LANÇAMENTOs Apresentamos mais alguns
títulos editados nos últimos tempos, vindos da sempre viva cena portuguesa, que
merecem uma atenciosa escuta...
Por Fabricio Vieira
Parallel Realities ****(*)
João Lencastre
FMR
Novo projeto do baterista João Lencastre, este Parallel Realities reúne
um quinteto de destacados nomes da cena portuguesa atual: ao lado de Lencastre
estão Albert Cirera (tenor e soprano), Pedro Branco (guitarra), João Hasselberg
(baixo e eletrônicos) e o sensacional pianista Rodrigo Pinheiro (Red Trio,
Clocks and Clouds). Os “contrastes dramáticos”, como diz Lencastre, são uma
marca sensível do projeto. Pelo próprio perfil diverso dos músicos envolvidos,
o ouvinte é levado de uma distinta experiência sonora a outra, em oito faixas,
mas tudo bem elaborado, mantendo a coesão e a coerência do registro. “Departure”
inicia o álbum funcionando como uma introdução mesmo, aclimatando os ouvintes
ao universo que se desnudará faixa a faixa; sons vão surgindo com vagar, toques
eletrônicos, o sax, o piano, a percussão em pancadas brutas mas esparsas,
elementos que vão revelando a sonoridade do grupo, sem antecipar, porém, totalmente
as surpresas que encontraremos no caminho. O tom sobe logo na segunda faixa, “Turbulent
Journey”, um dos momentos mais felizes da empreitada: com faíscas eletrificadas
rondando o ar, um piano inspiradíssimo sustentando a peça, um sax soprano que
vai do lírico ao torturante enquanto sentimos a bateria de pulsação firme e
acelerada. “High Speed Chase” é outro tema de grande impacto, com piano e
bateria protagonizando a peça, marcada ainda por solo explosivo de sax em seu
final. Um quinteto empolgante que esperamos que tenha surgido para ficar.
A Brighter Side of Darkness ****
Luís Vicente/ Vasco Trilla
Clean Feed
Este registro marca um encontro entre o trompetista português Luís
Vicente e o baterista catalão Vasco Trilla, realizado em fevereiro de 2018 no
Golden Apple Studio, Barcelona. Em três extensas faixas, o duo apresenta cerca
de 50 minutos de música profunda e, por vezes, hipnótica. Apesar de menos comum
que os duos de sax-bateria, os encontros de trompete e percussão podem ser tão
excitantes quanto. E A Brighter Side of Darkness mostra bem isso, com momentos
de muita inventividade improvisativa. O álbum começa com a intrigante “Untold Stories”, em que os instrumentistas parecem sussurrar, deixando os sons construírem
a peça com vagar, passo a passo, sem arroubos. A densidade vai crescendo até o
meio do tema, com Trilla e Vicente passando a um diálogo mais direto, nos
levando aos últimos cinco vibrantes minutos. Já “To Angels and Demons” é uma
peça mais profunda, marcada pelo dolorido solo final do trompete, que ressoa algo
nostálgico, tocante mesmo. O disco fecha
com a mais breve e sombria “Where You Belong”, na qual o duo trabalha com
técnicas expandidas para criar impressões desconfortantes.
Terraphonia ****
Abdul Moimême/ Patrick Brennan
Creative Sources
O experiente guitarrista de Lisboa Abdul Moimême, que tivemos a
oportunidade de ver em ação no Brasil (MG e SP) em 2014, conta com uma extensa
discografia, sendo um de seus mais recentes títulos este Terraphonia. Gravado
em duo ao lado do saxofonista norte-americano Patrick Brennan no onipresente
Namouche Studios (Lisboa), em abril de 2018, o álbum traz sete temas,
improvisação livre que busca desbravar amplos terrenos sonoros (um dado curioso
que se vê no currículo do guitarrista: ele teve aulas de saxofone, lá atrás,
exatamente com Brennan – um músico de Detroit que, apesar de estar na ativa
desde a década de 1980, tem uma discreta discografia). Enquanto Brennan se
concentra no sax alto, Moimême trabalha com duas guitarras elétricas, tocadas
simultaneamente, com objetos. Esse processo de ampla exploração das
possibilidades expressivas do instrumento marca a estética de Moimême, que cria ao
lado do sax interessantes momentos. As técnicas expandidas empregadas nas
guitarras atravessam o espaço com rasgos metálicos, cortantes, sombrios até (basta iniciar “Terrafonia” ou chegar a “ndu enweghi ihe abuo/no two” para
sentir isso). O sax, por sua vez, é menos abrasivo, podendo soar quase
melódico, gerando sensíveis contrastes com o que vem das guitarras. A
sonoridade que vai se revelando pode levar o ouvinte a pensar em manipulações e
efeitos, mas os músicos deixam claro que se trata de “gravação direta, sem
overdubs”. Uma experiência inquietante.
bRack Again ****
Tetterapadequ
Cylinder Recordings
Este quarteto formado pelos portugueses Gonçalo Almeida (baixo) e João
Lobo (bateria) ao lado dos italianos Daniele Martini (sax tenor) e Giovanni
Domenico (piano) chega a seu quarto álbum com uma experiência de mais de uma
década de atividade, o que ajuda a explicar o fino entrosamento do grupo. bRack
Again apresenta cinco novos temas, registrados em julho de 2016, nos quais o
quarteto mostra seu free impro que não renega certa herança jazzística, especialmente
ecoando via sax e piano, que são livres sem serem demolidores. O free impro do
Tetterapadequ sabe, em seu vigor, também soar lírico, como demonstram "Bolastryder", marcado por relaxado solo de sax, e "That What
You is There", que fecha o disco com melancólica atmosfera. Gonçalo, hábil
baixista em suas confirações elétrica e acústica, como sabemos de muitos
projetos com os quais está envolvido, mostra aqui uma face mais refinada de sua
técnica, a destacar seu solo e sua técnica de arco em "Onibinda" – talvez
a melhor peça do conjunto –; a introdução de "Ciputraf", conduzida
pelo baixo, também é uma boa forma de ouvir Gonçalo em destaque. Uma publicação
de marca DIY, bRack Again sai em edição limitada em CD pelo selo de Gonçalo, o
Cylinder Recordings.
No Place To Fall ****(*)
Rodrigo Amado/ Chris Corsano
Astral Spirits/Monofonus Press
Sax e bateria. Este clássico formato do free jazz parece nunca envelhecer, com músicos sempre buscando renovar as possibilidades expressivas inerentes a um duo como esse. Rodrigo Amado e Chris Corsano, dois nomes fundamentais da cena contemporânea, se unem neste No Place To Fall para enfrentar o desafio de criar em dueto. Amado e Corsano trabalharam juntos em diferentes contextos nos últimos anos, a destacar o brilhante quarteto com Joe McPhee e Kent Kessler (“This is Our Language”). O encontro registrado em No Place To Fall levou anos para chegar ao público, tendo sido captado no Namouche Studios (Lisboa) em julho de 2014. Mas se mantém fresco e com força intocável. Talvez se o registro fosse mais recente a intimidade do duo fosse ainda mais latente. Mas Amado e Corsano já se mostram aqui, cinco anos atrás, em sintonia precisa, gestando um álbum de impacto direto e certeiro. “Announcement” abre a sessão com os músicos em ágil pulsação, com o sax já cortando o ar por entre o fraturado e acelerado toque de Corsano. Amado soa aqui em sua face mais enérgica, esquentando as coisas sem rodeios. Apesar da unidade, os cinco temas que compõem o álbum apresentam uma variedade de propostas. A face melódica de Amado, característica conhecida por quem acompanha seu trabalho, marca a mais pausada “Don’t Take It Too Bad”. Já a faixa título começa com o sax sozinho, em ataques entrecortados por silêncios, como que testando rumos, até que a bateria entra de forma explosiva lá pelos três minutos, nos levando em ritmo cada vez mais intenso com a progressão da faixa. Finda a escuta, Amado e Corsano deixam provado que o formato sax e bateria ainda pode render discos realmente potentes. Sai em edição limitada em CD e K7.
Summer Bummer *****
The Attic
NoBusiness Records
O trio The Attic, que fez arrebatadora estreia em 2017, lança agora seu segundo título, pelo mesmo NoBusiness Records e mais uma vez um registro ao vivo. Uma mudança sensível logo se destaca: a saída do baterista Marco Franco, substituído pelo holandês Onno Govaert. Rodrigo Amado (sax tenor) e Gonçalo Almeida (baixo acústico) se mantêm firmes, mantendo o tom distinto e marcante do grupo. Este novo trabalho foi captado em 26 de agosto de 2018, no Summer Bummer Festival, Antuérpia. São cerca de 45 minutos de música improvisada, dividida em três extensas partes. Govaert é um percussionista distinto de Franco, mas que funciona bem ao lado da dupla portuguesa. “Walking Metamorphosis” abre o álbum com uma bela melodia entoada pelo sax tenor, com baixo e bateria criando as camadas de suporte e diálogo sobre e com as quais Amado vai criando seu envolvente discurso. De ar quase bluesy a princípio, “Walking Metamorphosis” vai lentamente progredindo para algo de maior vigor, se desdobrando em potência redobrada a partir dos 4 minutos, para novamente amansar; após solo de baixo, o sax retorna para engatar um solo de maior robustez, em que Amado mostra o porquê de ser um dos grandes saxofonistas da atualidade. Já “Free For All” apresenta uma vibração diferente, com o sax explorando outras possibilidades, indo a dolorosas linhas antes de a energia subir lá pelos sete minutos. Alternâncias de placidez e picos enérgicos marcam também “Aimless at the Beach”, que encerra o registro em grande estilo. Não sei se esta é a nova configuração do trio; de qualquer forma, funcionou muito bem. O mais importante, enfim, é que o The Attic siga produzindo e ofertando a encantadora música com que tem brindado os ouvintes.
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*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e
Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos;
foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com
publicações como Entre Livros, Zumbido e Jazz.pt. Atualmente escreve sobre
livros e jazz para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns
“Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), e “The Hour of the Star”, de
Ivo Perelman (Leo Records)