CRÍTICAs O tão aguardado Coin
Coin Chapter Four: Memphis, de Matana Roberts, finalmente é lançado e chega
como candidato forte para encabeçar as listas de melhores discos do ano...
Por Fabricio Vieira
Em maio de 2011, a saxofonista de Chicago Matana Roberts lançou uma das
obras seminais da década, aparecendo no topo de muitos Top 10 daquele ano:
Coin Coin Chapter One: Gens de Couleur Libres. Já bem conhecida por quem
acompanhava a cena free jazzística, especialmente pelo trio Sticks and Stones e
por seu quarteto, Matana virou a cena de ponta cabeça com seu ambicioso e
genial projeto que nascia com a promessa de alcançar 12 capítulos. Nos anos
seguintes vieram Coin Coin Chapter Two: Mississippi Moonchilde (2013) e Coin
Coin Chapter Three: River Run Thee
(2015). Depois, um longo silêncio... Mas quem segue o trabalho da artista sabia
que nesses anos todos ela vinha tocando esporadicamente em concertos partes dos
capítulos quatro, cinco e seis de Coin Coin – ou seja, o projeto se mantinha
vivo e em ebulição. E eis que finalmente agora temos mais um episódio de sua
saga pronto, com o recém-editado Coin Coin Chapter Four: Memphis.
Photo: M. Tarantelli
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Em conversa com o FreeForm, FreeJazz em 2012, a compositora
falou sobre sua obra máxima: “O projeto [Coin Coin] começou em 2005, graças a
uma bolsa concedida pelo Roulette Intermedium, de Nova York. Eu tenho um grande
interesse pela história americana e queria encontrar uma maneira de trazê-la ao
meu trabalho (...). Eu gosto de ser uma compositora e também de criar sons
conceitualmente. Acredito na liberdade sonora, mas realmente gosto de tocar
música que tenha ambas as ideias [composição e improvisação] funcionando juntas
o tempo todo”, disse Matana, sintetizando a ideia por trás do projeto.
Coin Coin era o apelido de Marie Thérèse Metoyer (1742-1816),
histórica personagem que sempre fez parte das conversas familiares dos Roberts.
Marie Thérèse viveu como escrava até seus trinta e poucos anos, tornando-se,
depois de conquistar a liberdade, importante figura na Louisiana, se
estabelecendo como destacada líder comunitária. Com família vinda da região,
Matana sempre teve a figura de Coin Coin como arquétipo de mulher forte na sua
casa, povoando as histórias que ouvia enquanto crescia. E por trás de seu
projeto Coin Coin está o resgate da memória familiar e da ancestralidade, algo
caro à múltipla sonoridade que encontramos na música desta série, passando por
elementos de jazz, folk, gospel, blues, spoken word, composição e improvisação,
em um complexo e inebriante resultado. Matana tem alterado a cada um dos
capítulos de Coin Coin a instrumentação, os artistas convidados envolvidos e as
formas exploradas para desenvolver suas ideias. E desta vez não é diferente.
Ao lado de Matana Roberts (sax alto, clarinete, voz e composição) em Chapter Four: Memphis estão antigos e novos parceiros:
Nicolas Caloia (baixo), Ryan Sawyer (bateria,
harpa), Hannah Marcus (guitarra, acordeon), Sam Shalabi (guitarra, oud), Steve
Swell (trombone) e os convidados em algumas faixas Ryan White (vibrafone),
Jessica Moss, Nadia Moss e Thierry Amar (vozes). Esse conjunto pouco usual é
utilizado com extrema desenvoltura e inventividade, se adequando e alternando
possibilidades de uma peça a outra – mesmo que todas as partes formem um todo e
o disco apenas se revele em sua potência máxima ouvido sem interrupções.
Como tem sido a tônica deste projeto, Matana conecta passado e presente,
falando de exploração, esperança, medo e júbilo, violência, ódio e segregação:
temas que inevitavelmente retornam, o ontem e o hoje tão entrelaçados, sempre tendo por
trás disso tudo sua própria posição/condição de mulher afro-americana. Na capa do álbum, está a
foto de uma de suas avós, que nasceu e cresceu em Memphis e contou muitas das
histórias que serviram de inspiração para ela criar esta obra. Utilizando
a voz talvez até mais que o sax, Matana canta, narra, rima, grita e nos leva
nessa viagem profunda, da qual não se sai ileso, espiritual e esteticamente. "Jewels of the Sky: Inscription" abre o disco com um tocante
solo de sax que nos convida a iniciar essa nova jornada por Coin Coin.
Uma personagem, uma protagonista nos guiará por todo o desenvolvimento
de Coin Coin Chapter Four: Memphis. Seu nome é Liddie. Ela é uma garotinha órfã,
os pais perseguidos, ele morto pela KKK, ela desaparecida, que nos acompanhará faixa a faixa. Liddie foi criada por Matana a partir das histórias contadas
por sua avó, histórias que vêm do fim do século XIX para se embrenhar em nosso mundo
atual. Racismo, segregação. Medo e ódio. Ontem e hoje.
Em algumas peças é mais palpável
a presença de Liddie, como em "In The Fold", em que o pai manda ela
correr ("Run, baby, run/ run like the wind") em um apelo para fugir
de seus perseguidores. Em "In The Fold", ouvimos Matana narrar de
forma circular e desconcertante, com as palavras indo e vindo e nossos sentidos
rodando com sua voz, com a figura de Liddie como que uma sombra que tentamos tocar
mas não conseguimos. Atordoante. "I am a child of the wind, even daddy
used to say so, we would race and I would always win. And he’d say run baby run, run like the wind,
memory is a most unusual thing"... E daí saltamos para um grito que abre de
forma explosiva "Raise Yourself Up", arrepiante, com a bateria
demolidora por trás e o sopro surgindo com uma melodia contagiante,
cantarolável, e a voz que retorna repetidamente mais ao fundo.
Antes disso, em "Trail of the Smiling Sphinx", já tínhamos
ouvido o refrão Run, baby, run/ run like the wind, mas ele não soava então tão
explícito em sua mensagem. "Trail of the Smiling Sphinx", a faixa
mais longa, com quase 10 minutos, soa como uma síntese do disco, com vários de
seus elementos surgindo, além de trazer o mais potente solo de sax da obra. O
sax está até que bem representado no disco, tendo diferentes momentos de
destaque, como em "Fit To Be Tied", que cita a conhecida peça
"The St. Louis Blues", de W.C.Handy (1873-1958), e especialmente em "How
Bright They Shine", com seu solo sutil e lindamente tocante, de um lirismo
dolorido que funciona como uma coda junto a uma atmosfera religiosa, que nos
leva ao desfecho da obra.
No dia 17 de novembro, Matana apresenta Chapter Four: Memphis no Roulette, em Nova York. Lá no começo do projeto, quando editou o capítulo 1,
Matana Roberts dizia que a ideia era no futuro apresentar todas as partes de
Coin Coin juntas, sequencialmente, montando o extenso painel sonoro-imagético
criado por ela. Isso ainda deve demorar, mas esperamos ter a oportunidade de
ver acontecer. E, mais uma vez, ficamos ansiosos à espera do próximo capítulo de
Coin Coin...
Coin Coin Chapter Four: Memphis *****
Matana Roberts
Constellation
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*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e
Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos;
foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com
publicações como Entre Livros, Zumbido e Jazz.pt. Atualmente escreve sobre
livros e jazz para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns
“Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), e “The Hour of the Star”, de
Ivo Perelman (Leo Records)