seu nome também lá para fora (tem gravações editadas por selos como Creative Sources e NotTwo Records). O guitarrista Campello (Chinese Cookie Poets) tem levado seu som a diferentes projetos nos últimos anos, do rock ao impro – e isso não é ignorado aqui. Aglomerado de Seres Verticais reúne esses dois artistas em uma extensa improvisação de 28 minutos. Os caminhos percorridos por eles, se tem na free improvisation um guia, resvalam e exalam outras possibilidades sonoro-expressivas, onde alguns podem encontrar até certa brasilidade latente. A viola de cocho preparada de Scarassatti dialoga e duela com a guitarra de Campello, em uma construção sonora em que outros elementos (eletrônicos, objetos, noise) se somam para criar a paisagem à qual somos convidados a atravessar. Há muita intensidade presente, ruidagens inquietantes, há algum traço melódico captável – e nada soa superficial ou óbvio. Se o tempo do disco não é tão longo, essa quase meia hora de música se mostra suficiente, ideal, uma extensão que consegue manter nossos sentidos ativos o tempo todo. Ao vivo, em um espaço íntimo, um pequeno teatro, algo assim, a degustação dessa música deve proporcionar uma experiência ainda mais impactante.







MARV  ***(*)
MARV
Sinewave

Este quarteto brasileiro traz uma interessante experiência ao reunir, para uma sessão guiada pelas vias da improvisação, nomes de diferentes caminhos sonoros (free, rock, música brasileira, eletrônico, jazz). Ao baixista Rodrigo Gobbet, antigo conhecido de quem acompanha a cena local, se juntam Miguel Barella (guitarra), Victor de Trindade (percussão e voz) e Alex Antunes (sampler, percussão incidental e voz). A combinação desse heterogêno quarteto gestou quatro faixas, em cerca de meia hora de música. O amplo set de percussão brasileira e latino-americana de Trindade dá um colorido bastante particular à música, algo que tende a chamar a atenção de ouvintes lá fora. O baixo de Gobbet circula por vias improvisativas, caras ao trabalho de anos do instrumentista. Barella expolora diferentes pedais, trazendo sonoridades inesperadas e climáticas. E Antunes visita uma coleção de tapes de vozes processadas e manipuladas, além de objetos metálicos. Descrever a munição dos músicos envolvidos no projeto não deixa visualizar claramente por onde vai a união dessas forças distintas. Só escutando mesmo para entender o alcance da proposta. “Esqueci do que se Trata” inicia o disco como uma abertura mesmo, com vozes, uma batida ritmada que vai nos conduzindo, alguns ruídos indo e vindo. Depois de atravessar os pouco mais de dois minutos iniciais, desembocamos em “Apitando a Falta”, que logo entra em um campo de ruidosidades mais palpáveis, com o baixo sustentando uma linha sinuosa enquanto guitarra e percussão vão crescendo em potencialidade até o meio da peça, quando temos uma brusca virada de rumo. O trabalho com vozes se mostra mais relevante no último tema, “Feira/Dragão Chinês”, marcado por falas sampleadas de uma feira livre, que entrecorta a marcante percussão.





En vivo - El Paradero Cultural  ****
Trio Nuna
Kutra-Recs


O Trio Nuna vem do Peru e traz os instrumentistas Marco Mazzini (clarinete baixo), Teté Leguía (baixo) e Pedro Fukuda (bateria). Este álbum captado ao vivo no El Paradero Cultural, em Lince (Lima), apresenta três temas, que mostram formações distintas. O disco abre com uma faixa solista de Mazzini, de oito minutos, profundamenta intensa nas graves explorações do clarinete baixo. Na sequência, Leguía se une ao também baixista Rodolfo Rueda para um intrigante dueto. É apenas na terceira faixa que o Trio Nuna entra de fato em ação. Em uma longa exploração de 36 minutos, o trio apresenta inventivas linhas com destaque ora para um instrumentista, ora para o conjunto sonoro. Leguía, que esteve no país em 2017, durante o FIME, é um baixista de grande versatilidade improvisativa e tem se revelado bastante interessante ouvi-lo em ação. Mazzini também causa forte impressão, tirando um som cheio e profundo de seu clarinete baixo. Como trio, o Nuna se mostra em equilibrada e potente forma. Uma boa aposta para trazer a nossos palcos.







Resonancias  ****
Restuccia-Bogacz
Matador

O duo formado por Antonino Restuccia (baixo) e Santiago Bogacz (guitarra) vem do Uruguai e começa a levar sua música para o mundo. Este Resonancias foi gravado ao vivo em Loft, Köln (Alemanha), na primeira turnê da dupla pela Europa, em junho deste ano. São cerca de 57 minutos de música ininterrupta (editada em 12 partes), que mostra curiosas possibilidades timbrísticas, especialmente pela variedade de explorações conduzidas por Bogacz, que utiliza guitarras com cordas de nylon e aço, com uma sonoridade limpa, mas bastante desafiadora (como mostra logo de cara no primeiro tema). Restuccia, ainda jovem (nasceu em 1991), já é um baixista bastante sólido, com experiência internacional ao lado de nomes como a trompetista portuguesa Susana Santos Silva e o saxofonista argentino Carlos Lastra. Resonancias é a última parte de uma trilogia do duo ao vivo e talvez o seu melhor momento. Restuccia e Bogacz têm criado uma música realmente intrigante e que merece ser descoberta.








11hrs11min  ****
Santiago Botero
Independente

O baixista Santiago Botero, da Colômbia, apresenta aqui um desafiador projeto. 11hrs11min foi captado em março deste ano e mostra Botero executando um trabalho de improvisação livre com a duração indicada no título da obra (sim, 11 horas!). A música rolou continuamente, com pausas de 3 minutos a cada 57 minutos de música para o músico dar um respiro. “La reflexión iba en torno a las experiencias pasadas del improvisador en torno al silencio, la re-significación de este por todo lo que no es y una relación con la escucha del presente temporal”, é explicado no texto de apresentação da obra. Escutando a gravação, temos acesso apenas a uma ideia do que foi o evento ao vivo. Botero é um músico que explora técnicas expandidas e vê-lo em ação é fundamental para entender de onde emerge cada um dos múltiplos sons que tira de seu instrumento (vale conferir vídeos de concertos seus). Para quem pôde assistir a essa desafiadora apresentação (imagine apreciá-la em horários distintos, no começo e cinco horas depois, por exemplo, com os efeitos do esgotamento físico e mental sobre sua sonoridade), a experiência do disco deve ser diferente. Talvez seja interessante deixar as muitas horas de gravação, disponíveis no Bandcamp, rodando aleatoriamente durante todo o dia em casa...







El Contorno Del Espacio  *****
SLD Trio
Fundacja Sluchaj

O SLD Trio é um dos grupos mais interessantes que surgiram nos últimos tempos no free impro contemporâneo. Formado por Paula Shocron (piano), Germán Lamonega (baixo) e Pablo Díaz (percussão), o SLD chega a seu terceiro registro ainda com muito frescor. Explorando uma linguagem sensivelmente particular, o grupo de Buenos Aires tem ajudado a expandir as possibilidades do clássico trio de piano-baixo-bateria, uma das formações mais testadas na história do jazz. As linhas com que Schocron abre “Jiwasa”, entrecortadas pela percussão detalhista de Díaz, oferecem momentos realmente excitantes, que vão se desdobrando até o pontilhismo dos minutos finais. Como nos outros álbuns, há um tema em que podemos ouvir a voz de Shocron recitando um poema (“Transformación”). Entre peças de um ou outro músico (ou do trio em conjunto), encontramos uma desconcertante releitura de “Melancholia”, de Duke Ellington. Especialmente irresistível é “Maquina Verde”, que parece levar o som do trio a possibilidades novas, soando com explorações mais ligadas ao contemporâneo erudito, antes de explodir em um solo minimalista arrepiante do piano. “Caida Libre” fecha o álbum com muito vigor e intensidade, nos deixando à espera do próximo capítulo deste fantástico trio. 







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*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com publicações como Entre Livros, Zumbido e Jazz.pt. Atualmente escreve sobre livros e jazz para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), e “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records)