CRÍTICAs O lendário The Art
Ensemble of Chicago encerrou, na noite deste domingo, o festival Sesc Jazz em
grande estilo...
Por Fabricio Vieira
O Sesc Jazz 2019 teve nada menos que um concerto do mítico The Art
Ensemble of Chicago em seu encerramento. O grupo comandado pelo saxofonista
Roscoe Mitchell, de 79 anos, fez uma memorável apresentação no Teatro do Sesc
Pompeia no início da noite de domingo, após dois outros shows no evento, no
sábado (no mesmo espaço) e na quinta-feira (no Sesc Santos). Mais do que um
show, esta foi uma celebração dos 50 anos do grupo, um dos nomes basilares dos
tempos primeiros do free jazz. Mitchell, sempre preciso, acertou em, ao invés
de convocar novos nomes para substituir os integrantes já mortos do AEC, criar
uma nova formação e um novo contexto para celebrar a longa história da banda.
Isso começou com "We Are On The Edge", álbum editado em abril deste
ano em comemoração às cinco décadas do grupo. Para o disco, Mitchell montou uma big
band e colocou como subtítulo "Dedicated to Lester Bowie, Shaku Joseph
Jarman e Malachi Favors Maghostut", em homenagem a seus antigos parceiros.
Na sequência, saiu em uma turnê que se iniciou em Chicago e passou, antes de
chegar aqui, por Austrália, França, Suécia, Itália, Portugal e Holanda.
(foto: Samuel Junius Paul) |
O Art Ensemble of Chicago é um desdobramento de um grupo de
Mitchell, que no fim de 1966 passou a se chamar "The Roscoe Mitchell Art
Ensemble". Em 69, quando os integrantes estavam vivendo na França, mudou
seu nome para demarcar para o público europeu de onde vinham: nascia a marca
"The Art Ensemble of Chicago", pela qual ficariam conhecidos e
lançariam uma série de impactantes discos ainda naquele ano. Na época, o AEC
era um quarteto, formado, ao lado de Mitchell, por Lester Bowie (1941-1999),
Malachi Favors (1927-2004) e Joseph Jarman (1937-2019). A formação clássica,
como quinteto, nasceria em 1970, com a entrada do percussionista Famoudou Don
Moye, hoje com 73 anos.
O Art Ensemble of Chicago esteve no Brasil em algumas oportunidades: em
2000, durante o Free Jazz Festival, quando tocaram em São Paulo e Rio de
Janeiro, então com os fundadores Mitchell, Favors e Moye; em 2008, no Sesc Vila
Mariana (SP), em quarteto, mas já apenas com Mitchell e Moye; e agora em 2019,
como big band. Contam jornais da época que eles viriam pela primeira vez ao
país em agosto de 1980, com o quinteto completo, para o Rio Monterey Jazz
Festival. Mas as negociações teriam naufragado na última hora... O AEC deixou
de ser quinteto para voltar a surgir como quarteto em meados dos anos 90,
quando Joseph Jarman abandonou o grupo para estudar e virar monge budista. No fim
da década, veio a morte de Lester Bowie. E o AEC seguiu como "trio e
convidados", mas já com uma produção mais seletiva nos anos 2000, com seus
membros focando outros projetos. Se o grupo nunca foi de fato extinto, com a
morte de Favors as apresentações e gravações diminuíram consideravelmente,
voltando de forma mais ativa no ano passado, neste novo contexto.
(foto: Sesc) |
Para quem pôde ver o Art Ensemble of Chicago em alguma outra
oportunidade, ficaram mais marcadas suas características essenciais, mesmo que
não tenha presenciado o quinteto clássico em ação. Aos que que somente puderam
ver o grupo em ação agora, fica a atmosfera AEC ainda palpável e tocante. Mas
uma coisa parece clara: assim que Mitchell partir, o grupo se encerra. Se mostra difícil uma sobrevida, uma alimentação do legado da banda como acontece com a
Sun Ra Arkestra, até por não haver herdeiros. E parece improvável que Moye venha a assumir tal função: o AEC só existe ainda por Mitchell, que iniciou tudo
isso mais de cinco décadas atrás...
No palco do Sesc, o Art Ensemble of Chicago desembarcou com uma formação de 11 músicos, entre baixos (2), trompete, piano, trombone/tuba, viola, vocal e percussão. No centro de tudo estão, claro, Moye (bateria) e Mitchell (sax e flauta). Como esta não é a época clássica da banda, não vemos concertos tão abertos à improvisação livre e com picos enérgicos como ocorria especialmente nos anos 70 e 80. A música é mais atmosférica, uma viagem sonora praticamente ininterrupta em que os temas se unem sequencialmente e formam uma longa peça que vai se desenvolvendo com vagar diante de olhos e ouvidos atentos do público.
No palco do Sesc, o Art Ensemble of Chicago desembarcou com uma formação de 11 músicos, entre baixos (2), trompete, piano, trombone/tuba, viola, vocal e percussão. No centro de tudo estão, claro, Moye (bateria) e Mitchell (sax e flauta). Como esta não é a época clássica da banda, não vemos concertos tão abertos à improvisação livre e com picos enérgicos como ocorria especialmente nos anos 70 e 80. A música é mais atmosférica, uma viagem sonora praticamente ininterrupta em que os temas se unem sequencialmente e formam uma longa peça que vai se desenvolvendo com vagar diante de olhos e ouvidos atentos do público.
Na noite de
domingo, o grupo adentrou o palco do Sesc Pompeia e, com todos virados ao
poente, fez um minuto de silêncio, no que pareceu uma homenagem aos antigos
fundadores que partiram. Feita essa pausa reverencial, os músicos se dividiram em
dois grupos, um virado para o outro. De um lado, cordas e percussão; do outro,
sopros, piano e voz. Por cerca de 1h20, o Art Ensemble of Chicago manteve o
público absorto, em silêncio respeitoso. A apresentação começa com um toque
sutil em um sino por Mitchell, como que anunciando o início de uma celebração.
Com sua potente voz de barítono, acompanhado apenas pelo piano, o cantor
porto-riquenho Rodolfo Córdova-Lebron entoa a primeira peça, que funciona como
uma introdução de alguns minutos. Depois, os instrumentos vão entrando com
vagar, enquanto Brett Carson explora as cordas do piano.
Os primeiros 12, 13
minutos são realmente lentos e detalhistas, de toques sutis e atmosféricos, que
demandam concentração para serem apreciados. A percussão, tão emblemática na sonoridade
do grupo, ganha protagonismo apenas passados uns 30 minutos, quando o
percussionista senegalês Dudu Kouate assume o papel de mestre cerimonial, sobe em uma
plataforma, ficando em um nível mais elevado
que os outros, e entoa uma recitação que termina com uma exaltação ao grupo,
citando seu mote: "Great black music, ancient to the future: The Art
Ensemble of Chicago!"; daí passamos a ter os três percussionistas em ação, aos
quais Mitchell se une trazendo seu mais vigoroso solo ao sax soprano.
Roscoe Mitchell está no centro de tudo que acontece. É o regente, o idealizador, o líder das apresentações, apesar de ser muito generoso e não monopolizar as atenções (fica sempre muito discreto em seu canto, sentado em uma cadeira enquanto os outros tocam). Ao menos na noite de domingo, Mitchell se centrou no sax soprano (tocou apenas um pouquinho de flauta nos primeiros minutos do concerto) e inevitavelmente nos trouxe à memória suas incríveis apresentações solistas naquele mesmo espaço em 2013. O concerto do The Art Ensemble of Chicago provavelmente foi pensado para rolar sem pausas, mas os aplausos do público levaram a música a uma rápida parada aos 45 minutos, pouco antes de Córdova-Lebron retornar, recitando um poema (de grande intensidade declamatória), que nos conduziu à parte final do show, que fecha com “Odwalla/The Theme”, peça em que Mitchell apresenta os integrantes da banda. Difícil não ter saído tocado. Uma celebração digna da memória de Lester Bowie, Malachi Favors e Joseph Jarman. O festival poderia ter encerrado de melhor maneira?
Roscoe Mitchell está no centro de tudo que acontece. É o regente, o idealizador, o líder das apresentações, apesar de ser muito generoso e não monopolizar as atenções (fica sempre muito discreto em seu canto, sentado em uma cadeira enquanto os outros tocam). Ao menos na noite de domingo, Mitchell se centrou no sax soprano (tocou apenas um pouquinho de flauta nos primeiros minutos do concerto) e inevitavelmente nos trouxe à memória suas incríveis apresentações solistas naquele mesmo espaço em 2013. O concerto do The Art Ensemble of Chicago provavelmente foi pensado para rolar sem pausas, mas os aplausos do público levaram a música a uma rápida parada aos 45 minutos, pouco antes de Córdova-Lebron retornar, recitando um poema (de grande intensidade declamatória), que nos conduziu à parte final do show, que fecha com “Odwalla/The Theme”, peça em que Mitchell apresenta os integrantes da banda. Difícil não ter saído tocado. Uma celebração digna da memória de Lester Bowie, Malachi Favors e Joseph Jarman. O festival poderia ter encerrado de melhor maneira?
O que vem por aí (?)
Terminada mais uma edição do vital evento jazzístico promovido pelo
Sesc, que teve sete realizações sob a rubrica Jazz na Fábrica e agora duas como
Sesc Jazz, já ficamos especulando quem poderiam ser os nomes do próximo ano,
quando será realizada sua 10ª edição. No ar, há o real temor de que a política
anticultural do governo acabe por asfixiar o orçamento do Sesc, o que poderia se
tornar um grande problema para estruturar um evento desse porte, imaginamos... Mas vamos manter a esperança de que o festival
retornará no ano que vem nos surpreendendo com uma seleção ampla e ousada do
universo do jazz, como nos acostumou nesses últimos anos. A edição de 2019
esteve especialmente vibrante, com a vinda de diferentes nomes da seara free jazzística, com destaque para os veteranos John Zorn, Art Ensemble of Chicago, Sun
Ra Arkestra e Maggie Nicols com o Women’s Improvising Group: quando imaginaríamos
que passariam em nossos palcos, sequencialmente, tantos nomes incríveis! Saindo
do campo do free, tivemos ainda nomes historicamente importantes como Gary
Bartz e Arturo Sandoval, além de destacadas figuras contemporâneas, como o
baterista norueguês Gard Nilssen e o trompetista israelense Avishai Cohen. Um
evento amplo, diverso e bem arquitetado.
Dando uma olhada nos nomes que passaram pelo festival do Sesc desde sua
1ª edição, em 2011, a lista de figuras centrais do avant-jazz que estiveram ali
é surpreendente: Anthony Braxton, William Parker, Muhal Richard Abrams, Nate
Wooley, Fire!, Globe Unity Orchestra, Fred Frith, Matthew Shipp, Henry
Threadgill, a maioria trazendo sua música pela primeira vez ao país. Logo
pensamos em muitos outros que poderiam se juntar a essa lista, como os
veteranos Charles Gayle, Evan Parker, Irène Schweizer e Marilyn Crispell, ou nomes que fazem essa música acontecer no século XXI, como Peter Evans, Mary Halvorson, Matana Roberts, Tomeka Reid, Tyshawn
Sorey e Nicole Mitchell, além de representantes das efervescentes cenas
portuguesa e argentina, ainda não contempladas no evento: são muitos os artistas que ainda podem vir para manter o Sesc Jazz como o festival mais instigante e
importante do gênero no país...
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*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e
Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos;
foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com
publicações como Entre Livros, Zumbido e Jazz.pt. Atualmente escreve sobre
livros e jazz para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns
“Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), e “The Hour of the Star”, de
Ivo Perelman (Leo Records)